Capítulo 5
Um tiro. Então dois. Enfim três.
As balas acertaram as costas de Gideon. Elas pararam em sua
blindagem, mas o desgraçado sentiu o impacto dos projéteis. Nenhum dano
sofrido, apenas marcas foram deixadas em sua armadura: mais do que o suficiente
para irritar o canalha. Alguém estava atrapalhando seu momento especial, alguém
que seria punido por isso.
Gideon se voltou para trás com voracidade, exibindo seus
afiados dentes, fuzilando o adversário com seu olhar enlouquecido.
Em vão.
Aquilo não intimidaria o desafiante.
Cabelos grisalhos. Barba rala também grisalha. Um metro e noventa de altura. Porte físico de
um lutador. Uniforme azul-marinho. Distintivo no peito. Revólver em mãos. Olhar
ainda mais sério que o de costume. Expressão ainda menos amistosa que da última
vez.
—
Afaste-se de minha filha, seu doente. —
Ordenou Martin. —
Agora!
Gideon sorriu. Antes que ele pudesse abrir a boca, o
revólver foi disparado mais três vezes.
Tudo o que o comandante da Inquisição teve que fazer foi
cruzar os braços. Simples balas de revólver nunca penetrariam aquela blindagem.
Os membros acabaram formando um escudo perfeito para sua face. Enquanto pudesse
proteger a única parte do corpo que estava exposta, a derrota do maníaco era
improvável.
Então, os seis disparos foram feitos. O policial tinha que
recarregar sua arma. E Gideon sabia muito bem disso.
Um movimento rápido. O comandante sacou sua metralhadora.
Apontou a arma para frente. Lambeu os lábios com gosto. Levou um dedo nervoso
até o gatilho. Tudo em uma mera fração de segundos. Tudo por obra de seu
instinto. Tudo antes que sua visão pudesse focar em seu alvo.
E, no final, seus olhos não foram rápidos o suficiente:
quando Gideon percebeu, Martin estava a menos de um metro de distância
A mão do policial foi até o cano da metralhadora. Um
movimento rápido. O dedo do maníaco apertou o gatilho. Uma rajada de balas foi
disparada. Todos os projéteis atingiram o teto.
Gideon estava atônito. Seu olhar petrificado observava a mão
que, sem esforço, havia deslocado o cano da arma o alto. Foi um ato que fez o
comandante errar todos os disparos. Foi um ato que abaixou sua guarda por tempo
demais.
Com ambas as mãos, Martin puxou a metralhadora para si,
arrancando-a das mãos do adversário. Sem tempo para reagir, Gideon sentiu a
pesada arma golpeando a lateral de sua cabeça como um martelo. Se não fosse
pela blindagem, ele teria caído. Graças a ela, pôde permanecer de pé para
receber o segundo golpe.
Um urro. Com isso, Martin anunciou o próximo movimento. Ele
levantou a arma para o alto e desferiu um golpe com toda a sua força. O ataque
derrubaria o alvo, com blindagem ou sem blindagem, prensando-o contra o chão.
Isso é o que teria acontecido se tivesse tido sucesso.
O policial demorou demais. Gideon era ágil, não
desperdiçaria uma chance daquelas. Ele apenas teve que dar um passo largo para um
lado. Assistiu Martin errar seu golpe digno de um bárbaro, contemplando como
atacaria em resposta.
Nem um segundo se passou. Mas foi mais que o suficiente.
Gideon levou uma mão até o ombro do oponente, impulsionando seu joelho contra o
rosto de Martin. O golpe o acertou em cheio. Fez o policial atordoado cambalear
para trás. Sua cabeça baixa foi o alvo da cotovelada que veio em seguida. O
abdômen foi atingido por um pontapé então. Um chute giratório acertou suas mãos
por fim, fazendo-o derrubar a metralhadora para o lado.
—
Melhor assim. —
Gideon riu. — Não
precisamos de armas de fogo atrapalhando. —
Ele levantou os punhos, assumindo uma postura de luta. — Vamos lutar como os guerreiros que somos!
—
Verme... — Martin
rosnou e cuspiu no chão. —
Alguém tão patético e vil nunca será um guerreiro de verdade. Aceite isso.
O comandante da Inquisição mostrou os dentes. Irritado, decidiu
não gastar mais palavras com o inimigo. Martin estava grato por isso.
