sábado, 31 de dezembro de 2016

Teaser 4A

Teaser 4A


Um flash de luz. A sala se iluminou. Algo começou a andar então, fazendo o piso de madeira ranger a cada passo dado. Os olhos atentos da besta vasculhavam. Seu focinho farejava o ar. Sua língua de serpente lambia os beiços. A sua infeliz presa estava lá, em algum lugar, escondida. Tinha certeza disso.
Dentro de um armário velho, John espiava pela fresta da porta. Ele observava os movimentos de seu caçador com temor. Seu coração acelerava à medida que a criatura se aproximava. Suas pernas tremiam além de seu controle agora. Sua visão ficava turva, querendo não mais ver o que via.
O desejo de desistir assombrava o homem. Abrir a porta, se jogar diante dos pés da besta e esperar por um fim rápido. Ele podia fazer isso. Mas não. O ímpeto tinha que ser controlado se quisesse sobreviver à noite. Vencer aquele jogo doentio uma só vez. Era tudo o que precisava, não? John não tinha certeza. Mas tinha que arriscar. Não podia perder as esperanças ainda.
O assobio veio então. Um som agudo, estridente, que se tornava mais alto a cada instante. Era a melodia que trazia o desespero, a música que trazia a dor. Algo que, não importava quantas vezes ouvisse, John não conseguia se acostumar. Seu corpo inteiro tremia, antecipando seu fim novamente.
John trincou os dentes, tentando não deixar um grito escapar. Suas mãos correram até os ouvidos numa tentativa desesperada de abafar o som. Ele sentiu o suor das palmas contra o rosto. Estavam trêmulas. Estavam sem forças. Estavam desconfortavelmente geladas.
Então, um calafrio percorreu sua espinha.
O ar se tornou gélido. Sua pele começou a perder a cor, perdendo a vida que tinha. Seu sangue começou a gelar, percorrendo suas veias como veneno. Não demorou para que cada membro de seu corpo fosse atingido, congelando lentamente enquanto perdia os sentidos.
Logo, não mais sentia. Não tinha mais a capacidade. O frio havia ido embora e, com ele, foi o controle do próprio corpo.
John olhou para os próprios braços. Eles haviam caídos, inertes, ainda presos aos ombros. E agora, suas mãos não mais protegiam seus ouvidos.
O frio quase fez John se esquecer do assobio.
O maldito som estava de volta. Agora, agulhas pareciam ser empurradas lentamente contra seus tímpanos, afundando para dentro de sua cabeça, causando o máximo de dor possível antes que a presa caísse sem vida.
John não aguentava mais. Ele queria desistir. Ele iria desistir. Ele tinha que desistir.
Sua boca se abriu. Um grito soou. O assobio parou. O tempo parou por um instante. A criatura, então, correu para sua presa.
Mas não foi na direção de John. O grito foi de uma outra pessoa. Algum desgraçado caiu numa armadilha deixada pela besta. Um infeliz devia estar com a perna presa por uma estada de metal naquele instante. John se lembrava daquela dor.
Ele respirou fundo. Tinha que se recompor. Agradeceu pela pobre alma que, sem saber, havia salvo sua vida mesmo que por um breve instante.

John tinha que voltar a correr. E assim o fez.

sábado, 24 de dezembro de 2016

Conto 22

Eu Deveria Estar Feliz?


