O som estridente da
campainha tocando me trouxe de volta à realidade.
Ok, me trouxe de volta à realidade é uma
expressão muito forte. Falando assim, parece que foi um processo rápido. Não
foi. Eu passei uns bons momentos piscando bem devagar, piscando várias vezes
inclusive, até que meus olhos conseguissem entender o porquê de eu não poder
mais ver aquela mancha no meu teto. Era porque estava escuro. Bem escuro. Porque
já era de noite. Não era de noite quando eu comecei a encarar aquele borrão cinza
no meio daquela lisa superfície branca. E em algum momento, meu cérebro
resolveu viajar para outra dimensão, deixando o meu corpo abandonado naquele
sofá bege e surrado. E pela baba seca no canto da minha boca, eu havia
dormido... Em algum momento, que eu também não fazia ideia de quando havia
sido, eu havia dormido. Mas não havia descansado... Nem um pouco.
Que bosta...
A campainha tocou de
novo então.
Após soltar um
grunhido de irritação completamente justificável, eu enfim levantei. Quase
tropeçando nos meus próprios pés, cambaleei até chegar à entrada de casa.
“Você deve ser minha
nova vizinha”, disse uma pessoa alegre no mesmo instante que eu abri a porta.
Não vou negar que levei um leve susto.
“Oi?”,
foi tudo o que saiu da minha boca. Eu precisava de mais uns instantes até
começar a formular frases.
“Eu
sou Felix”, o garoto se apresentou com um tom animado, estendendo a mão para
mim, educadamente não mencionando a minha cara de quem parecia estar de
ressaca.
“Laila”,
eu disse meu nome sem muito entusiasmo e apertei a mão do sujeito, não
esperando um aperto de mão tão firme.
“Prazer
em conhecê-la, Laila”, ele sorriu, mostrando nitidamente seus dentes brancos e
perfeitos. Aquele sorriso juntamente com o resto do visual arrumadinho me fez
acreditar que eu estava falando com um boneco Ken de carne e osso. “E seja bem
vinda ao Residencial Lavanda!”, Felix falou aquilo com muito mais entusiasmo
que o locador do meu apartamento depois de firmarmos o contrato. “Espero que você
se adapte bem à sua nova casa! Em breve, esse se tornará seu novo lar! Tenho
certeza que você será bem acolhida por seus vizinhos e vizinhas! Ah, e qualquer
coisa que você venha a precisar, não importa o que seja, é só me chamar, viu,
querida? É só bater na porta logo ao lado da sua!”.
“Obrigada...”,
agradeci, esboçando um sorriso, tentando digerir tanta gentileza de uma vez. Eu
realmente não fico à vontade com tanta positividade assim, principalmente logo
depois de acordar. “Prazer em conhecê-lo, viu?”, falei com um certo receio de
ter soado sarcástica. “Eu falo mais com você assim que eu terminar de arrumar
umas coisas aqui em casa e...”.
“Precisa
de ajuda com alguma coisa?”, Felix me interrompeu. Olha a audácia do filho da
puta... “Desempacotar umas caixas? Ou empurrar algum móvel? Ou varrer o chão?
Ou...?”
“Não!”,
eu o cortei, respondendo um pouco rápido e um pouco alto demais, o que fez o
garoto arregalar um pouco os olhos. Mas ele meio que precisava daquele corte. “Nada
que eu não possa resolver...”. Continuei. “Agradeço a oferta”.
“Não
há de quê!”, Felix sorriu um sorriso ainda mais largo, o que achei que não era
possível.
E
então, ele continuou ali.
Parado.
Ainda
sorrindo.
Eu
estava começando a me sentir desconfortável.
“Não
tem mais nenhum vizinho novo aqui pelo prédio...?”, perguntei, pensando o quão
grosseiro seria simplesmente fechar a porta na cara dele. “Sabe... Mais alguém
que você possa ajudar talvez?”.
