O espetáculo estava prestes a começar.
Como de costume, o bar estava lotado. Dezenas de homens e
mulheres, todos tão animados quanto barulhentos, compunham a plateia da noite. De
suas bocas vinha o coro caótico de suas vozes que preenchia o ar. De suas
canecas, a cerveja que caia e encharcava o chão. De seus bolsos, o dinheiro que
se esgotava com as últimas apostas.
No centro da multidão, um espaço vazio onda todos evitavam
pisar. Ali, desenhado com o que parecia ser tinta barata no chão de madeira,
estava o grande círculo branco que delimitava a arena. O palco era para ser
provisório, porém, ninguém reclamava dele. Aliás, parecia ser o contrário: a
plateia curtia a emoção.
Urros e gritos logo saudariam a chegada dos gladiadores para
o combate. Todos ansiavam por sangue, erguendo suas canecas, clamando pela luta.
Havia somente uma exceção.
Whiskey era como o chamavam. Era o dono do bar. Carismático
quando queria. Frio quando precisava. Eram essas duas qualidades em especial que
pareciam ser o segredo de seu sucesso, mantendo seu adorado estabelecimento funcionando
mesmo nos mais difíceis dos tempos, superando o que mais pareciam ser maldições
em dados momentos. Era por essas e outras que aquele homem franzino se sentia
invencível atrás do seu balcão, um orgulhoso soberano em seu castelo, um ser
cuja autoconfiança era mais que invejável.
Mas não naquela noite.
Daquela vez, Whiskey estava diferente. Seu rosto carregava uma
preocupação que não mais conseguia esconder. Suas mãos inquietas tateavam nervosamente
a superfície de seu balcão, seus dedos batendo em teclas de piano que ali não
estavam. Sua respiração pesada parecia incomodada com o próprio ar, quase como
se fosse alérgico ao que respirava. Pequenos fios de suor escorriam por sua
barba, descendo lentamente por entre os espessos fios grisalhos, chegando até
seu queixo pontiagudo para então caírem as gotas sobre a madeira do chão.
E a cena se repetia em looping.
Tudo isso devido a um mau pressentimento.
Era algo que fazia o homem se sentir enjoado. Um perigo
iminente. Um medo irracional. Uma presença que havia entrado no bar há poucos
minutos, misturando-se ao mar de pessoas, tirando sua paz em um mísero segundo,
roubando-lhe a sanidade pouco a pouco.
Através das lentes dos óculos, os olhos de Whiskey procuravam
por alguém. Exasperado, seu olhar quicava de um canto para o outro do bar numa
busca que parecia infrutífera, afinal, não sabia por quem procurar. Nem mesmo
sabia como era a pessoa. Não sabia se era homem ou mulher, alto ou baixo, gordo
ou magro. Nem mesmo sabia se conhecia a pessoa. Poderia ser alguém do passado,
algum inimigo que tinha feito anos atrás? Era bem possível. Mas quem? O dono de
bar havia feito inimizades por sua vida. Poderia fazer uma lista. Mas não o
faria. Não conseguia pensar direito naquele estado de agitação. Persistir em
seu plano atual era a melhor coisa que poderia fazer.
Tal busca, porém, teria que fazer uma pausa brusca.
O coração de Whiskey disparou. Desarmônicas, dezenas de
vozes gritaram exaltadas, estremecendo o bar, anunciando a chegada dos
combatentes.
—
Ah é... — O dono do bar
soltou o riso nervoso.
Ele quase havia se esquecido do porquê da multidão ter se
reunido em seu bar.
Whiskey queria ter se tranquilizado, ter entrado no clima
para o espetáculo. Mas não o fez. Simplesmente não conseguia. A paranoia
bagunçava sua mente, fazendo-o imaginar coisas que não queria. O pensamento de que
algo poderia surgir a qualquer momento, arrombando a porta da frente ou quebrando
o teto acima de sua cabeça, avançando com membros como tentáculos e dentes como
lâminas, rindo enquanto rasgava sua pele, parecia não ser possível de ser
afastado.
Mas Whiskey tentou mesmo assim. Com ajuda etílica, isso é. Ele
agarrou a garrafa mais próxima de si, pegou um copo qualquer e se serviu. Então,
engoliu o líquido tão rápido que nem sentiu o gosto. Apenas um leve ardor no
fundo da garganta era a prova que havia álcool na bebida.
—
Ulrich! — Um pequeno
grupo começou a gritar com vigor. Cada sílaba era bem enunciada por vez
conforme ensaiado. —
Ulrich! Ulrich! — Outros
se juntaram ao coro mesmo sem nem saber o porquê. — Ulrich! Ulrich! Ulrich!