Eu me lembro muito bem do rosto do garoto. Droga, não acho que poderia ser capaz de esquecer.
Lembro-me de estar andando de volta para casa, cinco anos atrás, pegando o trajeto que sempre fazia. Passava por algumas ruas consideradas não muito amistosas, mas, ei, tive sempre a sorte de não ser assaltado. E aquele dia não foi diferente. Só não esperava ver aquela cena.
Um grupo de garotos, três no total, espancava um quarto menino. Deveriam ter todos uns catorze anos. Eram da mesma escola já que vestiam o mesmo uniforme. Colegas de classe? Qual seria o desentendimento? Então consegui reparar no rosto do jovem estirado no chão e senti meu estômago embrulhando.
Vamos apenas dizer que a história de meu país tem passagens que me envergonham profundamente. Uma gente podre que discrimina com orgulho. Vermes que andam em bandos. Desgraçados saudosistas de uma época nojenta. Gente que eu não gostava de chamar de gente. Um povo que enxotava quem era visto como diferente.
Eu gritei. Acho que foi o mais alto que já consegui. De mim veio uma voz tão grave que quase não reconheci como minha. Foram ameaças mais que suficientes para forçar o trio covarde a correr para longe.
Com um sangue ainda fervendo, corri até o quarto menino. Ainda respirava. Graças a Deus.
Vi com receio os hematomas que se formavam. Temia que tivesse algum osso quebrado. Algum outro ferimento interno? Não sabia dizer. Admito ter me acalmado um pouco, porém, após verificar que o menino não sangrava. Mas, mesmo assim, eu estava nervoso. Aquilo tinha sido obra de meu povo, de jovens que eram o futuro na nação.
Eu estava triste. Mas logo o sentimento foi amenizado. Afinal, o garoto sorriu. Foi um sorriso belo, genuíno. Com calma, ele me agradeceu. Falou também que ficaria bem, que eu não deveria me preocupar. Assenti. Confiei naquelas palavras. O garoto tinha uma força que não era refletida pelo físico magro e ossudo.
Com passos lentos, porém, firmes, ele se foi, dizendo que voltaria para casa e que, no futuro, tudo daria certo.
No final, eu me senti bem. As poucas palavras do rapaz me fizeram bem. Talvez fosse um dom dele. Poderia ser um prodígio, alguém que seria grande no futuro. Foi o que pensei naquele dia cinco anos atrás.
E ontem, todo o episódio voltou para mim, uma memória quase perdida no tempo.
Tiros vindos de todos os lados. Gritos que eram sufocados pelos sons das explosões. Fogo que tingia o ar de alaranjado. Poças de sangue que cobriam o chão como lama após a chuva.
Era nesse cenário que eu me encontrava. Dentro de meu carro, eu tremia, temendo pela minha vida. Meus olhos estavam fechados. Minha testa contra o volante. Meu suor escorria gelado. Meus lábios moviam-se debilmente. Eles rezavam silenciosamente para um deus que eu havia pensado ter deixado de lado há muito tempo.
Eu queria que tudo acabasse. Não queria mais viver naquela guerra. Não queria mais viver naquele país. Não queria mais viver daquele jeito.
Os sons das balas rasgavam o ar. Por breves momentos desejei que uma me acertasse, orei para que meu fim fosse rápido, queria que aquela agonia chegasse logo ao fim. Porém, outra parte de mim não queria desistir tão fácil. Uma voz em minha cabeça traçava novos planos para o futuro, ela me acalmava lembrando-me de minha família, sonhos que eu poderia realizar ainda, objetivos que eu nunca tive coragem de realizar. Até o momento. Se eu sobrevivesse, poderia torná-los realidade, não?
Nem mais sabia. Mas pensar em coisas boas estava me acalmando. Isso é, até eu ouvir um grito do lado de fora do meu carro. Alguém implorando pela própria vida. Súplicas que vinham seguidas de um ou mais tiros. Aí, eu voltava a desejar um fim rápido pra minha existência patética.
E eu teria permanecido naquele inferno. Sozinho. Desesperado. Entretanto, ouvi uma batida na porta de meu carro.
Com receio, olhei para o lado. Senti meu coração batendo mais e mais rápido. Até o instante que ele parou. Aliás, até o instante que tudo parou.
O tempo pareceu congelar quando eu vi o mesmo sorriso de cinco anos atrás.
Era a mesma expressão. O mesmo porte magro. Agora, porém, mais alto. E, em suas mãos, um rifle, o instrumento da revolução do seu povo.
Eles não aguentavam mais. Uniram-se com o mesmo sentimento. Com armas em mãos, resolveram lutar por si mesmos. Decidiram que nunca mais seriam oprimidos.
Então, percebi que eu seria salvo por quem eu havia salvado. Minha vida seria poupada daquela matança. Mas por quanto tempo? Eu conseguiria fugir. Mas e depois? Eu teria que lutar? Seria salvo mais uma vez mais tarde? Teria essa sorte?
Eu ainda não sei a resposta. Apenas um dia se passou. Ainda estou no meio no caos. Tremendo. Temendo por minha vida, uma vida que ainda persiste. Não mais sei se isso é bom ou mau.