“Só
havia um apartamento vago nesses últimos tempos... O seu, querida!”, exclamou o
Senhor Entusiasmo. MAS É CLARO QUE SÓ TINHA O MEU CARALHO. “Os preços dos
alugueis daqui são muito em conta, como você pode ter reparado...”, ele começou
a explicar, mesmo ninguém tendo pedido. E continuou explicando. Gesticulando
muito inclusive. Não vou te julgar se você pular pro próximo parágrafo. “Então os
apartamentos não ficam vagos por muito tempo, principalmente com tantos
universitários praticamente sem dinheiro algum —
tais como euzinho aqui — precisando de um
lugar pra ficar que não seja muito
longe da faculdade na cidade vizinha, que, meu
deus, tem um custo de vida absurdamente
alto pra uma cidadezinha pouca coisa maior que a nossa, sabe? Então compensa
muito mais ficar por essas bandas e pegar ônibus, ou dirigir até lá se você tem
carro —
que, cá entre nós, não é o caso de muita gente —
mas...”.
De
repente, um grito irrompeu do corredor, parecendo cortar o próprio ar,
sufocando todos os outros sons, até que só houvesse silêncio... O que foi um
alívio! Aquilo fez o Felix calar a boca, mesmo que só por uns poucos instantes.
E também eu não tive que ser rude e fechar a porta na cara dele que nem eu
estava prestes a fazer. Tudo deu certo no final!
Mas
de volta ao grito assustador...
Eu
pisei pra fora do apartamento o mais rápido que pude, arrependendo-me no mesmo
instante. O chão estava gelado e eu estava descalça. Soltei um leve e um tanto
vergonhoso “ah!” na hora.
“O
que foi isso?”, eu tratei logo de perguntar sobre o grito antes que Felix se
propusesse a pegar meus chinelos para mim.
“Provavelmente
mais algum invasor”, ele respondeu como se fosse a coisa mais natural do mundo.
“Hein?”,
eu ergui uma sobrancelha e encarei o garoto. Esperei ele soltar uma risada e
falar que era uma brincadeira, mas não aconteceu. “Você tá falando sério?”.
“Uhum,
acontece mais do que você imagina por aqui...”, Felix continuou com o tom calmo
e casual. “As paredes do Residencial são bem baixas, dá pra escalar sem
problemas. A cerca elétrica também não impede ninguém, até porque acho que ela
nunca funcionou. E os vigias, bem...”, ele soltou um breve riso. “Eles não são
lá muito bons em vigiar, sabe? Isso sem contar com a parede quebrada lá nos
fundos...”.
“É,
demoraram alguns bons minutos pra abrirem o portão pra mim quando cheguei mais
cedo...”, concordei um tanto irritada com a parte do vigia. Eu odeio ficar
parada esperando. Mas depois eu consegui focar no mais importante: “Bem, a
segurança desse lugar parece uma merda. Queria saber disso melhor antes. Talvez
eu teria me preparado melhor para um assalto sabendo disso com antecedência”.
“Nem
sempre são assaltos...”, ele murmurou.
Ok,
agora, no momento em que escrevo essas palavras, eu sei muito bem o que Felix
queria dizer com aquilo. MAS PUTA QUE O PARIU. Na hora eu gelei, já esperando o
pior destino possível. O JEITO QUE AQUELE ARROMBADO FALOU TAMBÉM NÃO AJUDOU EM
NADA. Sério. Parecia que a voz dele tinha se tornado mais sombria por uns
poucos instantes, quase como se outra pessoa falasse em seu lugar.
Mas
enfim... Eu — como qualquer pessoa sensata que
estivesse no meu lugar — levei uma mão pra
dentro do direito bolso de minha calça, debaixo da barra de minha camisa, alcancei
minha faca, e sugeri:
“Não
seria melhor voltar pra dentro de casa...?”.