Em pouco tempo, mais da metade do bar torcia naturalmente
pelo lutador.
—
Não é para menos... —
Whiskey murmurou para si, sem surpresa, enquanto lavava seu copo. Seus olhos
estavam fixos em um lutador. —
Chegou a hora...
No centro da arena, um homem saudava sua torcida. Era mais
alto que qualquer um lá. Mais forte também. Não vestia nada fora um par de
calças jeans surrados. No peito nu, os pelos claros e músculos bem definidos
estavam expostos para todos verem. Sua face carregava uma densa barba loira e
dois olhos azuis frios, cheios de determinação.
O gigante desejava que a luta começasse o quanto antes. Ele
queria se divertir.
Aquele ele era Ulrich
Pele-de-Aço, conhecido também como o Viking. Era o defensor do líder de seu
clã, Ivar Pele-de-Aço, seu primo, visto com o cérebro da família. Sempre que
podia, o autoproclamado guerreiro resolvia seus problemas com a brutalidade.
Valendo-se de seus punhos como armas, raramente matava, mas sempre deixava
clara uma mensagem clara para seus inimigos. Afinal, ossos quebrados e
hemorragias internas eram bons lembretes para não se oporem ao seu clã.
Diante de Ulrich, estavam outros três homens. Não pareciam
intimidados pelo gigante diante deles. O da esquerda usava uma bandana preta na
cabeça. O do meio tinha uma corrente dourada no pescoço. O da direita usava brinco
cor de prata. Generalizando, eram todos bandidos comuns, todos mal encarados e
cobertos de tatuagens. Eram notadamente fortes fisicamente, é claro, mas não
passavam de um bando de brutamontes. Não brigavam com técnica. Não eram
lutadores ao nível do Vinking.
Obviamente o trio não era uma ameaça aos olhos do gigante.
Mas eles estavam certos de que o fariam mudar de ideia, fariam ele se
arrepender de ter sido orgulhoso ao ponto de aceitar lutar sozinho naquela
noite.
Uma buzina foi tocada. A luta se iniciou. O desafiante de corrente
avançou. Afoito, o homem mais rápido do grupo tinha certeza que teria o
primeiro acerto do combate. Um soco seu faria o oponente perder sua pose de
invencível. Ele faria Ulrich sentir se ajoelhar.
O chute do Viking em seu peito, entretanto, trouxe o lutador
de volta à realidade.
Atravessando os ares, o homem de corrente pôde se arrepender
de sua investida impulsiva. Nem sabia ao certo quanto tempo havia se passado.
Mas via os olhares da multidão vidrados em seu corpo, contemplando seu
fracasso. Quando suas costas acertaram o chão, o público urrou com sua
eliminação.
O homem nem reclamou da dor. Apenas permaneceu ali, imóvel,
pensando no que fazer em seguida, imaginando se valeria a pena se levantar.
Aquela cena, porém, teve um impacto maior ainda em seus
parceiros. A dupla engoliu em seco. Trocaram olhares nervosos então, tentando formar
uma estratégia às pressas, sem que o oponente os escutasse.
—
Se vocês não vêm até mim... —
Ulrich começou a falar. Sua voz grave ecoava pelo bar, deixando os dois
desafiantes ainda mais inquietos. —
Eu vou até vocês...
Com passos pesados, o Viking começou a avançar. Sua torcida
vibrava com cada passo dado, continuando a entoar seu nome, fazendo com que o
bar tremesse. Então, o nervosismo dos desafiantes chegou ao limite.
Cada um seguiu por um lado. O de bandana pela esquerda. O de
brinco pela direita. Não estavam pensando. Não havia coordenação entre os dois.
Contavam apenas com seus instintos. Iriam flanquear o adversário. Era isso. Torciam
silenciosamente para que seus ataques funcionassem.
O lutador de brinco foi o mais rápido. Por questão de
milésimos, seu soco foi desferido antes que o do companheiro. O Viking teve
tempo de sobra para agir.
Com facilidade, ele bloqueou o ataque. Seu antebraço foi contra
o do adversário, surpreendendo-o com sua velocidade, virando-se bem a tempo de
segurar o punho do outro combatente com a mão livre.
Os olhos da dupla se arrepelaram. A multidão vibrou em
resposta. O tempo, então, pareceu desacelerar para os desafiantes.
Com calma, os dois desgraçados puderem se arrepender de
terem entrado na luta.