Então, eu me pergunto: eu deveria estar feliz?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Anúncio 43

Novos contos de terror estão por vir.
Sim. Agora. Nessa época. Fim de ano. Pertinho do Natal. Com o Halloween já pra trás. É.
Fazer o quê? Aceitem. Esse é o conselho que dou.
Até a próxima postagem!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O Julgamento das Chamas, Capítulo 1 (Incompleto)

Capítulo 1


Monte de Ferro. Esse era o nome da cidade cinzenta, apenas mais um antro mofado regido por bandidos metidos a mafiosos. Um bando de brutamontes armados com escopetas e rifles. Nada mais do que isso. Não tinham classe, tampouco ética. Mas ofereciam proteção para a população. Apenas para os que pudessem arcar com os preços obviamente. Esses poucos, um punhado de donos de comércios prósperos, podiam agradecer por manter seu pouco luxo no meio da podridão que os cercava.
Não que os mais pobres não tivessem que pagar para lá viver. O pouco dinheiro que tinham era arrancado de seus dedos magros. Impostos justificavam os lidere locais. Benefício algum traziam para a população necessitada. Apenas mantinham seus ossos inteiros e suas famílias em casas miseráveis.
Deve-se reconhecer que faziam um bom papel de governo. E nenhum habitante de Monte de Ferro tinha forças de contrariar o poder autoproclamado. Nenhum era louco para tanto.
Um temporal chegava ao fim. Ou parava por uns poucos momentos pelo menos. O céu coberto por nuvens negras anunciava a possível volta das chuvas. Mas já era o suficiente. O povo voltaria às ruas, de volta às suas vidas mundanas.
Das casas. Dos prédios. Dos barracos. Das caixas de papelão nos becos. Debaixo de cobertores de jornais sob as pontes. A população emergia para fora de seus lares, rastejando quase sem vida. Suas caras pálidas eram tão sem vida quanto o solo estéril da cidade. Seus braços e pernas moviam-se tão lentamente quanto os pingos das goteiras. Suas vozes eram fracas como os ventos que não conseguiam expulsar as nuvens do céu.
E assim a vida seguia em frente.
Rita não era diferente. Sabia que não podia ficar parada. Ela saia de sua viela, correndo, puxando o irmão mais novo pela mão. Ambos descalços. Ambos vestindo vestes esfarrapadas. Ambos cobertos por mantos escuros encharcados pela chuva. Ambos à procura de um bico. Qualquer trabalho que pudessem fazer. Não importava o quão pouco pagassem. Só precisavam de um pouco, apenas o suficiente para terem comida pro dia. O amanhã não era preocupação para o agora. Todo dia vivam por esse lema.
Os passos rápidos pareciam galopar pelas ruas tão conhecidas pela dupla. Desviavam de pessoas. Pulavam poças. Escalavam muros. Tudo como se fosse uma brincadeira. Uma tentativa de escapar da realidade. Por alguns poucos instantes, momentos preciosos para não pensarem em nada.
Porém, toda a pressa cessou em um segundo.
Os pés de Rita fincaram-se no chão. Seu braço puxou seu irmão com um solavanco. O garoto estava prestes a reclamar quando viu a cena.
Oito membros da polícia local se aproximavam. Homens e mulheres. Todos armados. Todos pálidos. Todos vestindo roupas surradas. Quase pareciam cidadãos comuns do Monte de Ferro. Porém, o grupo parecia alegre, cantarolando e rindo alto com a energia que faltava aos demais moradores. De fato, pareciam sempre estar assim. O misto da autoridade que tinham sobre a população com sua ignorância de berço parecia ser um dos caminhos para a felicidade.
O bando poderia resolver implicar com qualquer um dos pobres civis. Seria divertido para eles. Nunca parecia perder a graça. Mas não era isso o que preocupava Rita. O grupo tinha um nono integrante. E ele era o que chamava atenção.
Cabelos loiros bem penteados. Olhos verdes estonteantes. Dentes brancos perfeitos. Terno preto impecável. Sapatos escuros lustrosos. Era obviamente uma figura que não pertencia aquele lugar.
Delacroix... Rita murmurou irritada.
Era um palpite impossível de se errar. Lá estava Dario Delacroix, um dos três herdeiros da mineradora que usurpam as riquezas da cidade. Monte de Ferro não era um nome sem explicação afinal.