Antes
que eu pudesse tentar falar mais alguma coisa, mais um grito ecoou pelo prédio.
Dessa vez, mais longo e estridente que o último, sumindo de repente, como se a
voz tivesse sido roubada.
“Não”,
disse Felix. Demorei uns instantes pra perceber que aquele era a resposta dele
pra minha pergunta. Ele então olhou pra mim e sorriu. “Acho que o sistema de
segurança do prédio ta dando um jeito nos invasores”.
“Sistema de segurança?”, perguntei,
sentindo como se eu não tivesse entendendo alguma piada interna do prédio. “Achei
que nem tinham câmeras de segurança
aqui depois de tudo o que você disse...”.
Então,
um terceiro grito soou, muito mais grave e profundo do que os dois últimos.
Pareceu ter vindo de mais perto também. De muito
mais perto. E também... Aquilo não soava como uma pessoa. Era parecido, mas
não era humano. Tinha certeza daquilo.
Mas
antes que eu pudesse comentar, um novo som preencheu os corredores do prédio.
Era
diferente de tudo o que eu já tinha ouvido. Pelo menos, de tudo que eu já tinha
ouvido pessoalmente. Parecia a mistura de um rosnado de um pastor alemão com um
grunhido de um porco. Com um pouco de um grasnado também, eu acho. Era
impressão minha ou tinha um leve relincho misturado no meio? Eu já não sabia
mais exatamente o que eu ouvia, pra ser sincera, mas sabia de onde vinha.
“O
andar debaixo...”, murmurei enquanto levava uma mão ao bolso. “Está vindo do andar debaixo...”.
Passos
vieram em seguida. Vagarosos, eles subiram os degraus da escada. Um a um. Pesados.
Sem ritmo algum. Ecoando mais alto a cada pisada sobre os azulejos. Droga... Eu
podia sentir meu coração batendo frenético, tentando acompanhar aquela melodia caótica.
Meus dedos se firmaram com afinco no cabo de minha faca escondida. Eu ia ter
que usá-la. Não tinha jeito. Eu podia sentir...
E
daquela eternidade feita de segundos intermináveis, veio uma criatura.
A
primeira coisa que eu vi foi sua mão, terminando de puxar a criatura andar
acima. Mais pálida que uma lua cheia, com garras negras que mais pareciam facas
em cada dedo, aquela coisa deveria ser facilmente maior que minha cabeça... E
Sentia que poderia esmagá-la se tivesse a chance.
No
instante seguinte, pude ver o resto da aberração. O corpo era magro e alto
demais, talvez com uns dois metros e meio de altura. A pele —
tão pálida quanto a mão que acabei de comentar —,
parecia dura, feita de rocha ou de algum tipo de metal, com a textura como a de
um crocodilo. E a cabeça... Era a pior parte. Nada tinha nela a não ser um
único e gigantesco olho pulsante e avermelhado, encarando-me fixamente, quase
como se estivesse esperando eu começar a correr para poder me caçar.
Porém...
Eu não havia visto, de fato, o corpo inteiro
do monstro.
Assim...
Quando aquilo subiu as escadas, ele —
vou presumir que era um ele —
estava de lado em relação a mim. No instante seguinte, ao se virar, tive acesso
a duas novas informações.
A
primeira era que ela tinha uma boca. Só que não ficava na cabeça dele; ficava
bem no meio do abdômen... Era bem grande e cheia de dentes... E também abria na
vertical. Era uma visão única, sem dúvida.
A
segunda informação era: ele tinha um buraco no meio do peito —
do qual escorria algum líquido verde gosmento —,
grande o suficiente para eu atravessar minha perna ali sem problemas. Porém...
Aquilo não era normal.
“Como você pode ter certeza que aquilo não
era normal no meio de uma aberração daquelas, de um monstro que você nunca
antes havia visto?”, você pode estar se perguntando. E eu entendo o porquê
dessa pergunta. É uma boa pergunta. A resposta, entretanto, é bem simples: o
bicho caiu morto logo em seguida.