Seus punhos se cerraram. Os batimentos cardíacos aceleraram.
O sangue de ambos começou a ferver. O tempo desacelerou para uma última troca
de olhares: facas que arremessaram um contra o outro.
Então, ele voltou a correr.
Gideon avançou. O exibicionista pretendia demonstrar todo o
seu repertório de ataques. Utilizar sua agilidade, seu grande trunfo, em cada
instante da luta. Sequências ensaiadas mesclavam chutes, socos, cambalhotas,
esquivas, cotoveladas e joelhadas. Cada golpe seria uma agulhada contra o
adversário: fracos em potência, porém, certeiros. Ele cansaria o adversário com
cada acerto. Faria o policial cair de joelhos, vulnerável para seu último
movimento.
Martin resistia. Ele era o mais forte entre os dois, é
claro. Porém, seus socos e investidas acabavam muitas vezes por errar o ligeiro
alvo. Quando acertava, quase sempre não alcançava a face do desgraçado. Quando
suas mãos atingiam a grossa blindagem do inimigo, o dano parecia ser maior no
policial do que no maníaco. Os nós de seus dedos começavam a latejar de dor,
ardendo após cada impacto. Era um preço alto a se pagar por apenas acabar
deslocando o adversário para o lado, tirando seu equilíbrio por um breve
instante ou impedindo apenas um simples chute. Enquanto isso, seu corpo seguia
sendo castigado por ataques que não conseguia desviar. Entretanto, ele continuava
lutando. Cada vez seu punho esmurrava o rosto asqueroso de Gideon, o guerreiro
encontrava forças para se manter em pé no duelo, ansiando pela próxima
oportunidade de desfigurar mais um pouco o desgraçado.
E a Rainha apenas observava. Estava sob um estado de torpor.
Não mexia os braços. Não mexia as pernas. Não mexia os lábios. Ela estava
apenas lá, parada, apavorada. Sentia medo por si. Sentia medo pelo pai. Se a
luta continuasse daquele jeito, o veterano policial não sobreviveria. Gideon
sabia disso. Sophia sabia disso. Martin sabia disso.
—
Nada mal, velhote... —
O comandante reconheceu, aproveitando uma pausa espontânea na luta. Ambos os
combatentes estavam cansados, precisando recuperar o ar. Seu adversário, porém,
era o que estava mais abatido, com roupas e face igualmente surradas. — Não lutava assim fazia um
tempo. Quase havia me esquecido como era uma luta de verdade.
—
Queria poder dizer o mesmo. —
Martin retrucou arfante.
—
Hm... — Gideon bufou
acrescentando uma risada em seguida. —
Tinha certeza que você diria algo do gênero. Sei que você desaprova meus
sentimentos em relação a sua filha, mas... —
Com um movimento rápido, ele sacou a faca da cintura, girando-a frenética entre
os dedos. — Você não
tem como me parar. Ela vai ser minha assim que eu me livrar de você. E,
então... — Sussurrou.
— Eu nunca mais vou
deixá-la sair de perto de mim...
A Rainha sentiu um aperto no peito. Seu coração disparou.
Sentiu um fogo queimar dentro de si. Ela queria lutar. Mas ainda não conseguiu
se mover. Algo ainda faltava para superar o medo que a pressionava contra o
chão.
—
Demorou mais do que eu imaginava pra pegar seu brinquedinho. — Martin estralou o
pescoço. — Mesmo
assim... Você não vai conseguir tocar um dedo na minha filha, seu riquinho
escroto.
Assim a luta prosseguiu. Os dois homens partindo para cima
do outro, urrando feito animais selvagens. Mas o ritmo já não era mais o mesmo.
Isso ficou claro em questão de segundos.
Martin acertava ainda menos socos agora. Ele estava,
naturalmente, mais preocupado em se manter vivo, recuando perante as investidas
do adversário, bloqueando facadas com seus membros quando não tinha outra
solução. E o veterano sentia sua derrota se aproximando. Cada golpe da faca de
Gideon parecia enfraquecer um pouco mais o policial, tirando suas forças mesmo
com o mais superficial dos cortes. Gotas de sangue logo começaram a verter das
costas, das pernas, dos braços. Suas roupas em pouco tenho estavam dilaceradas,
salpicadas de rubro.