Rita trincou os dentes. Ela sabia que os desgraçados da família Delacroix podiam ser bons. Podiam investir na cidade. Tirar o poder das mãos dos bandidos. Ajudar a população para o próprio lucro. Não era nenhum sonho utópico. Era uma alternativa viável. Porém, não era a mais fácil. Seria muito mais econômico e prático se aliar à alcateia que mandava naquela terra melancólica.
Os irmãos apenas observavam a passagem do grupo pela rua. Todos pareciam fazer o mesmo, saindo do caminho. As pessoas corriam para as calçadas, subiam em muretas ou até entravam em casas. Não queriam problemas, não daquele tamanho. Porém, nunca tiravam os olhos atentos do forasteiro e de sua escolta armada. Era uma cena rara afinal, algo que prendia o olhar de qualquer um querendo ou não.
Mas tinha que haver uma exceção à regra.
Um homem correu aos tropeços até Dario. Parou apenas ao cair de joelhos perante o magnata. Suas mãos logo se juntaram, dedos se entrelaçaram, num sinal de súplica.
Me ajude... Ele implorou com a voz fraca. Eu sei que você pode... Sei que tem um coração bondoso...
A população olhou perplexa para o sujeito. Não tinham reação. Apenas continuaram observando boquiabertos.
A milícia já estava pronta para despachar o débil homem. Nem pensaram em gastar munição. Duas mãos já haviam ido até os braços do cidadão, cada uma agarrando um membro. Aquele corpo magro seria arremessado para longe e risos viriam em seguida.
Porém, o inesperado aconteceu.
Esperem! Pediu Dario forçando uma voz mais máscula que a de costume. Soltem esse homem.
Os capangas obedeceram. O herdeiro se aproximou do homem e o analisou.
Era velho. Algo entre setenta e oitenta anos. O corpo era esquelético. As roupas largas pareciam trapos. A cabeça do homem era calva. Sua barba por fazer estava amarelada. Sua pela era escura. As rugas cobriam o rosto cansado. O desespero emanava dele bem como um forte odor corporal. Um fraco brilho de esperança resistia nos olhos opacos. Parecia que não duraria por muito tempo.
O rosto de Dario pareceu se retorcer de nojo por um breve instante. Seu olhar brevemente julgou como sendo patético o homem ajoelhado perante de si. Palavras que nunca escaparam ficaram presas em sua garganta.
Por fim, o magnata respirou fundo e sorriu. Levou uma mão até um bolso, dedos rápidos procurando por algo. E encontrou. Um punhado de moedas. Simples, sem valor para alguém que ostentava gastos na casa dos milhares em seu dia a dia. Porém, lá estavam elas. Pequenos círculos de metal lá plantados com um objetivo em mente.
Sem hesitar, Dario retirou as moedas do bolso e entregou para o homem desesperado. Com um sorriso estampado no rosto, tentava não pensar nas mãos sujas que tocava.
Não precisava agradecer. Pediu sabendo que não seria obedecido. Apenas fiz o que qualquer boa pessoa faria.
O velho olhou para as poucas moedas em suas mãos. Era pouco, mas era mais do que ele estava acostumado a ver. Mal podia acreditar. Suas mãos tremiam emocionadas. Colocou o dinheiro, com pressa, num bolso arregaçado. Então, agradeceu o magnata reverenciando-o com gratidão genuína. Quase fez o homem parecer um santo milagreiro que curava lepra.
Foi exatamente como Dario queria.
Deve estar se sentindo bem. Disse alguém que se aproximava.
A fala chamou a atenção. A voz era grave, imponente, reverberando pelos corredores de ruas da cidade, viajando até o ouvido de cada pessoa presente ali. Não demorou para que identificassem o sujeito que se aproximava.
Camisa negra. Calças negras. Botas negras. Tudo parecia se misturar numa única peça. O sobretudo era o que destacava na multidão. Era cinza como o aço, adornado com marcas intensas cor de vinho, fluindo da cintura para baixo como uma capa. As mãos brancas traziam tatuagens, símbolos escarlates que ninguém dali conhecia. O rosto carregava uma expressão madura e serena que contrastava com a idade de não mais que trinta anos. O cabelo e olhos castanhos davam um quase mundano para o homem. Porém, sua aura não deixava essa ideia perdurar.

