quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Novo conto - Ainda sem título


O som estridente da campainha tocando me trouxe de volta à realidade.
Ok, me trouxe de volta à realidade é uma expressão muito forte. Falando assim, parece que foi um processo rápido. Não foi. Eu passei uns bons momentos piscando bem devagar, piscando várias vezes inclusive, até que meus olhos conseguissem entender o porquê de eu não poder mais ver aquela mancha no meu teto. Era porque estava escuro. Bem escuro. Porque já era de noite. Não era de noite quando eu comecei a encarar aquele borrão cinza no meio daquela lisa superfície branca. E em algum momento, meu cérebro resolveu viajar para outra dimensão, deixando o meu corpo abandonado naquele sofá bege e surrado. E pela baba seca no canto da minha boca, eu havia dormido... Em algum momento, que eu também não fazia ideia de quando havia sido, eu havia dormido. Mas não havia descansado... Nem um pouco.
Que bosta...
A campainha tocou de novo então.
Após soltar um grunhido de irritação completamente justificável, eu enfim levantei. Quase tropeçando nos meus próprios pés, cambaleei até chegar à entrada de casa.
“Você deve ser minha nova vizinha”, disse uma pessoa alegre no mesmo instante que eu abri a porta. Não vou negar que levei um leve susto.
            “Oi?”, foi tudo o que saiu da minha boca. Eu precisava de mais uns instantes até começar a formular frases.
            “Eu sou Felix”, o garoto se apresentou com um tom animado, estendendo a mão para mim, educadamente não mencionando a minha cara de quem parecia estar de ressaca.
            “Laila”, eu disse meu nome sem muito entusiasmo e apertei a mão do sujeito, não esperando um aperto de mão tão firme.
            “Prazer em conhecê-la, Laila”, ele sorriu, mostrando nitidamente seus dentes brancos e perfeitos. Aquele sorriso juntamente com o resto do visual arrumadinho me fez acreditar que eu estava falando com um boneco Ken de carne e osso. “E seja bem vinda ao Residencial Lavanda!”, Felix falou aquilo com muito mais entusiasmo que o locador do meu apartamento depois de firmarmos o contrato. “Espero que você se adapte bem à sua nova casa! Em breve, esse se tornará seu novo lar! Tenho certeza que você será bem acolhida por seus vizinhos e vizinhas! Ah, e qualquer coisa que você venha a precisar, não importa o que seja, é só me chamar, viu, querida? É só bater na porta logo ao lado da sua!”.
            “Obrigada...”, agradeci, esboçando um sorriso, tentando digerir tanta gentileza de uma vez. Eu realmente não fico à vontade com tanta positividade assim, principalmente logo depois de acordar. “Prazer em conhecê-lo, viu?”, falei com um certo receio de ter soado sarcástica. “Eu falo mais com você assim que eu terminar de arrumar umas coisas aqui em casa e...”.
            “Precisa de ajuda com alguma coisa?”, Felix me interrompeu. Olha a audácia do filho da puta... “Desempacotar umas caixas? Ou empurrar algum móvel? Ou varrer o chão? Ou...?”
            “Não!”, eu o cortei, respondendo um pouco rápido e um pouco alto demais, o que fez o garoto arregalar um pouco os olhos. Mas ele meio que precisava daquele corte. “Nada que eu não possa resolver...”. Continuei. “Agradeço a oferta”.
            “Não há de quê!”, Felix sorriu um sorriso ainda mais largo, o que achei que não era possível.
            E então, ele continuou ali.
            Parado.
            Ainda sorrindo.
            Eu estava começando a me sentir desconfortável.
            “Não tem mais nenhum vizinho novo aqui pelo prédio...?”, perguntei, pensando o quão grosseiro seria simplesmente fechar a porta na cara dele. “Sabe... Mais alguém que você possa ajudar talvez?”.
            “Só havia um apartamento vago nesses últimos tempos... O seu, querida!”, exclamou o Senhor Entusiasmo. MAS É CLARO QUE SÓ TINHA O MEU CARALHO. “Os preços dos alugueis daqui são muito em conta, como você pode ter reparado...”, ele começou a explicar, mesmo ninguém tendo pedido. E continuou explicando. Gesticulando muito inclusive. Não vou te julgar se você pular pro próximo parágrafo. “Então os apartamentos não ficam vagos por muito tempo, principalmente com tantos universitários praticamente sem dinheiro algum tais como euzinho aqui precisando de um lugar pra ficar que não seja muito longe da faculdade na cidade vizinha, que, meu deus, tem um custo de vida absurdamente alto pra uma cidadezinha pouca coisa maior que a nossa, sabe? Então compensa muito mais ficar por essas bandas e pegar ônibus, ou dirigir até lá se você tem carro que, cá entre nós, não é o caso de muita gente mas...”.
