domingo, 1 de março de 2020

Poema - Amanhecer

E mais uma vez os ventos estão a rugir
Trazendo consigo chuvas que parecem sem fim
E mais uma vez eu não vou poder fugir
Os caminhos sumiram sob o céu de nanquim
E às vezes parece difícil até mesmo sorrir
Com os pensamentos irrompendo num motim
Quando tudo ao redor gira, prestes a ruir
Percebo que é muito mais que uma noite ruim

E mais uma vez vou tentar me proteger
Erguendo toda barreira que eu consigo
E mais uma vez vou acabar por me perder
Fingindo estar acolhido em meu abrigo
Fingindo que tudo não está prestes a ceder
Fingindo que não me distraia de meu castigo
Enquanto vislumbro miragens do amanhecer
Aguardando sem pedir conselhos dum amigo

E mais uma vez eu ouço os trovões lá fora
Mas permaneço sentado sozinho no escuro
E mais uma vez eu tento fugir do agora
Sonhando voar alto enquanto me censuro
Lentamente percebo que não vou embora
Enquanto não achar o que eu procuro:
Os primeiros raios de luz duma aurora
Para iluminar um coração inseguro

Nesse momento olho no espelho
Meu reflexo me parece atormentado
Nesse momento eu me ajoelho
Sinto que pelo mundo fui derrotado
A um morto-vivo me assemelho
Arrastando-me com o corpo cansado
Relembrando o brilho vermelho
Das chamas que eu havia apagado

Então finalmente pensei sobre o meu sorriso
E da felicidade que não tinha escassez
Então finalmente pensei sobre o meu paraíso
E de todos os seus calorosos clichês
Fazendo-me sentir falta até da falta de juízo
Que eu já exibi com tamanha altivez
E num instante assim, meio que sem aviso
Pensava sobre quem eu já fui uma vez

Então finalmente me lembrei daquele calor
Aquecendo-me a cada passo daquela dança
Então finalmente me lembrei daquele amor
Guiando-me para uma nova esperança
Levando-me para longe da minha dor
E preenchendo-me com perdida confiança
Obrigando-me a ser mais que um sonhador:
Meu paraíso não seria mais uma lembrança

Então finalmente me levantei do chão frio
Da minha escuridão saí, passo a passo
Então finalmente deixei meu templo sombrio
O tributo ao meu medo passado eu desfaço
Em meu coração, não mais aquele vazio
Agora um calor zeloso como de um abraço
E no horizonte, segue o eterno desafio
Porque o meu amanhecer sou eu que traço

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Poema - Momento

O Momento surgiu assim de repente
Desenhando-se com tamanha elegância
Mesmo que sem uma razão aparente 
Envolveu-me com sua sútil fragrância
E trouxe o brilho de um sol nascente
Caloroso como uma memória de infância
Era muito mais que um feliz acidente
Pois nada mais ali tinha tanta importância

E com um sorriso, conduziu uma dança
Pois eu mesmo ainda tinha que sorrir
Em meio ao marasmo, bem vinda mudança
Pois dos meus grilhões eu tinha que fugir
Em meio à escuridão, despertou esperança
Pois tempos melhores estavam por vir
Quando o tempo passar, uma doce lembrança
Pois o Momento ainda tinha que partir

Mas aquela hora não era a hora da tristeza
Porque um adeus de verdade nunca viria
Aquele sonho acordado vivi com tanta clareza
Nem mesmo os menores detalhes esqueceria
Cada instante encheu minha alma com leveza
E sua doce lembrança meu coração aquecia
Deixando-me com apenas uma certeza:
Com aquele Momento eu novamente dançaria

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Poema - Migalhas


O feitiço inebriante do amor
Arranca do aflito peito nossa tristeza
Leva para longe toda nossa dor
Preenche o ar que nos rodeia com beleza
Nos abraça com tão terno calor
Que nos faz esquecer de toda a incerteza
Nos esquecemos de todo amargor
Até que não mais podemos ver com clareza

Um vício nefasto como outros tantos
Pode te quebrar com a mais cruel abstinência
Pode te deixar miserável aos prantos
Lamentando profundamente por sua ausência
Procurando desesperado pelos cantos
Algum jeito de dar fim a essa vil carência
Implorando de joelhos por teus santos
Para ter um sentido nessa oca existência