Ajudar alguém sem pedir nada em troca. Disse a figura, cativando seus ouvintes. Eis a definição de uma ação altruísta. Algo realmente belo... Tão belo quanto irreal.

domingo, 11 de dezembro de 2016

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O, digamos, Primeiro Arco do A Rainha Vermelha está concluído. Posso ir direto para o segundo se eu quiser . Ou então... Posso começar uma história nova. No mesmo universo.
O que será que eu vou fazer...?
Descubram em breve!

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

A Rainha Vermelha, Capítulo 5

Capítulo 5


Um tiro. Então dois. Enfim três.
As balas acertaram as costas de Gideon. Elas pararam em sua blindagem, mas o desgraçado sentiu o impacto dos projéteis. Nenhum dano sofrido, apenas marcas foram deixadas em sua armadura: mais do que o suficiente para irritar o canalha. Alguém estava atrapalhando seu momento especial, alguém que seria punido por isso.
Gideon se voltou para trás com voracidade, exibindo seus afiados dentes, fuzilando o adversário com seu olhar enlouquecido.
Em vão.
Aquilo não intimidaria o desafiante.
Cabelos grisalhos. Barba rala também grisalha.  Um metro e noventa de altura. Porte físico de um lutador. Uniforme azul-marinho. Distintivo no peito. Revólver em mãos. Olhar ainda mais sério que o de costume. Expressão ainda menos amistosa que da última vez.
Afaste-se de minha filha, seu doente. Ordenou Martin. Agora!
Gideon sorriu. Antes que ele pudesse abrir a boca, o revólver foi disparado mais três vezes.
Tudo o que o comandante da Inquisição teve que fazer foi cruzar os braços. Simples balas de revólver nunca penetrariam aquela blindagem. Os membros acabaram formando um escudo perfeito para sua face. Enquanto pudesse proteger a única parte do corpo que estava exposta, a derrota do maníaco era improvável.
Então, os seis disparos foram feitos. O policial tinha que recarregar sua arma. E Gideon sabia muito bem disso.
Um movimento rápido. O comandante sacou sua metralhadora. Apontou a arma para frente. Lambeu os lábios com gosto. Levou um dedo nervoso até o gatilho. Tudo em uma mera fração de segundos. Tudo por obra de seu instinto. Tudo antes que sua visão pudesse focar em seu alvo.
E, no final, seus olhos não foram rápidos o suficiente: quando Gideon percebeu, Martin estava a menos de um metro de distância
A mão do policial foi até o cano da metralhadora. Um movimento rápido. O dedo do maníaco apertou o gatilho. Uma rajada de balas foi disparada. Todos os projéteis atingiram o teto.
Gideon estava atônito. Seu olhar petrificado observava a mão que, sem esforço, havia deslocado o cano da arma o alto. Foi um ato que fez o comandante errar todos os disparos. Foi um ato que abaixou sua guarda por tempo demais.
Com ambas as mãos, Martin puxou a metralhadora para si, arrancando-a das mãos do adversário. Sem tempo para reagir, Gideon sentiu a pesada arma golpeando a lateral de sua cabeça como um martelo. Se não fosse pela blindagem, ele teria caído. Graças a ela, pôde permanecer de pé para receber o segundo golpe.
Um urro. Com isso, Martin anunciou o próximo movimento. Ele levantou a arma para o alto e desferiu um golpe com toda a sua força. O ataque derrubaria o alvo, com blindagem ou sem blindagem, prensando-o contra o chão. Isso é o que teria acontecido se tivesse tido sucesso.
O policial demorou demais. Gideon era ágil, não desperdiçaria uma chance daquelas. Ele apenas teve que dar um passo largo para um lado. Assistiu Martin errar seu golpe digno de um bárbaro, contemplando como atacaria em resposta.
Nem um segundo se passou. Mas foi mais que o suficiente. Gideon levou uma mão até o ombro do oponente, impulsionando seu joelho contra o rosto de Martin. O golpe o acertou em cheio. Fez o policial atordoado cambalear para trás. Sua cabeça baixa foi o alvo da cotovelada que veio em seguida. O abdômen foi atingido por um pontapé então. Um chute giratório acertou suas mãos por fim, fazendo-o derrubar a metralhadora para o lado.
Melhor assim. Gideon riu. Não precisamos de armas de fogo atrapalhando. Ele levantou os punhos, assumindo uma postura de luta. Vamos lutar como os guerreiros que somos!
Verme... Martin rosnou e cuspiu no chão. Alguém tão patético e vil nunca será um guerreiro de verdade. Aceite isso.
O comandante da Inquisição mostrou os dentes. Irritado, decidiu não gastar mais palavras com o inimigo. Martin estava grato por isso.
Seus punhos se cerraram. Os batimentos cardíacos aceleraram. O sangue de ambos começou a ferver. O tempo desacelerou para uma última troca de olhares: facas que arremessaram um contra o outro.
Então, ele voltou a correr.
Gideon avançou. O exibicionista pretendia demonstrar todo o seu repertório de ataques. Utilizar sua agilidade, seu grande trunfo, em cada instante da luta. Sequências ensaiadas mesclavam chutes, socos, cambalhotas, esquivas, cotoveladas e joelhadas. Cada golpe seria uma agulhada contra o adversário: fracos em potência, porém, certeiros. Ele cansaria o adversário com cada acerto. Faria o policial cair de joelhos, vulnerável para seu último movimento.