            De repente, um grito irrompeu do corredor, parecendo cortar o próprio ar, sufocando todos os outros sons, até que só houvesse silêncio... O que foi um alívio! Aquilo fez o Felix calar a boca, mesmo que só por uns poucos instantes. E também eu não tive que ser rude e fechar a porta na cara dele que nem eu estava prestes a fazer. Tudo deu certo no final!
            Mas de volta ao grito assustador...
            Eu pisei pra fora do apartamento o mais rápido que pude, arrependendo-me no mesmo instante. O chão estava gelado e eu estava descalça. Soltei um leve e um tanto vergonhoso “ah!” na hora.
            “O que foi isso?”, eu tratei logo de perguntar sobre o grito antes que Felix se propusesse a pegar meus chinelos para mim.
            “Provavelmente mais algum invasor”, ele respondeu como se fosse a coisa mais natural do mundo.
            “Hein?”, eu ergui uma sobrancelha e encarei o garoto. Esperei ele soltar uma risada e falar que era uma brincadeira, mas não aconteceu. “Você tá falando sério?”.
            “Uhum, acontece mais do que você imagina por aqui...”, Felix continuou com o tom calmo e casual. “As paredes do Residencial são bem baixas, dá pra escalar sem problemas. A cerca elétrica também não impede ninguém, até porque acho que ela nunca funcionou. E os vigias, bem...”, ele soltou um breve riso. “Eles não são lá muito bons em vigiar, sabe? Isso sem contar com a parede quebrada lá nos fundos...”.
            “É, demoraram alguns bons minutos pra abrirem o portão pra mim quando cheguei mais cedo...”, concordei um tanto irritada com a parte do vigia. Eu odeio ficar parada esperando. Mas depois eu consegui focar no mais importante: “Bem, a segurança desse lugar parece uma merda. Queria saber disso melhor antes. Talvez eu teria me preparado melhor para um assalto sabendo disso com antecedência”.
            “Nem sempre são assaltos...”, ele murmurou.
            Ok, agora, no momento em que escrevo essas palavras, eu sei muito bem o que Felix queria dizer com aquilo. MAS PUTA QUE O PARIU. Na hora eu gelei, já esperando o pior destino possível. O JEITO QUE AQUELE ARROMBADO FALOU TAMBÉM NÃO AJUDOU EM NADA. Sério. Parecia que a voz dele tinha se tornado mais sombria por uns poucos instantes, quase como se outra pessoa falasse em seu lugar.
            Mas enfim... Eu como qualquer pessoa sensata que estivesse no meu lugar levei uma mão pra dentro do direito bolso de minha calça, debaixo da barra de minha camisa, alcancei minha faca, e sugeri:
            “Não seria melhor voltar pra dentro de casa...?”.
            Antes que eu pudesse tentar falar mais alguma coisa, mais um grito ecoou pelo prédio. Dessa vez, mais longo e estridente que o último, sumindo de repente, como se a voz tivesse sido roubada.
            “Não”, disse Felix. Demorei uns instantes pra perceber que aquele era a resposta dele pra minha pergunta. Ele então olhou pra mim e sorriu. “Acho que o sistema de segurança do prédio ta dando um jeito nos invasores”.
            Sistema de segurança?”, perguntei, sentindo como se eu não tivesse entendendo alguma piada interna do prédio. “Achei que nem tinham câmeras de segurança aqui depois de tudo o que você disse...”.
            Então, um terceiro grito soou, muito mais grave e profundo do que os dois últimos. Pareceu ter vindo de mais perto também. De muito mais perto. E também... Aquilo não soava como uma pessoa. Era parecido, mas não era humano. Tinha certeza daquilo.
            Mas antes que eu pudesse comentar, um novo som preencheu os corredores do prédio.
            Era diferente de tudo o que eu já tinha ouvido. Pelo menos, de tudo que eu já tinha ouvido pessoalmente. Parecia a mistura de um rosnado de um pastor alemão com um grunhido de um porco. Com um pouco de um grasnado também, eu acho. Era impressão minha ou tinha um leve relincho misturado no meio? Eu já não sabia mais exatamente o que eu ouvia, pra ser sincera, mas sabia de onde vinha.