Mais uma vez uiva retumbante o vazio
Mais uma vez grita este teu coração
Implorando pelo fim de tão impiedoso frio
Clamando pelas chamas duma paixão
Tudo pelo fim deste teu presente tão doentio
Tudo pelo fim desta tão terrível solidão
Tudo para nunca mais mergulhar neste triste rio
Tudo para navegar rumo a uma salvação

Mas seu destino é só uma miragem
Uma doce ilusão por você mesmo criada
Uma mentira por falta de coragem
Na qual você é a única pessoa enganada
Continue assim por essa viagem
E à tristeza a tua alma estará condenada
Uma verdade ataca sua blindagem:
Tua mente fechada é a maior culpada
Ignorante você levanta suas muralhas
Sentado em seu trono tão arrogante
Ignorante perante as próprias falhas
Vestindo bem as vestes dum farsante
Se contentando com meras migalhas
Você segue sua empreitada errante
Cortando sua alma com frias navalhas
Até ouvir o seu negro céu trovejante

Gritando com a maior das loucuras
Vem sanguinária uma grande tempestade
Te arrastando para as águas escuras
Te quebrando contra ondas com brutalidade
Te submetendo à maior das torturas
Esmagando ferozmente tua força de vontade
Expondo na tua alma as rachaduras
Te fazendo enfim confrontar a dura verdade

O amor pode sim ser encontrado
Não duvide disso nem por um segundo
Mas o amor não pode ser forçado
Se não o sentimento se torna moribundo
E o seu coração acaba trincado
Com medo de se render a algo profundo
Com medo de se sentir amado
Mas com medo de se sentir só no mundo

Então não tente fugir dessas palavras frias
Entenda que essa verdade deve ser aceita
Para poder se permitir ter melhores dias
Entenda que sua jornada não é perfeita
Não tente se preencher com pessoas vazias
Entenda o que o verdadeiro amor respeita
Seja responsável por suas próprias alegrias
Pra que sua felicidade não seja mais desfeita

E se um dia um novo amor por ti clamar
Tenha certeza de que não é mais uma mentira
E se for para uma outra alma você amar
Tenha certeza que é alguém que você admira
Porque migalhas nunca mais deve aceitar
Se for por menos do que oferece você se retira
Ache alguém que valha a pena ao lado lutar
Não aceite menos do que um amor que te inspira

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Novo conto - Ainda sem título