O braço direito de Ulrich avançou contra o abdômen do homem de
bandana. Seu punho arrancou o ar dos pulmões do adversário, forçando-o a se
curvar, tomado pela dor. O mesmo braço atacou para trás então. Rápido como um
bote de uma cobra, seu cotovelo atingiu em cheio a face do lutador de brinco.
Atordoado pelo golpe no semblante, o combatente nem viu a
mão do Viking afundando seu companheiro contra o chão duro. A próxima cena que
viu foi Ulrich, com um sorriso no rosto, arrastando o lutador praticamente nocauteado
pelo piso frio, erguendo-o para o alto pela cabeça.
A face do homem de brinco foi tomada pelo terror ao ver o
amigo, no ar, sendo balançado como um porrete. Ele nem teve como reagir à cena.
Permaneceu ali, petrificado, até o pé do amigo o acertar no queixo com a força
de um martelo, derrubando-o sem esforço.
A torcida delirava. Até aqueles que torciam para o trio
agora gritavam por Ulrich. Nem se importavam com o dinheiro perdido nas
apostas. Pelo menos, não se lembravam daquele detalhe no momento de euforia. O
show com o qual estavam sendo presenteados era tudo o que importava no momento.
Ulrich se livrou de sua arma, jogando o homem de bandana com
força contra o chão. O baque surdo de suas costas contra o piso de madeira estremeceu
a arena. Agora não mais se levantaria.
O Viking, então, andou até o desafiante remanescente.
—
Levante-se! — Ele
ordenou o homem de brinco, olhando para as dezenas de espectadores com deleite.
— Você ainda pode
lutar... Ainda pode entreter essa multidão!
A plateia gritou animada. Suas vozes repetiram o nome de
Ulrich quase como se estivessem hipnotizados. E o Viking adorava aquilo.
Porém, um urro veio para quebrar a harmonia.
Todos os olhares se voltaram para um homem. O infeliz correu
para dentro da arena com uma cadeira em mãos. Com seu grito de guerra correndo
para fora de seus pulmões, ele atacou Ulrich.
Foi uma tentativa patética, completamente em vão.
Ulrich segurou a cadeira com apenas uma mão, impedindo o
golpe sem problemas. Ele, então, olhou fixamente para a corrente dourada em
volta do pescoço do inimigo. Seus olhos arderam com ódio.
— Você
foi eliminado... —
Ulrich rosnou como um animal. —
Foi eliminado e você deveria ter aceitado a derrota com dignidade! — Com um puxão brusco, ele
arrancou a cadeira das mãos do adversário. —
Não deveria ter voltado para arena! —
Rugiu. — E não
deveria ter me atrapalhado!
Com um brado, o guerreiro atacou.
Instintivamente, o homem de corrente se defendeu. Levou as
mãos para cima da cabeça e esperou aguentar a dor.
Mas aquilo de nada adiantou. A cadeira atingiu o combatente,
destroçando-a com o impacto. Como fragmentos de uma granada, lascas de madeira
foram lançadas para todos os lados.
E no fim, no centro da arena, um segundo desafiante caia
desacordado perante uma multidão eufórica.
E agora, apenas um sobrava.
O desafiante remanescente levantou com certa dificuldade. Suas
pernas estavam bambas, como se estivesse embriagado. Parte de si não queria nem
ter se mexido, mas algo parecia ter forçado o homem a ficar de pé, encarando o
Viking mesmo ofegante.
—
Não tem como você vencer... —
Ulrich afirmou num tom solene, cruzando os braços na frente do peito. — Mas você ainda pode ser
derrotado como um guerreiro... Perder a luta... Mas manter a honra... O que me
diz? — Ele estendeu
as mãos na direção do oponente, convidando-o para chegar mais perto. — Vai me enfrentar sem
medo?
O Viking nem precisou perguntar uma segunda vez. Seu
desafiante esboçou um sorriso, respirou fundo e, então, virou de costas o mais
rápido que pôde e correu.
E o sujeito teria escapado. Ele teria muito bem fugido pela
porta da frente. Ele teria ignorado as vaias da multidão. Ele teria corrido com
os próprios pés descalços até que não mais pudesse ser visto. Não se importava
com a droga da honra que Ulrich havia falado. Só queria sair de lá inteiro. Mas
não o deixaram.
Nenhum homem. Nenhuma mulher. Ninguém hesitou em segurar o
fugitivo. Uma barreira humana logo se formou. A multidão já queria ouvir o som
de ossos sendo quebrados antes. Agora, as sádicas bestas queriam também sentir
o desespero do covarde que tentou fugir.