            “O andar debaixo...”, murmurei enquanto levava uma mão ao bolso.  “Está vindo do andar debaixo...”.
            Passos vieram em seguida. Vagarosos, eles subiram os degraus da escada. Um a um. Pesados. Sem ritmo algum. Ecoando mais alto a cada pisada sobre os azulejos. Droga... Eu podia sentir meu coração batendo frenético, tentando acompanhar aquela melodia caótica. Meus dedos se firmaram com afinco no cabo de minha faca escondida. Eu ia ter que usá-la. Não tinha jeito. Eu podia sentir...
            E daquela eternidade feita de segundos intermináveis, veio uma criatura.
            A primeira coisa que eu vi foi sua mão, terminando de puxar a criatura andar acima. Mais pálida que uma lua cheia, com garras negras que mais pareciam facas em cada dedo, aquela coisa deveria ser facilmente maior que minha cabeça... E Sentia que poderia esmagá-la se tivesse a chance.
            No instante seguinte, pude ver o resto da aberração. O corpo era magro e alto demais, talvez com uns dois metros e meio de altura. A pele tão pálida quanto a mão que acabei de comentar , parecia dura, feita de rocha ou de algum tipo de metal, com a textura como a de um crocodilo. E a cabeça... Era a pior parte. Nada tinha nela a não ser um único e gigantesco olho pulsante e avermelhado, encarando-me fixamente, quase como se estivesse esperando eu começar a correr para poder me caçar.
            Porém... Eu não havia visto, de fato, o corpo inteiro do monstro.
            Assim... Quando aquilo subiu as escadas, ele vou presumir que era um ele estava de lado em relação a mim. No instante seguinte, ao se virar, tive acesso a duas novas informações.
            A primeira era que ela tinha uma boca. Só que não ficava na cabeça dele; ficava bem no meio do abdômen... Era bem grande e cheia de dentes... E também abria na vertical. Era uma visão única, sem dúvida.
            A segunda informação era: ele tinha um buraco no meio do peito do qual escorria algum líquido verde gosmento , grande o suficiente para eu atravessar minha perna ali sem problemas. Porém... Aquilo não era normal.
            Como você pode ter certeza que aquilo não era normal no meio de uma aberração daquelas, de um monstro que você nunca antes havia visto?”, você pode estar se perguntando. E eu entendo o porquê dessa pergunta. É uma boa pergunta. A resposta, entretanto, é bem simples: o bicho caiu morto logo em seguida.
            A boca vertical do monstro se abriu ligeiramente, soltando um último e fraco grito, quase um assovio. E então, a criatura albina caiu para frente, inerte, acertando o chão frio com seu torso e olho gigante.
            E como se não fosse coisa demais para se processar de uma vez, o cadáver começou a derreter bem em frente aos meus olhos, deixando nada a não ser uns restos de espuma esverdeada.
            Mano...
            Foi tanta coisa acontecendo que eu nem me toquei que havia outra criatura no corredor.
            Senti um calafrio percorrer minha espinha. Metros à frente, envolto pelas sombras, havia um vulto nos observando com um par de olhos brilhantes. Eu não sabia dizer o que era... Não conseguia saber seu tamanho, muito menos distinguir sua forma no meio daquela escuridão. Por quanto tempo aquilo estava ali, parado? Apenas nos encarando? Nos estudando?
            Felix, que estava quieto demais, resolveu me lembrar que ainda estava ali, do meu lado. E o que ele fez em seguida, meu caro leitor, exigiu toda a minha força de vontade para não enfiar a minha mão na cara dele.
            “GIZMO!”, o garoto gritou de repente. “VEM AQUI, MEU LINDO!”.
            A porra do susto me fez dar um pulo pra trás.
            “VOCÊ PERDEU A NOÇÃO CARALHO?”, propus a reflexão para Felix.
            Agora era ele quem estava assustado. Bem feito.
            “Eu...”, a voz dele desafinou por um momento. “Eu só estava chamando o Gizmo...”, Felix respondeu por fim, sem jeito algum. Seus olhos, então, pareceram se transformar nos olhos de um vira-lata abandonado numa noite escura pedindo um pouco de comida. “Desculpa ter te assustado, Laila. Não foi minha atenção, eu juro...”.
            Mano...
            Como que se fica irritada com uma cara daquelas?
            Não se fica. Essa é a resposta.
            Ah, é... Creio que meus gritos de ódio assustaram o tal do Gizmo... Porque ele sumiu. Não havia mais um par de olhos nos encarando.