A
boca vertical do monstro se abriu ligeiramente, soltando um último e fraco
grito, quase um assovio. E então, a criatura albina caiu para frente, inerte,
acertando o chão frio com seu torso e olho gigante.
E
como se não fosse coisa demais para se processar de uma vez, o cadáver começou
a derreter bem em frente aos meus olhos, deixando nada a não ser uns restos de
espuma esverdeada.
Mano...
Foi
tanta coisa acontecendo que eu nem me toquei que havia outra criatura no
corredor.
Senti
um calafrio percorrer minha espinha. Metros à frente, envolto pelas sombras,
havia um vulto nos observando com um par de olhos brilhantes. Eu não sabia
dizer o que era... Não conseguia saber seu tamanho, muito menos distinguir sua
forma no meio daquela escuridão. Por quanto tempo aquilo estava ali, parado?
Apenas nos encarando? Nos estudando?
Felix,
que estava quieto demais, resolveu me lembrar que ainda estava ali, do meu
lado. E o que ele fez em seguida, meu caro leitor, exigiu toda a minha força de
vontade para não enfiar a minha mão na cara dele.
“GIZMO!”,
o garoto gritou de repente. “VEM AQUI, MEU LINDO!”.
A
porra do susto me fez dar um pulo pra trás.
“VOCÊ
PERDEU A NOÇÃO CARALHO?”, propus a reflexão para Felix.
Agora
era ele quem estava assustado. Bem feito.
“Eu...”,
a voz dele desafinou por um momento. “Eu só estava chamando o Gizmo...”, Felix
respondeu por fim, sem jeito algum. Seus olhos, então, pareceram se transformar
nos olhos de um vira-lata abandonado numa noite escura pedindo um pouco de
comida. “Desculpa ter te assustado, Laila. Não foi minha atenção, eu juro...”.
Mano...
Como
que se fica irritada com uma cara daquelas?
Não
se fica. Essa é a resposta.
Ah,
é... Creio que meus gritos de ódio assustaram o tal do Gizmo... Porque ele
sumiu. Não havia mais um par de olhos nos encarando.
“Relaxa...”,
eu suspirei. Então, pensei um pouco antes de perguntar: “Esse tal de Gizmo é o
quê? Um cachorro do prédio...?”. Logo que eu terminei de falar, acabei me
tocando: “Ele que é o tal sistema de segurança do prédio?”.
“Sim
e não...”, Felix começou a responder. “Sim, ele é o sistema de segurança.
Mas... Não, ele não é bem um cachorro, sabe? Ele é... Hmm...”, o garoto coçou o
queixo, pensativo, tentando achar as palavras certas. Mas acabou não
precisando. “Olha!”, ele exclamou animado, apontando para trás de mim. “Ali
está ele!”.
Eu
me virei e me deparei com aquilo, sem ter ideia de como reagir. Porque meu
Deus... Eu não estava preparada pra ver o Gizmo tão de perto. Tipo... Nem um
pouco preparada.
Pra
começo de conversa, a criatura certamente não era um cachorro. Ele estava de pé
sobre duas patas posteriores. Seus longos braços quase tocavam o chão sem
esforço algum. A longa cauda balançava frenética, quase como se tivesse vida
própria. No primeiro momento, não consegui distinguir se ele tinha pelos ou
penas —
talvez ambos? —, nem mesmo a bendita cor que
aquilo tinha — parecendo variar entre tons de
verde escuro e preto —, mudando a cada
instante. Era como se eu sentisse um mal estar só de olhar para aquela confusão...