O combatente foi empurrado de volta para a arena por mais
mãos do que conseguiria contar. Sem equilíbrio, ele cambaleou para trás. Não
caiu apenas por ter sido segurado no último instante. Porém, já sabia que não poderia
comemorar.
Antes que pudesse
reagir, um braço já o puxava por debaixo do queixo. Ulrich não pretendia pegar
leve. E não iria. Sua força logo estava esmagando o pescoço de seu oponente. O
Viking quase podia sentir o temor atacando o corpo de sua vítima. Debatendo-se
inutilmente, o combatente sentiu o ar dos pulmões sendo roubado a cada
instante, sabendo que não voltaria. Seu desespero aumentava à medida que sua
visão ficava turva, à medida que a realidade se distanciava de si. Até que,
finalmente, tudo se escureceu.
Quando o homem parou de se mover, Ulrich o soltou sem
cerimônias.
No mesmo segundo que o corpo inerte atingiu o solo, a
multidão vibrou mais do que nunca. A agitação só aumentou quando o Viking
rugiu. Seu grito de vitória foi repetido pelos fãs, estremecendo ainda mais o
bar.
E aquela cena, por mais caótica que fosse, agradou o velho
Whiskey. Afinal, tudo estava como deveria estar.
A visão o fez soltar um suspiro de alívio. O mau
pressentimento de antes foi só alguma paranoia sem fundamentos, algo que seria
melhor ser deixado de lado. Ele deveria se acalmar e aproveitar o sucesso de
seu evento.
Ao avistar o gigante nórdico atravessando calmamente a
multidão, o dono do bar logo tratou de arrumar o que o campeão beberia.
Rapidamente, abriu o freezer e alcançou, bem no fundo, uma garrafa de cerveja,
cujo nome parecia impronunciável, e a colocou em cima do balcão. Sem caneca.
Ulrich não ligava para elas. Nem mesmo se importava se a bebida estivesse
gelada. Mas Whiskey gostava de agradar aqueles que o ajudavam nos negócios.
—
Grande luta hoje. —
Ele sorriu para o Viking. —
É sempre ótimo ter você por aqui, grandalhão. Animando o lugar, trazendo mais
pagantes pra te ver... Nunca vou me cansar disso.
—
Eu é que tenho que te agradecer. —
Disse Ulrich num tom satisfeito, ainda cercado por seus fãs e amigos de clã. — Agradecer pela arena... — Ele pegou a garrafa. — E agradecer pela bebida de
graça!
—
Mas é claro... — O
dono do bar soava despreocupado. —
Sempre um prazer te servir...
Ulrich não esperou nem mais um segundo para levar a garrafa
à boca. Ele sentiu o refrescante líquido dourado escorrer para dentro de seu
corpo, extinguindo sem pressa o calor que havia trazido da luta. No fim do
primeiro gole, a cerveja já havia acabado, deixando para trás apenas uma carcaça
de vidro ainda gelada.
Ao bater o vidro vazio no balcão, mais urros e aplausos
eufóricos vieram dos fãs. Tudo parecia impressionar a bêbada e eufórica
plateia. O Viking, então, apenas sorriu e fez reverências para seus
admiradores, agradecendo-os novamente pelo carinho.
—
Realmente, você é impressionante, Ulrich... —
Disse alguém próximo num óbvio tom de gozação.
A voz falou baixo. Muitos pareciam não ter a escutado
inclusive. Mas o Viking a ouviu. E Whiskey também. E isso era tudo o que
importava para o estranho.
Ambos os homens voltaram seus olhares para a mesma direção. Logo
ali, sentado num banco de madeira em frente ao balcão, estava o desconhecido.
Com sapatos, calças, camisa e sobretudo pretos como piche, seu ar sombrio era fortalecido.
No rosto, um toque de mistério. Uma máscara prateada cobria a metade superior
do semblante, deixando somente os frios olhos castanhos à mostra. Na metade
inferior, várias cicatrizes podiam ser vistas na pele pálida. Certamente uma
história para outra ocasião.
—
Mas não estou aqui para puxar seu saco, meu caro... — O sujeito continuou, lançando um olhar
desinteressado para as pessoas que rodeavam o Viking. — Você já tem gente de sobra pra fazer isso...
Dessa vez mais pessoas ouviram. Alguns protestos vieram do grupo de Ulrich, mas
o guerreiro logo estendeu sua mão pedindo calma para os amigos. Ele não estava
evitando um confronto, apenas julgando o quanto iria querer aquilo. Deixaria o
homem falar mais um pouco.