            “Relaxa...”, eu suspirei. Então, pensei um pouco antes de perguntar: “Esse tal de Gizmo é o quê? Um cachorro do prédio...?”. Logo que eu terminei de falar, acabei me tocando: “Ele que é o tal sistema de segurança do prédio?”.
            “Sim e não...”, Felix começou a responder. “Sim, ele é o sistema de segurança. Mas... Não, ele não é bem um cachorro, sabe? Ele é... Hmm...”, o garoto coçou o queixo, pensativo, tentando achar as palavras certas. Mas acabou não precisando. “Olha!”, ele exclamou animado, apontando para trás de mim. “Ali está ele!”.
            Eu me virei e me deparei com aquilo, sem ter ideia de como reagir. Porque meu Deus... Eu não estava preparada pra ver o Gizmo tão de perto. Tipo... Nem um pouco preparada.
            Pra começo de conversa, a criatura certamente não era um cachorro. Ele estava de pé sobre duas patas posteriores. Seus longos braços quase tocavam o chão sem esforço algum. A longa cauda balançava frenética, quase como se tivesse vida própria. No primeiro momento, não consegui distinguir se ele tinha pelos ou penas talvez ambos? , nem mesmo a bendita cor que aquilo tinha parecendo variar entre tons de verde escuro e preto —, mudando a cada instante. Era como se eu sentisse um mal estar só de olhar para aquela confusão... E EU NEM COMECEI A FALAR DO ROSTO. MEU DEUS. O ROSTO. Aquele rosto mais parecia uma máscara. Era rígido, com uma boca que não aparecia quando fechada e dois grandes olhos amarelos que pareciam brilhar. Ok, grandes é um puta de um eufemismo. Aqueles olhos eram enormes, completamente desproporcionais ao resto da cabeça, que parecia ter crescido numa forma que lembrava um coração um coração bonitinho, aquele que simboliza o amor e tal, não um coração de verdade, só pra deixar claro só para comportar as duas colossais órbitas.
            Mano, que bicho estranho da porra.
            Gizmo, de repente, começou a se mover quase como se não tivesse peso. Nem seus passos faziam barulho. Se eu tivesse piscado, não teria visto a criatura subir nas costas de Felix e abraçar seu peito, segurando-se no garoto como se fosse uma mochila bem estranha.
            “Seu fofo”, falou Felix com a típica voz de bebê que praticamente todo mundo usa quando fala com seu bichinho de estimação. Em seguida, ele estendeu a mão para trás e fez carinho da cabeça de Gizmo. “Sempre manhoso você, não é?”, o garoto soltou um breve riso após o bicho emitir algum som que, talvez, sob uma perspectiva diferente da minha, alguém pudesse achar fofo ao invés de inquietante.
            E por alguns momentos fiquei ali, parada, apenas observando aquela troca de afetos entre um boneco de plástico que ganhou vida e uma coisa que parecia um grande Gremlin depois de cair na água.
            Espera aí.
            SERÁ QUE FOI POR ISSO QUE DERAM O NOME DELE DE GIZMO?    Caralho, só pensei nisso agora que tô escrevendo. Meu Deus do Céu. Como não percebi isso antes? Mano...
            “Então...”, foi a primeira palavra que saiu de minha boca após um tempo. “Mascote interessante”, eu disse sem muita cerimônia. E também sem saber o que mais falar.
            “Ele é mais que só um mascote”, disse Felix, ainda afagando a cabeça de Gizmo. “Ele é um membro muito importante da nossa família aqui do Residencial Lavanda!”, o garoto falou com orgulho na voz. Pela cauda do bicho em suas costas balançando ainda mais rapidamente, vou presumir que ele gostou do elogio, do mesmo jeito que presumi que ele funciona que nem um cachorro.
            “Mas é claro”, eu sorri, ainda com a mão no bolso. “Estou curiosa...”, eu falei, ainda observando atentamente a criatura, pensando por qual pergunta começar. “Como exatamente o Gizmo apareceu por aqui?”.
            “Olha... Foi bem do nada”, Felix começou a responder tranquilamente. “Uma amiga minha daqui do prédio Agatha, o nome dela , achou ele um dia revirando o lixo, procurando comida. Ela ofereceu um pouco de comida pra ele e o bichinho foi se afeiçoando a ela, sabe? Claro que eu e os outros estranhamos no começo. Não vou negar. Nem sabíamos o que era aquele bicho. Ainda nem sabemos ao certo. Mas... A Agatha... Ela teve um bom pressentimento sobre ele. E... Aquilo era o suficiente para nós começarmos a interagir com esse serzinho pitoresco. E de repente, todo o nosso grupinho de amigos não parecia mais conseguir viver sem ele...
