Capítulo 3
Com exceção do vento que parecia uivar, não ouve nenhum
outro som naquela praça por um instante.
—
Sabe... — A
Necromante quebrou o silêncio, ainda ameaçando a vida de Damian e curtindo a
tensão no ar como se apreciasse um bom vinho. —
Vocês podem tentar falar alguma coisa...
—
Claro... — O
Snowrealmer esboçou um sorriso. —
Mas eu me sentiria mais confortável sem essa coisa no meu pescoço.
—
E você acha que vou deixar o homem que maneja a Demonsbane à vontade? — A estranha riu por
debaixo de sua máscara de prata. —
Isso seria suicídio. —
Ela olhou na direção dos outros. —
Vocês, entretanto, também podem ser ameaças... Principalmente esse mascarado. Já
ouvi falar de você, Dreadraven... Temos um amigo em comum...
—
Duvido que amigo seja a palavra que
eu usaria para descrever aquele ser vil... —
O doutor disse sem ânimo.
— E você tem
certeza de quem eu estou falando?
— Quem mais
seria?
— Verdade...
A
Necromante olhou para o alto por um breve instante. Suas Aves Necrófagas ainda
pairavam no céu acima de praça. Então, o som de algo pesado se chocando no chão
próximo a ela, dando-a um leve susto.
Era
a Demonsbane. Damian havia soltado sua espada.
— Ficou cansado
de segurá-la? — A Necromante
zombou. — Podia ter me
avisado antes...
— Nada disso. — O guerreiro respondeu de maneira ríspida. — Só não tenho mais por que de ficar segurando
a Demonsbane.
— Como assim? — Ela deixou escapar um riso baixo. — Desistindo?
— Você não
pretende me matar. — Ele retrucou. — Não pretende matar nenhum de nós. Então não
há por que te lutar com você... Não agora, pelo menos.
Ouve
um momento de silêncio praticamente absoluto. Então, a Necromante, com um
movimento rápido, tirou a lâmina de sua foice de perto da garganta de Damian.
O
guerreiro tentou parecer calmo, mas teve que respirar aliviado por um instante.
Ele se voltou para a Necromante e a encarou.
A
estranha usava uma túnica verde escura, quase negra. Suas botas e manoplas de
couro eram reforçadas por placas de metal, feitas de aço negro e prata,
marcadas por inscrições rúnicas. Sua máscara cobria completamente o seu rosto
com a imagem de uma face sem emoções, como a de uma estátua prateada. Sua
foice, com o cabo de ébano apoiado no chão, era um pouco maior que ela mesma. A
lâmina da arma parecia uma lua crescente, cinzenta como o céu daquela tarde,
com um brilho esverdeado como as presas dos Lobos Necrófagos.
— Até que você
não é tão burro... — A Necromante
disse para Damian.
Viktor
guardou suas espadas. Elise baixou as mãos, que pararam de brilhar. A espada de
Dreadraven se desmaterializou, bem como a Demonsbane.
— Se você
quisesse ter nos matado, teria o feito sem hesitar. — Disse o doutor. — Poderia ter se utilizado dos Necrófagos ou
mesmo de um ataque surpresa com a foice.
— Então o quê? — O Sandrealmer cruzou os braços. — Veio conversar?
— Um aviso? — A sacerdotisa arriscou. — Foi por isso que veio?
— Eu vim limpar
essa cidade. — Afirmou a
Necromante. — Porém, o amigo
de Dreadraven me avisou que vocês quatro viriam para cá. Avisou que poderiam
ser um problema...
— Limpar a
cidade? — Indagou Elise,
confusa. — Como assim?
— É bem
simples... — Ela começou a
explicar. — O meu
contratante é o responsável pela praga que está acabando com tantas cidades
desse país...
— Então isso é
trabalho de apenas uma pessoa? — Viktor
perguntou, interrompendo-a.
— Bem... — A Necromante parecia legitimamente irritada.
— De onde eu
vim, interromper uma pessoa enquanto ela fala é um motivo válido para
assassinato sem ninguém em volta contestar...
— Hm... — O Sandrealmer engoliu em seco. Todos ficaram
em silêncio no instante que se seguiu. — Desculpe-me,
milady... — Ele fez um
gesto com uma mão para que ela prosseguisse. — Vá em frente.
— Continuando...
Meu contratante está usando essa praga para se livrar de quem ele não precisa
e, assim, vagando cidades para que ele e seus servos ocupem, trazendo-as de
volta à vida e... — Ela bufou. — Enfim, um longo falatório maluco sobre criar
uma utopia. Estou usando os Necrófagos para comer toda a carne podre que fica
jogada por aqui. Nada muito glamoroso. Mas vocês entenderam a ideia, não é?
— Claro... — Respondeu Damian. — Agora responda a pergunta do Sandrealmer
ali.
— Hm? — A Necromante olhou para Viktor. — Ah, claro... — Ela limpou a garganta. — Ele tem ajuda.
Mas basicamente, é só ele e um amigo que, coincidentemente...