Martin resistia. Ele era o mais forte entre os dois, é claro. Porém, seus socos e investidas acabavam muitas vezes por errar o ligeiro alvo. Quando acertava, quase sempre não alcançava a face do desgraçado. Quando suas mãos atingiam a grossa blindagem do inimigo, o dano parecia ser maior no policial do que no maníaco. Os nós de seus dedos começavam a latejar de dor, ardendo após cada impacto. Era um preço alto a se pagar por apenas acabar deslocando o adversário para o lado, tirando seu equilíbrio por um breve instante ou impedindo apenas um simples chute. Enquanto isso, seu corpo seguia sendo castigado por ataques que não conseguia desviar. Entretanto, ele continuava lutando. Cada vez seu punho esmurrava o rosto asqueroso de Gideon, o guerreiro encontrava forças para se manter em pé no duelo, ansiando pela próxima oportunidade de desfigurar mais um pouco o desgraçado.
E a Rainha apenas observava. Estava sob um estado de torpor. Não mexia os braços. Não mexia as pernas. Não mexia os lábios. Ela estava apenas lá, parada, apavorada. Sentia medo por si. Sentia medo pelo pai. Se a luta continuasse daquele jeito, o veterano policial não sobreviveria. Gideon sabia disso. Sophia sabia disso. Martin sabia disso.
Nada mal, velhote... O comandante reconheceu, aproveitando uma pausa espontânea na luta. Ambos os combatentes estavam cansados, precisando recuperar o ar. Seu adversário, porém, era o que estava mais abatido, com roupas e face igualmente surradas. Não lutava assim fazia um tempo. Quase havia me esquecido como era uma luta de verdade.
Queria poder dizer o mesmo. Martin retrucou arfante.
Hm... Gideon bufou acrescentando uma risada em seguida. Tinha certeza que você diria algo do gênero. Sei que você desaprova meus sentimentos em relação a sua filha, mas... Com um movimento rápido, ele sacou a faca da cintura, girando-a frenética entre os dedos. Você não tem como me parar. Ela vai ser minha assim que eu me livrar de você. E, então... Sussurrou. Eu nunca mais vou deixá-la sair de perto de mim...
A Rainha sentiu um aperto no peito. Seu coração disparou. Sentiu um fogo queimar dentro de si. Ela queria lutar. Mas ainda não conseguiu se mover. Algo ainda faltava para superar o medo que a pressionava contra o chão.
Demorou mais do que eu imaginava pra pegar seu brinquedinho. Martin estralou o pescoço. Mesmo assim... Você não vai conseguir tocar um dedo na minha filha, seu riquinho escroto.
Assim a luta prosseguiu. Os dois homens partindo para cima do outro, urrando feito animais selvagens. Mas o ritmo já não era mais o mesmo. Isso ficou claro em questão de segundos.
Martin acertava ainda menos socos agora. Ele estava, naturalmente, mais preocupado em se manter vivo, recuando perante as investidas do adversário, bloqueando facadas com seus membros quando não tinha outra solução. E o veterano sentia sua derrota se aproximando. Cada golpe da faca de Gideon parecia enfraquecer um pouco mais o policial, tirando suas forças mesmo com o mais superficial dos cortes. Gotas de sangue logo começaram a verter das costas, das pernas, dos braços. Suas roupas em pouco tenho estavam dilaceradas, salpicadas de rubro.
Era como assistir um touro sendo morto lentamente por um toureiro. E Sophia não conseguia mais ver aquilo. Não aguentava mais ver o pai sofrer.
Não demorou para que Martin caisse de joelhos.
Finalmente sentiu o peso da idade, hein? Gideon riu. Não se preocupe. A dor vai passar. Só... Tente não se mexer muito, ok...? Vamos acabar logo com isso...
O guerreiro se levantou uma última vez. Ele arfava pesadamente. Porém, não pretendia parecer fraco, principalmente não nos seus últimos instantes de vida. Martin abriu os braços esperando o último e inevitável ataque.
Gideon avançou. Seus frios olhos focados na expressão resignada do adversário. Seus pés ágeis corriam como se não atritassem com o chão. Sua mão apertava o cabo da faca com afinco. Sua língua lambia seus lábios, saboreando o momento.
Um movimento rápido e certeiro. Foi o suficiente para cravar a faca no peito do guerreiro.
Martin sentiu a fria picada da lâmina invadindo seu corpo. Sentiu também a dor ardente que parecia se espalhar pelo seu sangue. Ele, porém, apenas trincou os dentes, suprimindo o grito de dor, guardando-o para si em silêncio.
Sophia, por outro lado, não conseguiu fazer o mesmo.
A Rainha Vermelha soltou um grito agudo, uma explosão sonora que estremeceu a débil sala onde estavam. Nem se lembrava a última vez que agiu assim, tão desesperada. Nunca que uma reação tão exagerada e irracional partiria dela. Pelo menos, não com ela sendo a vítima. Aquela mulher já tinha chorado todas as lágrimas que podia para si mesma, não mais sentia pena de si. Porém, para seu pai, a história era outra. Ele era inocente. Ele foi puxado para aquele inferno. Ele não tinha que sofrer junto com a filha. Ele não tinha que morrer por sua cria. Era isso o que Sophia sentia.
Mas ela estava errada. Pelo menos, era o que Martin diria. Se tivesse tempo, se tivesse forças, explicaria o porquê da melhor maneira que conseguisse. Mas não podia. Não tinha o tempo. Não tinha as forças. Então, teve que recorrer a uma solução mais rápida, algo que esperava que funcionasse com Sophia mesmo naquela situação.
Martin sorriu para a filha. Um ato raro vindo daquele homem, tão raro quanto genuíno. Sophia conhecia muito bem o pai. Via nitidamente a sinceridade no gesto, o brilho nos olhos que acompanhava. Era mais que um simples sinal de afeto, nada que pudesse ter surgido de um momento para o outro: era algo que evoluiu, que foi se tornando mais forte a medida que o elo dos dois se fortalecia.