            “Entendi”, eu disse com um sorriso, pensativa.
            Ambas as vezes em que Felix mencionou o nome dessa garota, dessa tal de Agatha, ele soou diferente. Anormal, pra dizer o mínimo. Era como se tivesse algo entalado na garganta dele, algo que ele queria contar... Mas que evitava por algum motivo.
            Eu ia fazer ele contar o segredinho dele.
            “E essa Agatha simplesmente começou a cuidar dele?”, perguntei, realmente curiosa. “Começou a cuidar dessa coisa que bem podia arrancar a cara dela fora?”.
            “Ela é assim mesmo”, Felix afirmou num tom sereno. Gizmo agora estava em seus braços, quase como um bebê, tendo sua barriga coçada. Não acho que o bicho sairia de lá tão cedo. “Sempre carinhosa, sempre se arriscando pelos outros, até pelos desconhecidos...”, o garoto continuou falando com um sorriso sincero no rosto. “Às vezes nem parecia real, sabe? Ela parecia saber quando você estava triste, e aí largava tudo o que ela estava fazendo pra te ajudar como podia... Parecia iluminar um ambiente só de entrar nele, trazendo uma energia tão boa... Parecia arrancar sorrisos de quem quisesse, sem esforço algum... Parecia um anjo que havia entrado na minha vida... Um anjo que entrava na vida de qualquer um que tivesse sorte de conhecê-la... Até que...”.
            Felix parou. Ele ficou em silêncio por alguns instantes, parado ali, apenas fazendo carinho na barriga do Gizmo. Eu demorei um pouco pra perceber os fios de lágrimas que desciam por suas bochechas.
            “Felix...”, eu comecei a falar, mas não sabia como continuar.
            “Desculpa...”, ele falou com a voz chorosa, colocando Gizmo no chão com cuidado para poder secar as lágrimas em seu rosto. “Eu deixei me levar...”.
            “Não precisa se desculpar”, eu disse num tom carinhoso, sorrindo para o garoto em seguida. Fiquei contente em ter meu sorriso retribuído. “Eu que fiquei fazendo perguntas que não devia...”.
            “Bobagem”, Felix soltou uma risada baixa. “Você não falou nada de mais. É só que...”, ele suspirou, fazendo com que seu sorriso desaparecesse em seguida. “Eu sinto muita falta dela...”. Os olhos dele vagaram para além de mim, para a porta fechada do meu apartamento. “Ela morava aí...”.
            “Bem onde eu tô morando?”, perguntei enquanto senti um leve mal-estar.
            Felix assentiu, sem dizer nada.
            “Meu Deus...”, eu murmurei, respirando fundo e exalando com calma em seguida. Meus olhos se dirigiram para os do garoto então. “Se não for causar incômodo... Você pode me dizer o que aconteceu com a Agatha?”.
            “Ela... Simplesmente desapareceu”, ele respondeu claramente desanimado. “Faz dois meses já... Por isso que o apartamento já estava para ser alugado de novo. Pedimos para o locador para que pudéssemos ficar com as coisas dela, para caso a Agatha voltasse... Ele permitiu. Eu e meus amigos dividimos as coisas dela entre nós, esperando...”.
            Felix parou de falar. Seus olhos estavam marejados. Pude sentir a dor em sua voz ao dizer suas últimas palavras. Por isso, eu esperei mais alguns momentos antes de falar o que eu tinha que falar:
            “Casos de desaparecimento estão longe de serem incomuns nesta região...”, minha voz estava séria. “Geralmente, entretanto, as vítimas... Elas reaparecem sozinhas pouco tempo depois... É difícil de explicar, mas... Muita merda estranha acontece por aqui...”.
            “É, muita merda mesmo...”, o garoto concordou com um leve sorriso, que logo se dissipou. “Mas nós nunca achamos que vai acontecer conosco... Ou com quem é próximo de nós...”. Os olhos dele, de repente, fixaram-se nos meus. Em silêncio, Felix parecia me analisar, calmamente, pensando por qual pergunta começar. Mas, enfim, ele perguntou: “Quem exatamente é você, Laila?”.
            Quem sou eu?”, eu sorri. “Alguém que, com sorte, poderá ajudar”, respondi, tentando soar o mais confiante possível. “É o meu trabalho, afinal de contas”.
            E, pelo visto, minha confiança teve resultado. Quando vi um olhar esperançoso no rosto de Felix, resolvi fazer uma promessa que eu não sabia se poderia cumprir:
            “Nós vamos achar a Agatha”.