O som estridente da campainha tocando me trouxe de volta à realidade.
Ok, me trouxe de volta à realidade é uma expressão muito forte. Falando assim, parece que foi um processo rápido. Não foi. Eu passei uns bons momentos piscando bem devagar, piscando várias vezes inclusive, até que meus olhos conseguissem entender o porquê de eu não poder mais ver aquela mancha no meu teto. Era porque estava escuro. Bem escuro. Porque já era de noite. Não era de noite quando eu comecei a encarar aquele borrão cinza no meio daquela lisa superfície branca. E em algum momento, meu cérebro resolveu viajar para outra dimensão, deixando o meu corpo abandonado naquele sofá bege e surrado. E pela baba seca no canto da minha boca, eu havia dormido... Em algum momento, que eu também não fazia ideia de quando havia sido, eu havia dormido. Mas não havia descansado... Nem um pouco.
Que bosta...
A campainha tocou de novo então.
Após soltar um grunhido de irritação completamente justificável, eu enfim levantei. Quase tropeçando nos meus próprios pés, cambaleei até chegar à entrada de casa.
“Você deve ser minha nova vizinha”, disse uma pessoa alegre no mesmo instante que eu abri a porta. Não vou negar que levei um leve susto.
            “Oi?”, foi tudo o que saiu da minha boca. Eu precisava de mais uns instantes até começar a formular frases.
            “Eu sou Felix”, o garoto se apresentou com um tom animado, estendendo a mão para mim, educadamente não mencionando a minha cara de quem parecia estar de ressaca.
            “Laila”, eu disse meu nome sem muito entusiasmo e apertei a mão do sujeito, não esperando um aperto de mão tão firme.
            “Prazer em conhecê-la, Laila”, ele sorriu, mostrando nitidamente seus dentes brancos e perfeitos. Aquele sorriso juntamente com o resto do visual arrumadinho me fez acreditar que eu estava falando com um boneco Ken de carne e osso. “E seja bem vinda ao Residencial Lavanda!”, Felix falou aquilo com muito mais entusiasmo que o locador do meu apartamento depois de firmarmos o contrato. “Espero que você se adapte bem à sua nova casa! Em breve, esse se tornará seu novo lar! Tenho certeza que você será bem acolhida por seus vizinhos e vizinhas! Ah, e qualquer coisa que você venha a precisar, não importa o que seja, é só me chamar, viu, querida? É só bater na porta logo ao lado da sua!”.
            “Obrigada...”, agradeci, esboçando um sorriso, tentando digerir tanta gentileza de uma vez. Eu realmente não fico à vontade com tanta positividade assim, principalmente logo depois de acordar. “Prazer em conhecê-lo, viu?”, falei com um certo receio de ter soado sarcástica. “Eu falo mais com você assim que eu terminar de arrumar umas coisas aqui em casa e...”.
            “Precisa de ajuda com alguma coisa?”, Felix me interrompeu. Olha a audácia do filho da puta... “Desempacotar umas caixas? Ou empurrar algum móvel? Ou varrer o chão? Ou...?”
            “Não!”, eu o cortei, respondendo um pouco rápido e um pouco alto demais, o que fez o garoto arregalar um pouco os olhos. Mas ele meio que precisava daquele corte. “Nada que eu não possa resolver...”. Continuei. “Agradeço a oferta”.
            “Não há de quê!”, Felix sorriu um sorriso ainda mais largo, o que achei que não era possível.
            E então, ele continuou ali.
            Parado.
            Ainda sorrindo.
            Eu estava começando a me sentir desconfortável.
            “Não tem mais nenhum vizinho novo aqui pelo prédio...?”, perguntei, pensando o quão grosseiro seria simplesmente fechar a porta na cara dele. “Sabe... Mais alguém que você possa ajudar talvez?”.
            “Só havia um apartamento vago nesses últimos tempos... O seu, querida!”, exclamou o Senhor Entusiasmo. MAS É CLARO QUE SÓ TINHA O MEU CARALHO. “Os preços dos alugueis daqui são muito em conta, como você pode ter reparado...”, ele começou a explicar, mesmo ninguém tendo pedido. E continuou explicando. Gesticulando muito inclusive. Não vou te julgar se você pular pro próximo parágrafo. “Então os apartamentos não ficam vagos por muito tempo, principalmente com tantos universitários praticamente sem dinheiro algum tais como euzinho aqui precisando de um lugar pra ficar que não seja muito longe da faculdade na cidade vizinha, que, meu deus, tem um custo de vida absurdamente alto pra uma cidadezinha pouca coisa maior que a nossa, sabe? Então compensa muito mais ficar por essas bandas e pegar ônibus, ou dirigir até lá se você tem carro que, cá entre nós, não é o caso de muita gente mas...”.
            De repente, um grito irrompeu do corredor, parecendo cortar o próprio ar, sufocando todos os outros sons, até que só houvesse silêncio... O que foi um alívio! Aquilo fez o Felix calar a boca, mesmo que só por uns poucos instantes. E também eu não tive que ser rude e fechar a porta na cara dele que nem eu estava prestes a fazer. Tudo deu certo no final!
            Mas de volta ao grito assustador...
            Eu pisei pra fora do apartamento o mais rápido que pude, arrependendo-me no mesmo instante. O chão estava gelado e eu estava descalça. Soltei um leve e um tanto vergonhoso “ah!” na hora.
            “O que foi isso?”, eu tratei logo de perguntar sobre o grito antes que Felix se propusesse a pegar meus chinelos para mim.
            “Provavelmente mais algum invasor”, ele respondeu como se fosse a coisa mais natural do mundo.