— É o meu amigo? — Dreadraven arriscou um palpite, soando não muito feliz ao dizer a
última palavra.
— Bem, eu ia
dizer que era um amigo do Damian, mas... — A Necromante
riu baixo. — No final, dá
na mesma...
Damian
e Dreadraven trocaram um olhar. Mesmo com a máscara, o doutor parecia um tanto
quanto alarmado.
— De quem você
está falando...? — O Snowrealmer
perguntou. Ele, mesmo não querendo, já sabia a resposta. Enquanto ela não
dissesse, ele poderia continuar negando.
— Do Demônio, é
claro! — Ela respondeu
com entusiasmo. — Pele negra
como carvão, com chifres, asas e uma cauda, tudo coberto por chamas verdes.
— E eles
existem? — Viktor perguntou
cético.
— Sim... — Elise respondeu. — Apesar de serem poucos. Pelo menos, é o que
a minha Ordem me ensinou.
— E vocês estão
certos, garota Arcana... — Disse a
Necromante. — Se bem que eu
duvido que qualquer um de vocês tenha visto, e muito menos enfrentado, um
Demônio há pelo menos alguns séculos. — Ela respirou
fundo. — Mas, enfim...
Isso não importa. O que importa é que vou deixar vocês saírem andando daqui se
vocês colaborarem.
— Nos poupando? — O Sandrealmer sorriu. — Por quê? Não foi paga pra isso?
— Esse é o
motivo secundário. — A Necromante
respondeu. — O primário é
que o Demônio me pediu para não os matar. Não agora.
— E você não
pretende contrariá-lo? — Indagou Elise,
quase como se estivesse desafiando a inimiga.
— Ei... Eu sou
incrível, mas nem tanto...
—E onde ele
está? — Damian
perguntou sério.
— Você, melhor
que qualquer um, deve saber que não dá pra saber exatamente onde ele está.
Mais
uma vez, houve um momento que, se não fosse pelos ventos uivantes, o silêncio
seria absoluto. Todos encaravam o Snowrealmer esperando que ele fosse dizer
algo.
— Certo... — Damian murmurou enfim. — Falarei que você fez um bom trabalho nos
poupando.
— Eu ficaria
grata. — A Necromante
respondeu num tom alegre. — E não se
esqueça de mencionar meu nome, Tabitha. Tabitha Deathzauber, pra ser mais
exata. Não sei se ele tem contato com outros Necromantes, então diga o meu
nome, ok?
— Mas é claro...
— Então... — Viktor começou a falar. — Esse seu contratante foi até Necrol
procurando por alguém como você? Só por curiosidade...
— Ah... — Tabitha riu. — Ele veio até mim, isso é verdade. Mas eu não estava em Necrol.
Afinal, não sou de lá. E também duvido que qualquer um daqueles Necros consiga
ter um exército de Necros sob o comando deles.
— O que você
está dizendo então é que... — Dreadraven começou
a falar e, então, fez uma breve pausa. — Você é uma
Darklandian?
Os
olhares de Damian, Viktor e Elise foram diretamente para a Necromante. Sob a
máscara, ela ria do medo nos rostos das pessoas a sua frente.
O
trio não podia acreditar. Depois do Cataclismo de quase 1058 anos atrás, o
mundo havia sido dividido por forças além dos mortais. Os continentes se
afastaram ainda mais, agora, com oceanos quase sem fim como barreiras. A
maioria dos Windlandians acreditava que lugares como As Darklands eram
ficcionais, principalmente devido ao que ouviam a respeito dos lugares em
textos milenares. Todas aquelas terras pareciam ter sido criadas com o propósito
de aterrorizar, crianças e adultos igualmente, com suas lendas sobre criaturas
brutais e regiões inóspitas.
— Sim. — Tabitha respondeu. — E sim, o meu continente é tão real quanto
esse, por mais que eu mesma tivesse minhas dúvidas sobre Windlands até botar os
pés aqui.
— Aposto que é
um lugar lindo. — O Sandrealmer
zombou.
— Você não faz
ideia. — A Darklandian
disse sarcasticamente. — Clima lindo.
Fauna e flora fenomenais. Você deveria ir visitar lá algum dia.
Um
raio iluminou o céu. O trovão veio em seguida e, com ele, a chuva se
fortaleceu.
Os
pingos grossos de água começaram a cair, vindo cada vez mais deles, cada vez
mais rapidamente.
— Melhor vocês
irem agora... — Aconselhou
Tabitha. — A chuva deixa
os meus lobos de mau humor... E eu também não fico muito sociável com esse
tempo.
Sem
dizer mais uma palavra, o quarteto trocaram olhares entre si e, sem hesitar,
deixaram a praça e seguiram para fora de Silverhill, indo por uma estrada que
se dividia em duas.
***
— Então vamos
todos juntos? — Viktor
indagou.
O
Sandrealmer quebrou o silêncio. Ninguém havia dito mais nada desde o diálogo
com a Necromante, além da óbvia derrota para ela. Todos pareciam irritados e
impotentes após o acontecido. Porém, Damian era, de longe, o mais afetado com o
ocorrido.