sábado, 13 de outubro de 2018

Poema - Leviatã



Uma vez ouvi que a esperança
Era o perfeito oposto do medo
Dois inimigos unidos numa dança
Com deveras imprevisível enredo
Que transforma doce lembrança
Num episódio de gosto azedo

Mas nunca antes consegui entender
Nunca antes em toda sua plenitude
Nunca até que eu pudesse enfim ver
De um pesadelo a real magnitude
Quando ele demonstrava seu poder:
A negação de todas as virtudes

Então senti o ar pesar ao meu redor
E um vento gélido soprou na terra
Quase como se anunciasse algo pior
Que sentimentos torpes desenterra
Uma dolorosa certeza cada vez maior
 De que o amanhã pode ser uma guerra

Agora posso ver o medo claramente
Estampado no rosto daqueles que amo
Reduzidos a mais um bando descrente
Pelo sofrimento de vocês eu exclamo
Pois não aguento mais este ar doente
Por seus sorrisos de antes ainda clamo

E ainda há aqueles que tentam resistir
Motivados por um desespero dos mais puros
Tentam se segurar em algo para não cair
Não querem ser dragados pelos mares escuros
Então inventam a luz na figura de um vizir
Num falso deus que os faça se sentir seguros

E o tempo galopa no seu ritmo incessante
Marcha pronto até a hora da verdade
Se tornando cada vez menos distante
A trilha até o olho dessa tempestade
Se tornando cada vez mais agonizante
A espera da iminente calamidade

Chamas eclodem por todos os lados
O fogo ardente de uma conflagração
O ódio ruge com discursos inflamados
Dois os lados que acusam um vilão
Queimando outros por falsos pecados
Tudo queima, mas é em vão...

Porque no final só nos resta aguardar
A decisão sobre quem subirá ao divã
Juntaremos forças de novo para suportar
A mais nova face desse velho leviatã
Outra batalha ecoará nesse mesmo lugar
Se quisermos levantar mais um amanhã

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Poema - Jornada



Nessa jornada que um fim não parece ter
Nos perdemos mais do que gostaríamos
Dessa guerra da qual não podemos correr
Nós perdemos mais do que admitimos
Num labirinto que se ergue a cada amanhecer
 Procuramos uma saída que proferimos
Caindo exaustos no chão a cada anoitecer
Sem nos questionar de como agimos

Porque talvez errado estamos correndo
Explicaria por que estamos tão ofegantes
Perseguindo miragens que estamos vendo
Mas que se tornam cada vez mais distantes
Nossas forças vão então se desvanecendo
Extinguindo-se dos nossos semblantes
Enquanto uma dor vem nos preenchendo
E por fim nos esquecemos do antes

Antes de carregarmos o peso do mundo
Antes de nos moldarem a uma imagem
O que será que somos bem lá no fundo?
Como é a alma por debaixo da blindagem?
Deixamos o corpo se tornar moribundo
Para satisfazer algum outro personagem
Uma amálgama com um caráter imundo:
O esmagador pedágio da nossa viagem

Nossos sonhos foram então apagados
À força arrancados por mãos alheias
Na esperança de cairmos desamparados
Num deserto soterrados por suas areias
Sem olharmos para caminhos passados
Velhos túneis cobertos por densas teias
Impermeados por ideais abandonados
De vidas que antes pareciam cheias