            “Hein?”, eu ergui uma sobrancelha e encarei o garoto. Esperei ele soltar uma risada e falar que era uma brincadeira, mas não aconteceu. “Você tá falando sério?”.
            “Uhum, acontece mais do que você imagina por aqui...”, Felix continuou com o tom calmo e casual. “As paredes do Residencial são bem baixas, dá pra escalar sem problemas. A cerca elétrica também não impede ninguém, até porque acho que ela nunca funcionou. E os vigias, bem...”, ele soltou um breve riso. “Eles não são lá muito bons em vigiar, sabe? Isso sem contar com a parede quebrada lá nos fundos...”.
            “É, demoraram alguns bons minutos pra abrirem o portão pra mim quando cheguei mais cedo...”, concordei um tanto irritada com a parte do vigia. Eu odeio ficar parada esperando. Mas depois eu consegui focar no mais importante: “Bem, a segurança desse lugar parece uma merda. Queria saber disso melhor antes. Talvez eu teria me preparado melhor para um assalto sabendo disso com antecedência”.
            “Nem sempre são assaltos...”, ele murmurou.
            Ok, agora, no momento em que escrevo essas palavras, eu sei muito bem o que Felix queria dizer com aquilo. MAS PUTA QUE O PARIU. Na hora eu gelei, já esperando o pior destino possível. O JEITO QUE AQUELE ARROMBADO FALOU TAMBÉM NÃO AJUDOU EM NADA. Sério. Parecia que a voz dele tinha se tornado mais sombria por uns poucos instantes, quase como se outra pessoa falasse em seu lugar.
            Mas enfim... Eu como qualquer pessoa sensata que estivesse no meu lugar levei uma mão pra dentro do direito bolso de minha calça, debaixo da barra de minha camisa, alcancei minha faca, e sugeri:
            “Não seria melhor voltar pra dentro de casa...?”.
            Antes que eu pudesse tentar falar mais alguma coisa, mais um grito ecoou pelo prédio. Dessa vez, mais longo e estridente que o último, sumindo de repente, como se a voz tivesse sido roubada.
            “Não”, disse Felix. Demorei uns instantes pra perceber que aquele era a resposta dele pra minha pergunta. Ele então olhou pra mim e sorriu. “Acho que o sistema de segurança do prédio ta dando um jeito nos invasores”.
            Sistema de segurança?”, perguntei, sentindo como se eu não tivesse entendendo alguma piada interna do prédio. “Achei que nem tinham câmeras de segurança aqui depois de tudo o que você disse...”.
            Então, um terceiro grito soou, muito mais grave e profundo do que os dois últimos. Pareceu ter vindo de mais perto também. De muito mais perto. E também... Aquilo não soava como uma pessoa. Era parecido, mas não era humano. Tinha certeza daquilo.
            Mas antes que eu pudesse comentar, um novo som preencheu os corredores do prédio.
            Era diferente de tudo o que eu já tinha ouvido. Pelo menos, de tudo que eu já tinha ouvido pessoalmente. Parecia a mistura de um rosnado de um pastor alemão com um grunhido de um porco. Com um pouco de um grasnado também, eu acho. Era impressão minha ou tinha um leve relincho misturado no meio? Eu já não sabia mais exatamente o que eu ouvia, pra ser sincera, mas sabia de onde vinha.
            “O andar debaixo...”, murmurei enquanto levava uma mão ao bolso.  “Está vindo do andar debaixo...”.
            Passos vieram em seguida. Vagarosos, eles subiram os degraus da escada. Um a um. Pesados. Sem ritmo algum. Ecoando mais alto a cada pisada sobre os azulejos. Droga... Eu podia sentir meu coração batendo frenético, tentando acompanhar aquela melodia caótica. Meus dedos se firmaram com afinco no cabo de minha faca escondida. Eu ia ter que usá-la. Não tinha jeito. Eu podia sentir...
            E daquela eternidade feita de segundos intermináveis, veio uma criatura.
            A primeira coisa que eu vi foi sua mão, terminando de puxar a criatura andar acima. Mais pálida que uma lua cheia, com garras negras que mais pareciam facas em cada dedo, aquela coisa deveria ser facilmente maior que minha cabeça... E Sentia que poderia esmagá-la se tivesse a chance.
            No instante seguinte, pude ver o resto da aberração. O corpo era magro e alto demais, talvez com uns dois metros e meio de altura. A pele tão pálida quanto a mão que acabei de comentar , parecia dura, feita de rocha ou de algum tipo de metal, com a textura como a de um crocodilo. E a cabeça... Era a pior parte. Nada tinha nela a não ser um único e gigantesco olho pulsante e avermelhado, encarando-me fixamente, quase como se estivesse esperando eu começar a correr para poder me caçar.
            Porém... Eu não havia visto, de fato, o corpo inteiro do monstro.
            Assim... Quando aquilo subiu as escadas, ele vou presumir que era um ele estava de lado em relação a mim. No instante seguinte, ao se virar, tive acesso a duas novas informações.
            A primeira era que ela tinha uma boca. Só que não ficava na cabeça dele; ficava bem no meio do abdômen... Era bem grande e cheia de dentes... E também abria na vertical. Era uma visão única, sem dúvida.
            A segunda informação era: ele tinha um buraco no meio do peito do qual escorria algum líquido verde gosmento , grande o suficiente para eu atravessar minha perna ali sem problemas. Porém... Aquilo não era normal.