Era como assistir um touro sendo morto lentamente por um
toureiro. E Sophia não conseguia mais ver aquilo. Não aguentava mais ver o pai
sofrer.
Não demorou para que Martin caisse de joelhos.
—
Finalmente sentiu o peso da idade, hein? —
Gideon riu. — Não se
preocupe. A dor vai passar. Só... Tente não se mexer muito, ok...? Vamos acabar
logo com isso...
O guerreiro se levantou uma última vez. Ele arfava
pesadamente. Porém, não pretendia parecer fraco, principalmente não nos seus
últimos instantes de vida. Martin abriu os braços esperando o último e
inevitável ataque.
Gideon avançou. Seus frios olhos focados na expressão
resignada do adversário. Seus pés ágeis corriam como se não atritassem com o
chão. Sua mão apertava o cabo da faca com afinco. Sua língua lambia seus
lábios, saboreando o momento.
Um movimento rápido e certeiro. Foi o suficiente para cravar
a faca no peito do guerreiro.
Martin sentiu a fria picada da lâmina invadindo seu corpo.
Sentiu também a dor ardente que parecia se espalhar pelo seu sangue. Ele,
porém, apenas trincou os dentes, suprimindo o grito de dor, guardando-o para si
em silêncio.
Sophia, por outro lado, não conseguiu fazer o mesmo.
A Rainha Vermelha soltou um grito agudo, uma explosão sonora
que estremeceu a débil sala onde estavam. Nem se lembrava a última vez que agiu
assim, tão desesperada. Nunca que uma reação tão exagerada e irracional
partiria dela. Pelo menos, não com ela sendo a vítima. Aquela mulher já tinha
chorado todas as lágrimas que podia para si mesma, não mais sentia pena de si.
Porém, para seu pai, a história era outra. Ele era inocente. Ele foi puxado
para aquele inferno. Ele não tinha que sofrer junto com a filha. Ele não tinha
que morrer por sua cria. Era isso o que Sophia sentia.
Mas ela estava errada. Pelo menos, era o que Martin diria.
Se tivesse tempo, se tivesse forças, explicaria o porquê da melhor maneira que
conseguisse. Mas não podia. Não tinha o tempo. Não tinha as forças. Então, teve
que recorrer a uma solução mais rápida, algo que esperava que funcionasse com
Sophia mesmo naquela situação.
Martin sorriu para a filha. Um ato raro vindo daquele homem,
tão raro quanto genuíno. Sophia conhecia muito bem o pai. Via nitidamente a
sinceridade no gesto, o brilho nos olhos que acompanhava. Era mais que um simples
sinal de afeto, nada que pudesse ter surgido de um momento para o outro: era
algo que evoluiu, que foi se tornando mais forte a medida que o elo dos dois se
fortalecia.
Era respeito, reconhecimento do potencial de sua criança,
confiança nas escolhas da cria, orgulho de como a filha lidava com vitórias e com
derrotas, zelo pela guerreira que havia criado.
Não se podia fingir algo como aquilo. Sophia bem sabia.
A Rainha sorriu de volta para o pai. Ele assentiu.
As mãos de Martin envolveram o pescoço de Gideon. A
blindagem impediria que o comandante fosse estrangulado, mas nunca foi essa a
intenção. O policial atacou de imediato com uma cabeçada. Não teve como o alvo
escapar. O golpe atordoou o inimigo. Porém, o guerreiro sabia que não
conseguiria finalizá-lo. Tinha forças apenas para um último movimento. E o fez
sem hesitar, agarrando o adversário pelos ombros e o arremessando para o lado.
Gideon cambaleou até cair de joelhos. Ele rangeu os dentes.
Levantou-se o mais rápido possível. Queria rachar o crânio de Martin com as
próprias mãos, fazê-lo sofrer um pouco mais antes que o ferimento da faca
ceifasse sua vida por fim. Só não esperava o golpe que acertou sua face.
Foi um soco rápido. E potente. Seus olhos nem haviam
conseguido focar no que o havia acertado. Quando sua visão se tornou menos
turva, pôde identificar um soco inglês de bronze acertando sua boca,
arremessando-o para trás.
As costas de Gideon bateram no chão. Sentiu o ar fugindo dos
pulmões com o impacto. O ataque foi ainda mais forte que o anterior, deixando-o
gemendo deitado no piso de madeira. Ele mal pôde reagir quando a Rainha se pôs
por cima dele.