Era respeito, reconhecimento do potencial de sua criança, confiança nas escolhas da cria, orgulho de como a filha lidava com vitórias e com derrotas, zelo pela guerreira que havia criado.
Não se podia fingir algo como aquilo. Sophia bem sabia.
A Rainha sorriu de volta para o pai. Ele assentiu.
As mãos de Martin envolveram o pescoço de Gideon. A blindagem impediria que o comandante fosse estrangulado, mas nunca foi essa a intenção. O policial atacou de imediato com uma cabeçada. Não teve como o alvo escapar. O golpe atordoou o inimigo. Porém, o guerreiro sabia que não conseguiria finalizá-lo. Tinha forças apenas para um último movimento. E o fez sem hesitar, agarrando o adversário pelos ombros e o arremessando para o lado.
Gideon cambaleou até cair de joelhos. Ele rangeu os dentes. Levantou-se o mais rápido possível. Queria rachar o crânio de Martin com as próprias mãos, fazê-lo sofrer um pouco mais antes que o ferimento da faca ceifasse sua vida por fim. Só não esperava o golpe que acertou sua face.
Foi um soco rápido. E potente. Seus olhos nem haviam conseguido focar no que o havia acertado. Quando sua visão se tornou menos turva, pôde identificar um soco inglês de bronze acertando sua boca, arremessando-o para trás.
As costas de Gideon bateram no chão. Sentiu o ar fugindo dos pulmões com o impacto. O ataque foi ainda mais forte que o anterior, deixando-o gemendo deitado no piso de madeira. Ele mal pôde reagir quando a Rainha se pôs por cima dele.
Uma mão puxou sua cabeça pela mandíbula, forçando o comandante da Inquisição a olhar Sophia nos olhos. Não havia mais medo neles, só raiva. E aquilo petrificou o canalha.
O soco inglês martelou a cabeça de Gideon contra o chão em seguida. E mais uma vez. E outra. E mais uma.  E então ela parou de contar.
A Rainha não pretendia parar tão cedo. Desferiu soco após soco com destreza. Não parecia ter fim.  O chão de madeira rangia com cada golpe dado. O rosto de Gideon se retorcia com cada impacto. Seus dentes trincavam. Seu queixo rachava. Seu nariz quebrava. Sua pele rasgava. Sua face afundava. O sangue vertia. Tingia o já desfigurado rosto. Encobria os próprios olhos. Coloria a mão que atacava. Respingava na mulher tomada pela fúria.
Gritos escapavam de sua garganta. Sophia não mais podia se controlar. Sua dor esvaia de seu corpo a cada rugido. Uma dor fermentada por tanto tempo, com tanto ódio, era expulsa a cada ataque, expulsa a cada urro. Tomada por um frenesi, a Rainha nem mais enxergava. Sua visão foi se tornando turva pouco a pouco, até ser completamente cegada pela raiva. Felizmente, não mais precisava ver. Ela sabia onde bater. Sabia como bater. Seus golpes se tornavam mais precisos, mais rápidos, mais fortes a cada acerto, castigando implacavelmente a face do seu torturador.
Ela prosseguiu sem consciência. Não mais percebia o que fazia Apenas fazia.
Somente parou quando a chuva começou a cair.
As gotas geladas acertaram o rosto suado de Sophia. Ela arfava. Respirou fundo. O ar parecia mais leve. Olhou para cima então, admirando a garoa que roubava-lhe o calor, as águas que lavavam o sangue do corpo e a fúria da alma.
Olhou para as gotas que caíam sobre Gideon. A armadura quase intacta após o confronto era um primor. Agora podia admirá-la com calma. Mas não o fez. Seus olhos passaram rapidamente por onde o rosto de predador deveria estar. Uma poça de sangue com aspecto enlameado transbordava para além da blindagem de metal.
Foi feito o que tinha que ser feito.
O olhar de Sophia enfim vagou até Martin. E por lá repousou por alguns instantes, tempo que pareceu durar mais que deveria, até que conseguisse forças para se levantar.
Calmamente, a Rainha caminhou até o corpo do pai. Memórias atacaram sua mente. Ela se ajoelhou perante o homem, estudando seu rosto, tocando-o uma última vez com delicadeza. A expressão calma. Os olhos cerrados. O sorriso satisfeito. Sophia teve que retribuir o sorriso.
Morrer com o senso de dever cumprido... Falou enquanto se sentava ao lado de Martin. Levou uma mão até um bolso com calma. A ideia de acender um cigarro passou por sua cabeça, porém, logo foi embora com seus dedos cessando a busca pelo isqueiro. O cheiro nunca agradou o pai. Deve ser bom, né?... Saber que você fez o seu melhor... E que foi o suficiente... Ela riu baixo. Será que eu consigo fazer isso também, pai...? Fazer como você fez...?
Sophia olhou para Martin. Lágrimas começaram a escorrer de seus olhos. Então, olhou para o alto, deixando que elas fossem lavadas para longe pela chuva.
Para morrer em paz... A Rainha continuou. Eu tenho que fazer mais algumas coisas. Coisas que não vão ser fáceis. Eu sei disso... Eu... Seus olhos voltaram para o corpo de Martin e, então, seguiram até o de Alexander. Eu tenho que ser forte... Respirou fundo, soltando o ar com calma em seguida. Mais forte... Forte sozinha... Forte para mim... Forte para os outros... Seu olhar se perdeu na chuva. Mas... Será que eu consigo...? Ela ficou em silêncio por alguns segundos. Então, soltou uma risada. Não sei. Não sei mesmo... Mas vou descobrir. Tenho que tentar.