            Como você pode ter certeza que aquilo não era normal no meio de uma aberração daquelas, de um monstro que você nunca antes havia visto?”, você pode estar se perguntando. E eu entendo o porquê dessa pergunta. É uma boa pergunta. A resposta, entretanto, é bem simples: o bicho caiu morto logo em seguida.
            A boca vertical do monstro se abriu ligeiramente, soltando um último e fraco grito, quase um assovio. E então, a criatura albina caiu para frente, inerte, acertando o chão frio com seu torso e olho gigante.
            E como se não fosse coisa demais para se processar de uma vez, o cadáver começou a derreter bem em frente aos meus olhos, deixando nada a não ser uns restos de espuma esverdeada.
            Mano...
            Foi tanta coisa acontecendo que eu nem me toquei que havia outra criatura no corredor.
            Senti um calafrio percorrer minha espinha. Metros à frente, envolto pelas sombras, havia um vulto nos observando com um par de olhos brilhantes. Eu não sabia dizer o que era... Não conseguia saber seu tamanho, muito menos distinguir sua forma no meio daquela escuridão. Por quanto tempo aquilo estava ali, parado? Apenas nos encarando? Nos estudando?
            Felix, que estava quieto demais, resolveu me lembrar que ainda estava ali, do meu lado. E o que ele fez em seguida, meu caro leitor, exigiu toda a minha força de vontade para não enfiar a minha mão na cara dele.
            “GIZMO!”, o garoto gritou de repente. “VEM AQUI, MEU LINDO!”.
            A porra do susto me fez dar um pulo pra trás.
            “VOCÊ PERDEU A NOÇÃO CARALHO?”, propus a reflexão para Felix.
            Agora era ele quem estava assustado. Bem feito.
            “Eu...”, a voz dele desafinou por um momento. “Eu só estava chamando o Gizmo...”, Felix respondeu por fim, sem jeito algum. Seus olhos, então, pareceram se transformar nos olhos de um vira-lata abandonado numa noite escura pedindo um pouco de comida. “Desculpa ter te assustado, Laila. Não foi minha atenção, eu juro...”.
            Mano...
            Como que se fica irritada com uma cara daquelas?
            Não se fica. Essa é a resposta.
            Ah, é... Creio que meus gritos de ódio assustaram o tal do Gizmo... Porque ele sumiu. Não havia mais um par de olhos nos encarando.
            “Relaxa...”, eu suspirei. Então, pensei um pouco antes de perguntar: “Esse tal de Gizmo é o quê? Um cachorro do prédio...?”. Logo que eu terminei de falar, acabei me tocando: “Ele que é o tal sistema de segurança do prédio?”.
            “Sim e não...”, Felix começou a responder. “Sim, ele é o sistema de segurança. Mas... Não, ele não é bem um cachorro, sabe? Ele é... Hmm...”, o garoto coçou o queixo, pensativo, tentando achar as palavras certas. Mas acabou não precisando. “Olha!”, ele exclamou animado, apontando para trás de mim. “Ali está ele!”.
            Eu me virei e me deparei com aquilo, sem ter ideia de como reagir. Porque meu Deus... Eu não estava preparada pra ver o Gizmo tão de perto. Tipo... Nem um pouco preparada.
            Pra começo de conversa, a criatura certamente não era um cachorro. Ele estava de pé sobre duas patas posteriores. Seus longos braços quase tocavam o chão sem esforço algum. A longa cauda balançava frenética, quase como se tivesse vida própria. No primeiro momento, não consegui distinguir se ele tinha pelos ou penas talvez ambos? , nem mesmo a bendita cor que aquilo tinha parecendo variar entre tons de verde escuro e preto —, mudando a cada instante. Era como se eu sentisse um mal estar só de olhar para aquela confusão... E EU NEM COMECEI A FALAR DO ROSTO. MEU DEUS. O ROSTO. Aquele rosto mais parecia uma máscara. Era rígido, com uma boca que não aparecia quando fechada e dois grandes olhos amarelos que pareciam brilhar. Ok, grandes é um puta de um eufemismo. Aqueles olhos eram enormes, completamente desproporcionais ao resto da cabeça, que parecia ter crescido numa forma que lembrava um coração um coração bonitinho, aquele que simboliza o amor e tal, não um coração de verdade, só pra deixar claro só para comportar as duas colossais órbitas.
            Mano, que bicho estranho da porra.
            Gizmo, de repente, começou a se mover quase como se não tivesse peso. Nem seus passos faziam barulho. Se eu tivesse piscado, não teria visto a criatura subir nas costas de Felix e abraçar seu peito, segurando-se no garoto como se fosse uma mochila bem estranha.
            “Seu fofo”, falou Felix com a típica voz de bebê que praticamente todo mundo usa quando fala com seu bichinho de estimação. Em seguida, ele estendeu a mão para trás e fez carinho da cabeça de Gizmo. “Sempre manhoso você, não é?”, o garoto soltou um breve riso após o bicho emitir algum som que, talvez, sob uma perspectiva diferente da minha, alguém pudesse achar fofo ao invés de inquietante.
            E por alguns momentos fiquei ali, parada, apenas observando aquela troca de afetos entre um boneco de plástico que ganhou vida e uma coisa que parecia um grande Gremlin depois de cair na água.
            Espera aí.
            SERÁ QUE FOI POR ISSO QUE DERAM O NOME DELE DE GIZMO?    Caralho, só pensei nisso agora que tô escrevendo. Meu Deus do Céu. Como não percebi isso antes? Mano...
            “Então...”, foi a primeira palavra que saiu de minha boca após um tempo. “Mascote interessante”, eu disse sem muita cerimônia. E também sem saber o que mais falar.