—
Eu não conheço você... —
Falou o Viking, intrigado com o desconhecido, ainda considerando o momento
certo de atacar. —
Qual seu nome?
—
Me chamam de Alma Negra. —
O sujeito se apresentou sem muita empolgação. Em seguida, tomou um gole do que
parecia ser suco de limão. Ulrich observou curioso. Nem sabia que vendiam
aquilo no bar. Teria ele trazido de fora? —
Sou um velho conhecido do dono daqui, sabe?
—
Whiskey... — O Viking
soou curioso, erguendo uma sobrancelha. —
Você conhece esse...?
Quando seus olhos fitaram o rosto do amigo, Ulrich emudeceu.
Whiskey estava doentiamente pálido. Seus olhos pareciam sem
vida, olhando fixamente para o fantasma do passado. Sua boca aberta tremia como
se quisesse falar algo que não conseguia, como se não encontrasse forças para
isso.
—
O que você fez com ele...? —
Ulrich perguntou secamente para o Alma Negra. Seu olhar estava preenchido pela
ira. — Responda!
—
Eu...? — A voz do
sujeito soou como se a pergunta não fosse para ele. — Nada... —
Então olhou fixamente para o dono do bar. —
Acho que nosso amigo aqui só está tendo um pequeno flashback... —
Ele soltou um riso baixo. —
Ah... Doces memórias, não é mesmo, Whiskey...?
As mãos de Ulrich correram até a gola da camisa do Alma
Negra. Ele nem teve reação. Quando percebeu, já estava sendo erguido no ar, sem
conseguir tocar o chão, com uma multidão ruidosa como música de fundo.
— Você
não é normal... — O Viking
afirmou enquanto fuzilava o sujeito com seus olhos. Sua raiva só aumentava com
a tranquilidade no olhar do desgraçado, completamente despreocupado com a
situação que se encontrava. —
É mais um daqueles Malditos, não é!? Você é mais uma daquelas aberrações...!?
—
Não, e você? — Falou
como se fosse algo trivial, uma conversa que já fora repetida vezes demais — É um deles?
—
Oi...? — Após um
momento de hesitação, foi apenas o que saiu dos lábios de Ulrich, ainda incerto
das palavras que tinha acabado de ouvir. —
Repita o que você acabou de dizer...
—
Não... — Bufou. — Eu não sou um Maldito. — O homem pendurado
explicou suas palavras sem muita paciência. —
Não tenho nenhum poder especial. Nunca tive e duvido que eu vou ter. Nada de
sobre humano em relação a minha pessoa... Com exceção do meu dom para a arte da
comédia e do meu carisma inigualável, é claro... —
Um leve sorriso se abriu em seu rosto. —
E você...? — O Alma
Negra soou genuinamente intrigado. —
Você é um Maldito? Tem super força, super resistência...? Algo do gênero...? — Ele tateou um dos
antebraços musculosos do gigante. —
Porque parece ter, sabe...
—
Não... — O Viking exibiu
suas presas num sorriso. —
Alguns podem até me ver como um tipo de semideus, mas... — Ele riu brevemente, sem
perder seu ar ameaçador. — Eu
te garanto que sou completamente humano.
— E
eu achando que tinha que me aprimorar no campo da humildade... — O sujeito murmurou. — Mas sério...? — Ele soou um tanto quanto
surpreso. — Sem super
poderes? O nome Pele-de-Aço é armação? É só um nome legal pra panelinha de
vocês?
—
Cuidado com essa língua... —
Ulrich ameaçou.
—
Isso é ótimo! — O mascarado
exclamou contente.
Agora foi a mão do Alma Negra que se moveu mais rápido que o
inimigo. Para Ulrich, um borrão negro se movimentou no limite de seu campo de
visão. Não conseguiu distinguir o que era. Só percebeu a gravidade da situação
em que se encontrava ao sentir o toque gelado do metal em sua pele. Um calafrio
veio em seguida.
—
Se você é só humano... —
O sujeito continuou. —
Uma bala é o suficiente...
Nem mais uma palavra. O Alma Negra puxou o gatilho de seu
revólver. A bala voou, entrando logo atrás do queixo da vítima, cavando seu
caminho para o alto até criar uma saída.
Fragmentos de ossos. Pedaços de pele. Farelos de massa
cinzenta. Fios de cabelo. Uma borrifada de sangue. A miscelânea de ingredientes
foi lançada para fora do crânio de Ulrich junto com a bala.
O bar se emudeceu. O corpo do Viking caiu sem vida. Seus
olhos ainda arregalados estavam preenchidos pelo medo: marca do instante que percebeu
que não era mais invencível.