Sem dizer mais nada, sem fazer mais nada, Sophia ouviu a canção das gotas de chuva que caiam.

domingo, 4 de dezembro de 2016

A Rainha Vermelha, Capítulo 5 (Teaser)

Capítulo 5


Um tiro. Então dois. Enfim três.
As balas acertaram as costas de Gideon. Elas pararam em sua blindagem, mas o desgraçado sentiu o impacto dos projéteis. Nenhum dano sofrido, apenas marcas foram deixadas em sua armadura: mais do que o suficiente para irritar o canalha. Alguém estava atrapalhando seu momento especial, alguém que seria punido por isso.
Gideon se voltou para trás com voracidade, exibindo seus afiados dentes, fuzilando o adversário com seu olhar enlouquecido.
Em vão.
Aquilo não intimidaria o desafiante.
Cabelos grisalhos. Barba rala também grisalha.  Um metro e noventa de altura. Porte físico de um lutador. Uniforme azul-marinho. Distintivo no peito. Revólver em mãos. Olhar ainda mais sério que o de costume. Expressão ainda menos amistosa que da última vez.

Afaste-se de minha filha, seu doente. Ordenou Martin. Agora!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

A Rainha Vermelha, Capítulo 4 (Editado)

http://livrotheconflagration.blogspot.com.br/2016/11/a-rainha-vermelha-capitulo-4.html
Entre por esse endereço para conferir as alterações. Fiz mais do que imaginava.
Isso me lembra: fiz umas pequenas alterações nos outros capítulos também. Nada tão grave quanto nesse, mas vale a pena olhar.
Obs: não fiz mudanças de enredo, apenas em descrições e diálogos. Não mudei o rumo da história.
É isso.
Boa leitura!