            “Ele é mais que só um mascote”, disse Felix, ainda afagando a cabeça de Gizmo. “Ele é um membro muito importante da nossa família aqui do Residencial Lavanda!”, o garoto falou com orgulho na voz. Pela cauda do bicho em suas costas balançando ainda mais rapidamente, vou presumir que ele gostou do elogio, do mesmo jeito que presumi que ele funciona que nem um cachorro.
            “Mas é claro”, eu sorri, ainda com a mão no bolso. “Estou curiosa...”, eu falei, ainda observando atentamente a criatura, pensando por qual pergunta começar. “Como exatamente o Gizmo apareceu por aqui?”.
            “Olha... Foi bem do nada”, Felix começou a responder tranquilamente. “Uma amiga minha daqui do prédio Agatha, o nome dela , achou ele um dia revirando o lixo, procurando comida. Ela ofereceu um pouco de comida pra ele e o bichinho foi se afeiçoando a ela, sabe? Claro que eu e os outros estranhamos no começo. Não vou negar. Nem sabíamos o que era aquele bicho. Ainda nem sabemos ao certo. Mas... A Agatha... Ela teve um bom pressentimento sobre ele. E... Aquilo era o suficiente para nós começarmos a interagir com esse serzinho pitoresco. E de repente, todo o nosso grupinho de amigos não parecia mais conseguir viver sem ele...
            “Entendi”, eu disse com um sorriso, pensativa.
            Ambas as vezes em que Felix mencionou o nome dessa garota, dessa tal de Agatha, ele soou diferente. Anormal, pra dizer o mínimo. Era como se tivesse algo entalado na garganta dele, algo que ele queria contar... Mas que evitava por algum motivo.
            Eu ia fazer ele contar o segredinho dele.
            “E essa Agatha simplesmente começou a cuidar dele?”, perguntei, realmente curiosa. “Começou a cuidar dessa coisa que bem podia arrancar a cara dela fora?”.
            “Ela é assim mesmo”, Felix afirmou num tom sereno. Gizmo agora estava em seus braços, quase como um bebê, tendo sua barriga coçada. Não acho que o bicho sairia de lá tão cedo. “Sempre carinhosa, sempre se arriscando pelos outros, até pelos desconhecidos...”, o garoto continuou falando com um sorriso sincero no rosto. “Às vezes nem parecia real, sabe? Ela parecia saber quando você estava triste, e aí largava tudo o que ela estava fazendo pra te ajudar como podia... Parecia iluminar um ambiente só de entrar nele, trazendo uma energia tão boa... Parecia arrancar sorrisos de quem quisesse, sem esforço algum... Parecia um anjo que havia entrado na minha vida... Um anjo que entrava na vida de qualquer um que tivesse sorte de conhecê-la... Até que...”.
            Felix parou. Ele ficou em silêncio por alguns instantes, parado ali, apenas fazendo carinho na barriga do Gizmo. Eu demorei um pouco pra perceber os fios de lágrimas que desciam por suas bochechas.
            “Felix...”, eu comecei a falar, mas não sabia como continuar.
            “Desculpa...”, ele falou com a voz chorosa, colocando Gizmo no chão com cuidado para poder secar as lágrimas em seu rosto. “Eu deixei me levar...”.
            “Não precisa se desculpar”, eu disse num tom carinhoso, sorrindo para o garoto em seguida. Fiquei contente em ter meu sorriso retribuído. “Eu que fiquei fazendo perguntas que não devia...”.
            “Bobagem”, Felix soltou uma risada baixa. “Você não falou nada de mais. É só que...”, ele suspirou, fazendo com que seu sorriso desaparecesse em seguida. “Eu sinto muita falta dela...”. Os olhos dele vagaram para além de mim, para a porta fechada do meu apartamento. “Ela morava aí...”.
            “Bem onde eu tô morando?”, perguntei enquanto senti um leve mal-estar.
            Felix assentiu, sem dizer nada.
            “Meu Deus...”, eu murmurei, respirando fundo e exalando com calma em seguida. Meus olhos se dirigiram para os do garoto então. “Se não for causar incômodo... Você pode me dizer o que aconteceu com a Agatha?”.
            “Ela... Simplesmente desapareceu”, ele respondeu claramente desanimado. “Faz dois meses já... Por isso que o apartamento já estava para ser alugado de novo. Pedimos para o locador para que pudéssemos ficar com as coisas dela, para caso a Agatha voltasse... Ele permitiu. Eu e meus amigos dividimos as coisas dela entre nós, esperando...”.
            Felix parou de falar. Seus olhos estavam marejados. Pude sentir a dor em sua voz ao dizer suas últimas palavras. Por isso, eu esperei mais alguns momentos antes de falar o que eu tinha que falar:
            “Casos de desaparecimento estão longe de serem incomuns nesta região...”, minha voz estava séria. “Geralmente, entretanto, as vítimas... Elas reaparecem sozinhas pouco tempo depois... É difícil de explicar, mas... Muita merda estranha acontece por aqui...”.
            “É, muita merda mesmo...”, o garoto concordou com um leve sorriso, que logo se dissipou. “Mas nós nunca achamos que vai acontecer conosco... Ou com quem é próximo de nós...”. Os olhos dele, de repente, fixaram-se nos meus. Em silêncio, Felix parecia me analisar, calmamente, pensando por qual pergunta começar. Mas, enfim, ele perguntou: “Quem exatamente é você, Laila?”.
            Quem sou eu?”, eu sorri. “Alguém que, com sorte, poderá ajudar”, respondi, tentando soar o mais confiante possível. “É o meu trabalho, afinal de contas”.
            E, pelo visto, minha confiança teve resultado. Quando vi um olhar esperançoso no rosto de Felix, resolvi fazer uma promessa que eu não sabia se poderia cumprir:
            “Nós vamos achar a Agatha”.