E EU NEM COMECEI A FALAR DO ROSTO. MEU DEUS. O ROSTO. Aquele rosto mais parecia
uma máscara. Era rígido, com uma boca —
que não aparecia quando fechada —
e dois grandes olhos amarelos que pareciam brilhar. Ok, grandes é um puta de um eufemismo. Aqueles olhos eram enormes,
completamente desproporcionais ao resto da cabeça, que parecia ter crescido
numa forma que lembrava um coração —
um coração bonitinho, aquele que simboliza o amor e tal, não um coração de
verdade, só pra deixar claro —
só para comportar as duas colossais órbitas.
Mano,
que bicho estranho da porra.
Gizmo,
de repente, começou a se mover quase como se não tivesse peso. Nem seus passos
faziam barulho. Se eu tivesse piscado, não teria visto a criatura subir nas
costas de Felix e abraçar seu peito, segurando-se no garoto como se fosse uma
mochila bem estranha.
“Seu
fofo”, falou Felix com a típica voz de bebê que praticamente todo mundo usa
quando fala com seu bichinho de estimação. Em seguida, ele estendeu a mão para
trás e fez carinho da cabeça de Gizmo. “Sempre manhoso você, não é?”, o garoto
soltou um breve riso após o bicho emitir algum som que, talvez, sob uma
perspectiva diferente da minha, alguém pudesse achar fofo ao invés de inquietante.
E
por alguns momentos fiquei ali, parada, apenas observando aquela troca de
afetos entre um boneco de plástico que ganhou vida e uma coisa que parecia um grande
Gremlin depois de cair na água.
Espera
aí.
SERÁ
QUE FOI POR ISSO QUE DERAM O NOME DELE DE GIZMO? Caralho, só pensei nisso agora que tô escrevendo. Meu Deus do Céu.
Como não percebi isso antes? Mano...
“Então...”,
foi a primeira palavra que saiu de minha boca após um tempo. “Mascote
interessante”, eu disse sem muita cerimônia. E também sem saber o que mais
falar.
“Ele
é mais que só um mascote”, disse Felix, ainda afagando a cabeça de Gizmo. “Ele
é um membro muito importante da nossa família aqui do Residencial Lavanda!”, o
garoto falou com orgulho na voz. Pela cauda do bicho em suas costas balançando
ainda mais rapidamente, vou presumir que ele gostou do elogio, do mesmo jeito
que presumi que ele funciona que nem um cachorro.
“Mas
é claro”, eu sorri, ainda com a mão no bolso. “Estou curiosa...”, eu falei,
ainda observando atentamente a criatura, pensando por qual pergunta começar.
“Como exatamente o Gizmo apareceu por aqui?”.
“Olha...
Foi bem do nada”, Felix começou a responder tranquilamente. “Uma amiga minha
daqui do prédio — Agatha, o nome dela —,
achou ele um dia revirando o lixo, procurando comida. Ela ofereceu um pouco de
comida pra ele e o bichinho foi se afeiçoando a ela, sabe? Claro que eu e os
outros estranhamos no começo. Não vou negar. Nem sabíamos o que era aquele
bicho. Ainda nem sabemos ao certo. Mas... A Agatha...
Ela teve um bom pressentimento sobre ele. E... Aquilo era o suficiente para
nós começarmos a interagir com esse serzinho pitoresco. E de repente, todo o
nosso grupinho de amigos não parecia mais conseguir viver sem ele...
“Entendi”,
eu disse com um sorriso, pensativa.
Ambas
as vezes em que Felix mencionou o nome dessa garota, dessa tal de Agatha, ele
soou diferente. Anormal, pra dizer o mínimo. Era como se tivesse algo entalado
na garganta dele, algo que ele queria contar... Mas que evitava por algum
motivo.
Eu
ia fazer ele contar o segredinho dele.
“E
essa Agatha simplesmente começou a cuidar dele?”, perguntei, realmente curiosa.
“Começou a cuidar dessa coisa que bem podia arrancar a cara dela fora?”.