Nem um segundo se passou, então, para que até os mais
bêbados do bar reagissem ao ocorrido.
Muitos fugiram. É claro que fugiriam. Homens e mulheres
dispararam para fora do bar como um rebanho de ovelhas fugindo de um lobo,
gritando desesperados, descobrindo o quanto temiam a morte.
Porém, houve também uma reação completamente diferente da
primeira. Haviam, afinal, Peles-de-Aço no
bar naquela noite. Amigos do recém falecido Ulrich foram ali assistir o
espetáculo, beber algumas garrafas de cervejas e aproveitar a noite de folga. Nenhum deles parecia feliz com o andamento da
noite.
E assim, como num passe de mágica, um total de treze armas estavam
apontadas para o Alma Negra.
—
Não se preocupem! — O
mascarado se apressou em dizer. —
Sei exatamente o que fazer numa situação dessas! — Calmamente, ele
colocou suas mãos atrás de sua cabeça e abriu um sorriso. — Viram?
Mesmo com o
relativo silêncio que se instaurou, não se podia dizer que o lugar havia
morrido. A tensão no ar era palpável. Dedos tremiam em cima dos gatilhos, com
receio do que o louco no centro do bar faria. As respirações pesadas e
batimentos cardíacos acelerados eram os únicos sons ali feitos.
O nervosismo,
porém, não afetava o Alma Negra. Ele o aproveitou o momento de paz para escanear a sala, fitando cada
um dos treze atiradores e, principalmente, analisando friamente aquele que não
empunhava uma arma.
Cabelos castanhos
escuros. Pele clara. Porte físico forte. Terno cinza. Expressão séria no rosto.
Sentado a uma mesa solitária, o homem contemplava a cena, tentando decidir o
melhor momento para dar a ordem de execução.
—
Suponho que você seja o tal de Ivar... —
O Alma Negra disse com tranquilidade, ainda com suas mãos na nuca. — Líder dos Peles-de-Aço e tal... Não é?
—
O próprio. — Respondeu
secamente.
—
Ótimo... — O mascarado soou
satisfeito. —
Então, eu achei quem procurava.
Outro momento de
silêncio perturbador pareceu dominar o bar.
—
Muito bem... —
Ivar disse, após um momento de hesitação, mantendo o tom sério. — E você precisava matar Ulrich para isso? Matar
meu melhor homem... Sangue do meu sangue... Só para chamar minha atenção?
—
Precisar eu não precisava... —
O Alma Negra respondeu num tom casual. —
O plano A era perguntar pro grandão onde você estava, mas... Sabe como é...
Botar uma bala na cabeça dele foi mais divertido na hora. — Ele soltou uma breve risada nervosa. — Desculpa, eu sou meio impulsivo de vez em
quando...
—
Ah... — O líder dos Peles-de-Aço
cerrou os punhos. No momento, sua vontade era mandar seus homens abaixarem as armas
para que ele mesmo pudesse vingar Ulrich, quebrando os ossos do desgraçado como
o primo gostaria. Mas não podia. Pelo menos, não ainda. Não sabia se o sujeito tinha
algum truque preparado ou, até, alguma utilidade vivo. Por fim, fez jus ao
apelido de cérebro da família, mantendo
a calma e continuando o diálogo. —
E por que isso? Por que matar tão sem motivo? Por que não seguir o tal plano A?
—
Mas eu tinha um motivo... —
O Alma Negra continuava tranquilo. A ameaça das armas apontadas para ele
parecia não surtir efeito. —
Eu tinha que provar que ele era grande um idiota. Assim... Sério? — Ele não conteve um breve riso de deboche.
— Aquele imbecil
realmente achava que aqueles músculos todos o fariam à prova dechumbo ou algo
do gênero? Não passava de um moleque estúpido, se você me perguntar... Infelizmente,
ele não está vivo pra aproveitar a lição ensinada... Mas não tem problema! — Sorriu. — Vocês podem aprender a lição por ele! E,
também... A morte de Ulrich serviu para me levar até você no fim das contas.
Então... Digamos que o plano B foi um sucesso. A morte dele não foi em vão...
Mais silêncio.
Mesmo longe, o Alma Negra pôde sentir a raiva de Ivar. Era como se sua ira esquentasse
o próprio ar que respiravam.
—
Ulrich... — O Pele-de-Aço
tentou soar calmo. — Era
um bom homem. Um verdadeiro guerreiro nesses tempos sombrios e sem honras...