sábado, 13 de outubro de 2018

Poema - Leviatã



Uma vez ouvi que a esperança
Era o perfeito oposto do medo
Dois inimigos unidos numa dança
Com deveras imprevisível enredo
Que transforma doce lembrança
Num episódio de gosto azedo

Mas nunca antes consegui entender
Nunca antes em toda sua plenitude
Nunca até que eu pudesse enfim ver
De um pesadelo a real magnitude
Quando ele demonstrava seu poder:
A negação de todas as virtudes

Então senti o ar pesar ao meu redor
E um vento gélido soprou na terra
Quase como se anunciasse algo pior
Que sentimentos torpes desenterra
Uma dolorosa certeza cada vez maior
 De que o amanhã pode ser uma guerra

Agora posso ver o medo claramente
Estampado no rosto daqueles que amo
Reduzidos a mais um bando descrente
Pelo sofrimento de vocês eu exclamo
Pois não aguento mais este ar doente
Por seus sorrisos de antes ainda clamo

E ainda há aqueles que tentam resistir
Motivados por um desespero dos mais puros
Tentam se segurar em algo para não cair
Não querem ser dragados pelos mares escuros
Então inventam a luz na figura de um vizir
Num falso deus que os faça se sentir seguros

E o tempo galopa no seu ritmo incessante
Marcha pronto até a hora da verdade
Se tornando cada vez menos distante
A trilha até o olho dessa tempestade
Se tornando cada vez mais agonizante
A espera da iminente calamidade

Chamas eclodem por todos os lados
O fogo ardente de uma conflagração
O ódio ruge com discursos inflamados
Dois os lados que acusam um vilão
Queimando outros por falsos pecados
Tudo queima, mas é em vão...