“Ela
é assim mesmo”, Felix afirmou num tom sereno. Gizmo agora estava em seus
braços, quase como um bebê, tendo sua barriga coçada. Não acho que o bicho
sairia de lá tão cedo. “Sempre carinhosa, sempre se arriscando pelos outros,
até pelos desconhecidos...”, o garoto continuou falando com um sorriso sincero
no rosto. “Às vezes nem parecia real, sabe? Ela parecia saber quando você
estava triste, e aí largava tudo o que ela estava fazendo pra te ajudar como
podia... Parecia iluminar um ambiente só de entrar nele, trazendo uma energia
tão boa... Parecia arrancar sorrisos de quem quisesse, sem esforço algum...
Parecia um anjo que havia entrado na minha vida... Um anjo que entrava na vida
de qualquer um que tivesse sorte de conhecê-la... Até que...”.
Felix
parou. Ele ficou em silêncio por alguns instantes, parado ali, apenas fazendo
carinho na barriga do Gizmo. Eu demorei um pouco pra perceber os fios de
lágrimas que desciam por suas bochechas.
“Felix...”,
eu comecei a falar, mas não sabia como continuar.
“Desculpa...”,
ele falou com a voz chorosa, colocando Gizmo no chão com cuidado para poder
secar as lágrimas em seu rosto. “Eu deixei me levar...”.
“Não
precisa se desculpar”, eu disse num tom carinhoso, sorrindo para o garoto em
seguida. Fiquei contente em ter meu sorriso retribuído. “Eu que fiquei fazendo
perguntas que não devia...”.
“Bobagem”,
Felix soltou uma risada baixa. “Você não falou nada de mais. É só que...”, ele
suspirou, fazendo com que seu sorriso desaparecesse em seguida. “Eu sinto muita
falta dela...”. Os olhos dele vagaram para além de mim, para a porta fechada do
meu apartamento. “Ela morava aí...”.
“Bem
onde eu tô morando?”, perguntei enquanto senti um leve mal-estar.
Felix
assentiu, sem dizer nada.
“Meu
Deus...”, eu murmurei, respirando fundo e exalando com calma em seguida. Meus
olhos se dirigiram para os do garoto então. “Se não for causar incômodo... Você
pode me dizer o que aconteceu com a Agatha?”.
“Ela...
Simplesmente desapareceu”, ele respondeu claramente desanimado. “Faz dois meses
já... Por isso que o apartamento já estava para ser alugado de novo. Pedimos
para o locador para que pudéssemos ficar com as coisas dela, para caso a Agatha
voltasse... Ele permitiu. Eu e meus amigos dividimos as coisas dela entre nós,
esperando...”.
Felix
parou de falar. Seus olhos estavam marejados. Pude sentir a dor em sua voz ao
dizer suas últimas palavras. Por isso, eu esperei mais alguns momentos antes de
falar o que eu tinha que falar:
“Casos
de desaparecimento estão longe de serem incomuns nesta região...”, minha voz
estava séria. “Geralmente, entretanto, as vítimas... Elas reaparecem sozinhas pouco
tempo depois... É difícil de explicar, mas... Muita merda estranha acontece por
aqui...”.
“É,
muita merda mesmo...”, o garoto concordou com um leve sorriso, que logo se
dissipou. “Mas nós nunca achamos que vai acontecer conosco... Ou com quem é próximo
de nós...”. Os olhos dele, de repente, fixaram-se nos meus. Em silêncio, Felix
parecia me analisar, calmamente, pensando por qual pergunta começar. Mas,
enfim, ele perguntou: “Quem exatamente é você, Laila?”.
“Quem sou eu?”, eu sorri. “Alguém que,
com sorte, poderá ajudar”, respondi, tentando soar o mais confiante possível. “É
o meu trabalho, afinal de contas”.
E,
pelo visto, minha confiança teve resultado. Quando vi um olhar esperançoso no
rosto de Felix, resolvi fazer uma promessa que eu não sabia se poderia cumprir:
“Nós
vamos achar a Agatha”.