Mas, realmente... —
Ele bufou. — Ele não era à
prova de balas. E ele sabia disso. Ele sabia que a morte viria... Nunca pensou
em fugir dela. Estava decidido a aceitar seu fim lutando até o último momento. —
Seu olhar fuzilou o Alma Negra. —
O mesmo não pode ser dito sobre você, seu vermezinho inescrupuloso... Você...!
—
Eu nunca disse que era um guerreiro. — Ele o cortou num tom sério, preparado, como
se já previsse a última fala e tivesse uma resposta pronta. — Nem um
bom homem por muitos padrões. Mas eu sei que não sou à prova de balas. Eu sei
que um dia eu vou morrer. É inevitável afinal. Todos os grandes homens e
mulheres da História morreram. Porém... Todos conseguiram deixar sua marca
antes de sua partida. Portanto... — O Alma Negra sorriu. — Eu não tenho que ser à prova de balas... Só
tenho que desviar delas por tempo o suficiente... Só até eu deixar a minha
marca. Aí... Eu posso morrer em paz.
—
Ah... — Ivar gargalhou. — É uma bela meta.. Mas é uma que você não
vai atingir... Ou acha mesmo que vai sobreviver a essa noite?
—
Algo me diz que sim.
Nem mais uma
palavra. Um assovio estridente partiu dos lábios do mascarado. Então, o teto se
quebrou.
Um vulto mergulhou
na direção do Alma Negra. Aquele foi o estopim para o caos. Apenas um dedo
nervoso puxando o gatilho foi necessário. Os Peles-de-Aço não hesitaram em se
juntar o amigo. Seus disparos logo se tornaram inúmeros. Dezenas de balas
cortavam o ar. Uma tempestade de metal estava se formando. Os atiradores pareciam
tomados por um frenesi.
Porém, logo se
viram forçados a parar. Nenhuma arma havia sido descarregada, mas nenhum Pele-de-Aço
conseguiu fazer mais um disparo. Paralisados pelo temor, eles contemplaram a
cena diante de seus olhos.
Todas as balas
atiradas, cada uma delas, pareciam flutuar em éter. Inofensivas, elas rodeavam
as duas pessoas no centro do caos controlado. Sereno, o Alma Negra sorria ao
lado da recém chegada: uma mulher de cabelos roxos e roupas escuras surradas.
—
Viu? — O homem com a
máscara de prata riu. —
Eu te disse! Não é preciso ser imune a balas... É só não ser atingido por elas!
— Ele se virou para
o lado, exibindo uma feição alegre para a companheira. — Não é, amor?
Ela concordou com
um simples sorriso e nem uma palavra.
Os Peles-de-Aço
nem conseguiram olhar direito para a recém chegada. Não notaram suas roupas
amassadas, escolhidas às pressas de seu cabide por estar atrasada para o bar. Não
perceberam também a cara de sono, nem as olheiras, muito menos os cabelos
desarrumados. Porém, notaram sua mão erguida e, com certeza, notaram o simples
gesto que fizera. Um movimento delicado dos dedos, com graça e leveza, fez as
balas derem meia-volta, sendo apontadas para quem as havia atirado.
O Alma Negra
sorriu ao ver o desespero nos rostos dos atiradores. Simplesmente não sabiam
como reagir àquela situação. Estavam simplesmente petrificados.
—
Já se divertiu, Ethan? —
A mulher perguntou para o Alma Negra. —
Posso terminar o show da noite?
—
Já, sim... — Ele respondeu
simplesmente, com um sorriso no rosto. —
Pode acabar com eles, Anna.
A mulher
assentiu. Com um simples estralar de dedos, fez o que tinha que fazer.
As balas voaram.
Ainda mais rápidas de que quando deixaram as armas. Os alvos nem ofereceram
resistência. Sabiam que o fim era iminente. Lutar contra isso seria inútil. Fugir
idem. Não tinham como enfrentar uma Maldita como aquela.
Em uma fração de
segundos, treze corpos foram fuzilados. Todos caíram sem vida sobre o chão
frio.
—
Bom trabalho, linda. —
O Alma Negra a elogiou, contente com o espetáculo. — Agora... Para o prato principal...
Seus olhos
correram pelo bar até chegar até Ivar. Quando chegaram até o Pele-de-Aço, o
homem já havia começado a correr desesperado.
—
Que decepção... —
Foi tudo o que saiu dos lábios do mascarado.
O líder dos Peles-de-Aço,
entretanto, não conseguiu ir muito longe. Outro gesto da mão de Anna bastou. Com
isso, as pernas do fugitivo foram presas, prensadas uma contra a outra. Seu corpo,
então, caiu para frente. Indefeso, sua face se chocou diretamente contra o piso
de madeira.
