Mundo Cinza
Um. Dois. Três socos. O último arremessou as costas de Otto
contra a parede. Com as forças exauridas, o corpo do jovem foi cedendo,
escorregando lentamente até que estivesse sentado no chão. Um riso, então,
escapou de seus lábios.
— O
que é tão engraçado assim? —
Indagou, exausto, seu agressor. —
É engraçado sentir dor, hein?
—
É... — Respondeu com
um sorriso ainda estampado no rosto. —
Até que é... — Ele
pareceu calcular suas palavras. —
É bom... Sentir dor é bom... Depois de tanto tempo...
Os olhos de Otto fitaram a silhueta forte e a tensão no
rosto do então colega de classe Miguel. Ele jurava que, se esforçando um pouco,
poderia ouvir os batimentos cardíacos do grandalhão mesmo àquela distância.
— Não
tinha ideia que você era louco a esse ponto... —
Miguel disse quase sem forças. —
Acho que ninguém sabia... Nem você mesmo...
Após as últimas palavras, o corpo de Miguel pareceu desabar,
caindo sentado em frente ao velho companheiro.
—
Talvez seja melhor ser louco assim... —
Otto retrucou sem muito ânimo. —
Talvez seja melhor ser assim como eu do que assim como você... Do que ser como
os outros...
— Do que ser como os outros. — Repetiu as palavras como
se tentasse decifrá-las. —
Do que ser como...? Ser uma pessoa civilizada não serve para você...? Só tem
graça se for a porra de um assassino que
nem você...!?
Os olhos de Otto agora viajaram para mais longe, pelo menos
uma centena de metros além de onde Miguel estava. Lá, o laranja intenso das
chamas consumia o campus da faculdade, ardendo majestosamente contra o céu
noturno.
—
É uma bela vista, né? —
Foi tudo o que saiu de sua boca.
Miguel pareceu aturdido pelas palavras. Ele não conseguia
acreditar no que tinha ouvido. A serenidade no rosto do colega era, no mínimo,
desumana para tal situação.
—
Como ficou assim...? —
Miguel perguntou após um instante de reflexão. —
Como você chegou a esse ponto...?
—
Eu cansei. — Otto
respondeu com simplicidade.
—Cansou...?
— Hesitou. — Você... Cansou?
—
É. Cansei.
—
Cansou do quê!? — Seu
tom se tornou mais violento. —
Cansou da vida!?
—
Cansei dessa vida...
—
Explique.
— Cansei
dessa vida de gado, meu amigo. —
Disse Otto com tranquilidade invejável. —
Cansei de ser criado pro abate. Cansei de vagar nesse mundo sem cor, sem
sentimento. Cansei dessa seleção artificial. Cansei de ser mantido vivo só pra
pagar impostos. Cansei dessa merda toda...
—
Sei... — Miguel
pareceu pensativo por um segundo. —
E a solução lógica era tacar fogo em tudo...?
—
Dependendo do ponto de vista... É. È sim. —
Seu olhar, então, pareceu focalizar no nada. —
Mas não acho que você entenderia.
—
Acho que nisso você está certo.
—
Porém... — Ele chamou
a atenção de Miguel. —
Eu tenho que te fazer uma pergunta...
—
Faça então...
—
Qual foi a última vez que você se sentiu assim?
—
Assim como...?
—
Não finja que não sabe do que estou falando...
Um momento de silêncio.
—
Af... — Otto suspirou.
— Assim, do jeito que
você está. Sentindo a adrenalina no seu corpo. Sentindo o sangue pulsando mais
rápido em suas veias. Sentindo um medo genuíno. Sentindo uma raiva absoluta.
Sentindo vida...
Outro momento de silêncio.
—
Você quer dizer que fez tudo aquilo pra se sentir bem...? — Indagou Miguel.
—
Mais do que bem. —
Respondeu com firmeza. —
Sentido-se vivo de fato. Dando valor à vida por causa da real ameaça da morte,
da assustadora incerteza do amanhã...
—
E por que tirar tantas vidas...?
—
Porque elas estavam sendo mal utilizadas. E porque o sacrifício delas fará com
que os sobreviventes valorizem tal dádiva. —
Ele deixou escapar uma risada nervosa. —
Eu até tinha me esquecido como era realmente viver... Bom que eu me lembrei de
como é isso no meu último dia nesse mundo cinza.
—
Eu não vou te matar. —
Miguel disse prontamente. —
Eu só queria te parar... Queria tentar entender o porquê daquilo que você
fez... Eu nunca...
—
Nunca disse que você me mataria. —
Otto o interrompeu. —
Disse?
Sem pressa, ele retirou uma pistola de um bolso, uma arma
que nunca fez questão de sacar durante a luta com o colega.
Sem hesitar, Otto apontou a arma contra a própria têmpora. Miguel
nada pode fazer a não ser observar o
amigo fazer a última vítima daquela noite.
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