Agora
parados fora da cidade, enfrente a uma colina, sob a chuva, os quatro se
entreolhavam.
— Bem, eu sei
que eu vou com você. — Afirmou Elise.
Ela levou a mão em direção ao coração. — Afinal, é
minha culpa que Lily...
— Eu sei. — O Sandrealmer disse rispidamente. — Mas já vamos resolver isso, certo?
A
sacerdotisa assentiu.
— Qual é
exatamente o problema? — Damian
perguntou.
— Quer que eu
resuma uma longa história? — A mulher
perguntou.
— Fale antes que
a chuva piore.
— Certo... — Ela suspirou. — Uma Sandrealmer veio até esse país. Eu a conheci numa pequena cidade na
costa. Eu estava lá para pregar a palavra de Yamlight e, com sorte, recrutar
alguns possíveis Arcanos. Acabei conhecendo a garota. Lily era o nome dela. Ela
queria viver, algo que os pais, conservadores, nunca a permitiram. — Elise sorriu. — Tudo o que eu contava sobre o nosso país, da comida que comíamos
ao deus que seguíamos, era algo maravilhoso para aquele Sandrealmer. As magias
que eu usava diante dos olhos dela a deixava deslumbrada. Nós começamos a
passar mais e mais tempo juntas... Aí... O inevitável aconteceu...
— Se
apaixonaram? — O Snowrealmer
arriscou o palpite óbvio.
— Sim. — Viktor respondeu por ela. — Porém, os Arcanos não permitem
relacionamentos. Entre pessoas do mesmo sexo, então, eles abominam. Quando
descobriram, expulsaram Elise da Ordem e Lily é escrava deles em algum maldito
templo, não muito longe da Capital.
A
sacerdotisa não disse nada. Ela estava cabisbaixa, evitando olhar nos olhos dos
companheiros.
A
chuva ficava cada vez mais forte. Os ventos pareciam chicotear o quarteto com
gotas de água de tempos em tempos.
— Vou presumir
que você conhece Lily. — Damian disse
para o Sandrealmer.
— Sim... — Ele afirmou. — Lily Carmesi. Minha irmã. — Viktor
suspirou. — Vim para este
país para procurá-la. Sabia que aquela idiota ia se meter em encrenca, mas...
O
Sandrealmer não terminou a frase. E nem precisava. A dor e preocupação em sua
voz eram nítidas. Porém, ele não havia perdido as esperanças. Ele traria Lily
de volta para casa nem que perdesse um braço e uma perna no meio do caminho.
— E suponho que vocês
vão precisar de ajuda. — Disse
Dreadraven calmamente.
— Andar com
mercenários esse caminho todo sairia caro. — Explicou Viktor. — E também me
atrasariam. Além disso, vim para cá com alguns guerreiros do clã...
Infelizmente, acabamos entrando em conflitos com os locais algumas vezes...
— E você é o
único sobrevivente. — Adivinhou Damian.
O
Sandrealmer assentiu.
— Mesmo assim
você não desistiu... — O Snowrealmer
esboçou um sorriso.
— Eu não poderia
simplesmente abandonar a minha irmã, poderia? — Ele tentou sorrir. — Ainda mais
depois de tudo o que já passei aqui...
— Uma causa
nobre... — O olhar de
Dreadraven foi de Viktor a Elise. — E uma chance
de consertar os erros do passado... — Ele fez uma
breve pausa. — Eu irei
ajudar.
— Obrigada. — Elise sorriu.
— Meu objetivo
no momento é tentar controlar essa praga. — Dreadraven
explicou. — Eu não tenho
um caminho certo para ir. Se houveram enfermos para serem curados, eu ajudarei.
— Você é um
homem bom, doutor. — O Sandrealmer
disse alegre. — E como
merecedor, terá sua recompensa no final. — Ele voltou o
olhar para Damian. — E você,
Snowrealmer...? Irá se juntar a nós?
O
guerreiro olhou para o horizonte. Ele apertava os olhos para enxergar através
da chuva densa. Havia algo lá que apenas Damian poderia enxergar.
— Não... — O Snowrealmer respondeu sem ânimo. — Eu tenho um único propósito nessas terras...
E não é te ajudar. — Ele olhou por
cima do ombro. — Não é nada
pessoal... Adeus.
Com
essa despedida sem emoção, Damian seguiu pela estrada da esquerda, descendo a
colina, enquanto aqueles que ele mal podia considerar companheiros estavam
parados, no pé da estrada que subia pela direita.
Sob
a chuva torrencial, o guerreiro sumiu da vista do trio em poucos instantes.
— Ele carrega um
fardo grande demais... — Afirmou Elise.
— Sim. — Dreadraven concordou. — Mas é melhor que não interfiramos no caminho
dele. Não agora. Não intencionalmente.
— Hm... — Viktor suspirou. — Quer dizer que vamos encontrar esse sujeito
de novo...?
— É bem
provável... — O doutor
murmurou. — Por ora, temos
o nosso caminho para seguir...
Após
essas palavras, o trio seguiu seu rumo.