—
Fácil demais... —
Anna murmurou, parecendo quase entediada.
O homem, em
seguida, começou a ser puxado. Ele não sabia pelo quê. Mas nem parava para
pensar nisso. Tudo o que fazia era gritar e se debater em vão, arranhando o
chão com suas unhas sem conseguir se agarrar.
E assim, Ivar foi
arrastado pelo chão encharcado de cerveja e sangue de seus subordinados mortos,
sem pressa, quase como um pano esfarrapado para limpar o bar
—
Eu deixo a sua vida muito fácil... —
A mulher disse para o companheiro e, em seguida, bocejou. — Não é, amor?
—
Não tenho motivos para reclamar. —
O Alma Negra admitiu soltando um breve riso. — Melhor que isso só se eu tivesse telecinese...
—
Mas isso não vai acontecer... —
Ela retrucou num tom doce.
—
É... — Ele bufou. — Já me conformei...
Quando o corpo de
Ivar chegou aos seus pés, o Alma Negra puxou o homem de terno para perto,
forçando-o a se ajoelhar diante de si. Então, seus olhos frios encararam os do
Pele-de-Aço, penetrando sua alma, rindo do pavor estampado em seu semblante.
—
Ivar, meu caro... —
O mascarado praticamente cantava as palavras de tanta felicidade. — Temos muito o que conversar, bonitão...
—
E esse aqui, amor? —
Perguntou Anna com raiva em sua voz.
O Alma Negra se
voltou na direção dela. No ar, Whiskey estava suspenso, ainda mais assustado do
que antes. A cena fez o mascarado abrir um sorriso ainda mais largo.
—
Ah... — O Alma Negra riu. — Whiskey... Meu caro... — O sujeito parecia pensar nas palavras
certas. Não queria estragar o momento com a escolha errada. — Acho que você já sofreu o bastante por
essa noite. E também acho que vai ser mais divertido deixar você viver com medo...
Com medo de que nós possamos voltar pra te atormentar quando nos quisermos,
quando você menos esperar... Assim, talvez... Só talvez... você sofra que nem você nos fez sofrer... — Ele passou um dedo lentamente sobre as
cicatrizes do rosto, lembrando-se exatamente de como as conseguiu. Após alguns
instantes nostálgicos, seu riso voltou a soar. — Ai, ai... A morte seria um fim muito
misericordioso para você, meu caro...
—
Acabou? — Perguntou Anna.
Sua companheira soava inquieta, para dizer o mínimo. — Posso soltar-lo?
—
É... — O Alma Negra
considerou por um instante. —
Acabei. Pode soltar o traste.
Com a permissão,
Anna moveu sua mão para baixo. Com isso, o corpo de Whiskey foi arremessado contra
o chão, batendo a cabeça do homem contra o balcão de madeira. Ele não voltaria
a se mover tão cedo.
—
Espero que você não tenha matado o desgraçado... — O mascarado reclamou, mas mantendo um tom
descontraído. —
Se não, praticamente tudo o que eu disse agora foi só um desperdício de saliva.
E também... —
Ele parou. Seus olhos focaram em algo intocado em cima do balcão. — Anna, meu amor?
—
Sim...? — Ela ergueu uma
sobrancelha.
—
Ali em cima... —
Ele apontou para um copo de vidro com um líquido verde claro. — Minha bebida.. .Pode pegar pra mim? Por
favor?
—
Claro, docinho... —
Anna não conseguiu conter um leve riso. Prontamente, ela apontou para o copo
que logo começou a flutuar, guiando-o lentamente pelo ar até a mão do
companheiro. —
Mais um uso super necessário dos meus super poderes...
—
Se eu tivesse telecinese, eu faria isso eu mesmo. — O Alma Negra pegou o copo. — Mas como não tenho... — Ele deu um longo gole até beber o resto
do suco. — Eu me contento em
te pedir com jeitinho e te agradecer no final, minha linda. — Em seguida, jogou o vidro vazio para
longe, deixando-o quebrar contra o chão de madeira. — Não sou eu quem vai limpar mesmo... — Murmurou num tom brincalhão e, então,
apontou o revólver para a cabeça de Ivar. Por um momento, quase se esqueceu do
Pele-de-Aço. —
Eu gostei de como você ficou quietinho agora, mas... Agora é hora de falar...
Tudo bem, querido?
—
E... e o que você quer saber...? —
Ele indagou trêmulo. —
O que quer de mim...?
—
É bem simples... —
O mascarado sorriu. —
Eu preciso que você me devolva uma pessoa...