Porque no final só nos resta aguardar
A decisão sobre quem subirá ao divã
Juntaremos forças de novo para suportar
A mais nova face desse velho leviatã
Outra batalha ecoará nesse mesmo lugar
Se quisermos levantar mais um amanhã

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Poema - Jornada



Nessa jornada que um fim não parece ter
Nos perdemos mais do que gostaríamos
Dessa guerra da qual não podemos correr
Nós perdemos mais do que admitimos
Num labirinto que se ergue a cada amanhecer
 Procuramos uma saída que proferimos
Caindo exaustos no chão a cada anoitecer
Sem nos questionar de como agimos

Porque talvez errado estamos correndo
Explicaria por que estamos tão ofegantes
Perseguindo miragens que estamos vendo
Mas que se tornam cada vez mais distantes
Nossas forças vão então se desvanecendo
Extinguindo-se dos nossos semblantes
Enquanto uma dor vem nos preenchendo
E por fim nos esquecemos do antes

Antes de carregarmos o peso do mundo
Antes de nos moldarem a uma imagem
O que será que somos bem lá no fundo?
Como é a alma por debaixo da blindagem?
Deixamos o corpo se tornar moribundo
Para satisfazer algum outro personagem
Uma amálgama com um caráter imundo:
O esmagador pedágio da nossa viagem

Nossos sonhos foram então apagados
À força arrancados por mãos alheias
Na esperança de cairmos desamparados
Num deserto soterrados por suas areias
Sem olharmos para caminhos passados
Velhos túneis cobertos por densas teias
Impermeados por ideais abandonados
De vidas que antes pareciam cheias

A verdade tem outra face entretanto
A doce e sedutora nostalgia nos engana
Nos carrega até aquele velho canto
Nos vicia com uma ação tão mundana
Que nós nem mesmo esboçamos espanto
Quando a amarga tristeza nos esgana
Queremos apenas recorrer ao pranto
Sem almejar enxergar o nirvana

Pois de tudo do passado que enxergamos
De algo valoroso ignoramos a existência
Que há tanto tempo nós abandonamos
Por muito mais que falta de sapiência
Porque para sobreviver nós mudamos
Sacrificamos mais que nossa inocência
E de tão cegamente que nós lutamos
Acabamos por perder nossa real essência

Nos tornamos algo que não queremos admitir
   Um ser costurado como uma colcha de retalhos
Nos tornamos algo que desejamos é omitir
Um ser humano deixado em frangalhos
Alguém que escolheu por tanto se reprimir
Que só realmente se expressa por atos falhos
Alguém cheio demais de nadas para sentir
Algo real além da chegada de seus grisalhos

Mas as nossas histórias não precisam acabar assim
Pois pode ser recuperado aquilo que foi perdido
As centelhas de nossas chamas não chegaram ao fim
Então deixemos queimar o que não tem nos servido
Para podermos respirar sem sentirmos o gosto ruim
Daquilo que nos tem a essa torpe escuridão prendido
Seguiremos nosso caminho como quisermos enfim
E seremos quem nós sempre deveríamos ter sido

Não mais nos contentaremos com a mediocridade
Não mais nos tornaremos vazios para preencher alguém
Não mais ousaremos desistir na nossa própria vontade
Em prol de quem sempre nos trata com tamanho desdém
Reencontraremos nós mesmos no meio dessa tempestade
Para não mais do acaso ser apenas mais um mero refém
E não mais tentaremos nos esconder da realidade
Porque nossa bravura finalmente nos cai bem

Agora enfim podemos nos olhar nos espelhos
Sem termos de nos envergonhar do que vemos
Sem mais termos de cair derrotados de joelhos
Pedindo por perdão pela vida que escolhemos
Porque já ouvimos os mais loucos conselhos
E de nós nunca mais nos arrependeremos
Após sangrarmos tantos rubis vermelhos
Podemos nos orgulhar de como vivemos

E com essa força na qual podemos contar agora
O mais pesado dos fardos já não pesa mais nada
A culpa dos incontáveis erros cometidos outrora
Apenas nos fortalece a cada verdade revelada
Enfrentando sem medo os demônios de agora
Pois os do passado não mais sobrevivem à alvorada
Anunciando com seu brilho a chegada da nossa hora:
A hora de sorrirmos para enfim viver a nossa jornada