Uma mão puxou sua cabeça pela mandíbula, forçando o
comandante da Inquisição a olhar Sophia nos olhos. Não havia mais medo neles,
só raiva. E aquilo petrificou o canalha.
O soco inglês martelou a cabeça de Gideon contra o chão em
seguida. E mais uma vez. E outra. E mais uma.
E então ela parou de contar.
A Rainha não pretendia parar tão cedo. Desferiu soco após
soco com destreza. Não parecia ter fim.
O chão de madeira rangia com cada golpe dado. O rosto de Gideon se
retorcia com cada impacto. Seus dentes trincavam. Seu queixo rachava. Seu nariz
quebrava. Sua pele rasgava. Sua face afundava. O sangue vertia. Tingia o já
desfigurado rosto. Encobria os próprios olhos. Coloria a mão que atacava.
Respingava na mulher tomada pela fúria.
Gritos escapavam de sua garganta. Sophia não mais podia se
controlar. Sua dor esvaia de seu corpo a cada rugido. Uma dor fermentada por
tanto tempo, com tanto ódio, era expulsa a cada ataque, expulsa a cada urro. Tomada
por um frenesi, a Rainha nem mais enxergava. Sua visão foi se tornando turva
pouco a pouco, até ser completamente cegada pela raiva. Felizmente, não mais
precisava ver. Ela sabia onde bater. Sabia como bater. Seus golpes se tornavam
mais precisos, mais rápidos, mais fortes a cada acerto, castigando
implacavelmente a face do seu torturador.
Ela prosseguiu sem consciência. Não mais percebia o que
fazia Apenas fazia.
Somente parou quando a chuva começou a cair.
As gotas geladas acertaram o rosto suado de Sophia. Ela arfava.
Respirou fundo. O ar parecia mais leve. Olhou para cima então, admirando a
garoa que roubava-lhe o calor, as águas que lavavam o sangue do corpo e a fúria
da alma.
Olhou para as gotas que caíam sobre Gideon. A armadura quase
intacta após o confronto era um primor. Agora podia admirá-la com calma. Mas
não o fez. Seus olhos passaram rapidamente por onde o rosto de predador deveria
estar. Uma poça de sangue com aspecto enlameado transbordava para além da
blindagem de metal.
Foi feito o que tinha que ser feito.
O olhar de Sophia enfim vagou até Martin. E por lá repousou
por alguns instantes, tempo que pareceu durar mais que deveria, até que
conseguisse forças para se levantar.
Calmamente, a Rainha caminhou até o corpo do pai. Memórias
atacaram sua mente. Ela se ajoelhou perante o homem, estudando seu rosto,
tocando-o uma última vez com delicadeza. A expressão calma. Os olhos cerrados.
O sorriso satisfeito. Sophia teve que retribuir o sorriso.
—
Morrer com o senso de dever cumprido... —
Falou enquanto se sentava ao lado de Martin. Levou uma mão até um bolso com
calma. A ideia de acender um cigarro passou por sua cabeça, porém, logo foi
embora com seus dedos cessando a busca pelo isqueiro. O cheiro nunca agradou o
pai. — Deve ser bom,
né?... Saber que você fez o seu melhor... E que foi o suficiente... — Ela riu baixo. — Será que eu consigo fazer
isso também, pai...? Fazer como você fez...?
Sophia olhou para Martin. Lágrimas começaram a escorrer de
seus olhos. Então, olhou para o alto, deixando que elas fossem lavadas para
longe pela chuva.
—
Para morrer em paz... —
A Rainha continuou. —
Eu tenho que fazer mais algumas coisas. Coisas que não vão ser fáceis. Eu sei
disso... Eu... — Seus
olhos voltaram para o corpo de Martin e, então, seguiram até o de Alexander. — Eu tenho que ser forte...
— Respirou fundo,
soltando o ar com calma em seguida. —
Mais forte... Forte sozinha... Forte para mim... Forte para os outros... — Seu olhar se perdeu na chuva. — Mas... Será que eu consigo...?
— Ela ficou em
silêncio por alguns segundos. Então, soltou uma risada. — Não sei. Não sei mesmo... Mas vou descobrir.
Tenho que tentar.
Sem dizer mais nada, sem fazer mais nada, Sophia ouviu a canção
das gotas de chuva que caiam.