A verdade tem outra face entretanto
A doce e sedutora nostalgia nos engana
Nos carrega até aquele velho canto
Nos vicia com uma ação tão mundana
Que nós nem mesmo esboçamos espanto
Quando a amarga tristeza nos esgana
Queremos apenas recorrer ao pranto
Sem almejar enxergar o nirvana

Pois de tudo do passado que enxergamos
De algo valoroso ignoramos a existência
Que há tanto tempo nós abandonamos
Por muito mais que falta de sapiência
Porque para sobreviver nós mudamos
Sacrificamos mais que nossa inocência
E de tão cegamente que nós lutamos
Acabamos por perder nossa real essência

Nos tornamos algo que não queremos admitir
   Um ser costurado como uma colcha de retalhos
Nos tornamos algo que desejamos é omitir
Um ser humano deixado em frangalhos
Alguém que escolheu por tanto se reprimir
Que só realmente se expressa por atos falhos
Alguém cheio demais de nadas para sentir
Algo real além da chegada de seus grisalhos

Mas as nossas histórias não precisam acabar assim
Pois pode ser recuperado aquilo que foi perdido
As centelhas de nossas chamas não chegaram ao fim
Então deixemos queimar o que não tem nos servido
Para podermos respirar sem sentirmos o gosto ruim
Daquilo que nos tem a essa torpe escuridão prendido
Seguiremos nosso caminho como quisermos enfim
E seremos quem nós sempre deveríamos ter sido

Não mais nos contentaremos com a mediocridade
Não mais nos tornaremos vazios para preencher alguém
Não mais ousaremos desistir na nossa própria vontade
Em prol de quem sempre nos trata com tamanho desdém
Reencontraremos nós mesmos no meio dessa tempestade
Para não mais do acaso ser apenas mais um mero refém
E não mais tentaremos nos esconder da realidade
Porque nossa bravura finalmente nos cai bem

Agora enfim podemos nos olhar nos espelhos
Sem termos de nos envergonhar do que vemos
Sem mais termos de cair derrotados de joelhos
Pedindo por perdão pela vida que escolhemos
Porque já ouvimos os mais loucos conselhos
E de nós nunca mais nos arrependeremos
Após sangrarmos tantos rubis vermelhos
Podemos nos orgulhar de como vivemos

E com essa força na qual podemos contar agora
O mais pesado dos fardos já não pesa mais nada
A culpa dos incontáveis erros cometidos outrora
Apenas nos fortalece a cada verdade revelada
Enfrentando sem medo os demônios de agora
Pois os do passado não mais sobrevivem à alvorada
Anunciando com seu brilho a chegada da nossa hora:
A hora de sorrirmos para enfim viver a nossa jornada

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Histórias sobre o Meio do Nada - Bem vindo ao Cu do Mundo


Bem vindo ao Cu do Mundo


No encontro do limite entre três pequenas cidades, há uma faculdade. Não contarei o nome dessa faculdade, nem mesmo pretendo falar o nome das cidadezinhas ao redor. Do fundo do meu coração, não acho uma boa ideia informar ao mundo sobre a localização desse lugar. Se você quiser estudar num lugar como esse, você está mentindo para você mesmo. Sério. O lugar é um lixo. E assombrado. Você teria que estar muito sem opções para querer vir para cá. Ou tem algum tipo de problema sério que nem eu. Ou você se odeia. Ou qualquer combinação dessas alternativas.
Já falei que o lugar é um lixo?  E assombrado?
Bem... Assombrado é resumir demais. Você vai entender os motivos. Tenho muito a contar sobre aqui. Por quê? Bem... Porque achei que seria divertido. E bem... Eu gosto de escrever. E muitas coisas, bem, curiosas acontecem por aqui... Coisas estranhas que, acredite ou não, você se acostuma, que viram rotineiras... Mas acho que isso só vale pra quem já está aqui há um tempo, sabe? Coisa de um semestre faz você se adaptar. Com quatro semestres sobrevividos, poucas coisas andam me surpreendendo. Por isso que acho que essas coisas podem surpreender e, quem sabe, até divertir um forasteiro como você, meu caro leitor... Ou leitora... Ou sei lá como você se identifica... Sem preconceitos.
Parando para pensar, outro ótimo motivo para eu não falar o nome da faculdade é poder se esquivar de um possível processo. No mínino diriam que estou difamando o lugar, fazendo publicidade negativa... E eu não tenho dinheiro para torrar com processos. Mal tenho dinheiro para pagar as contas do mês.
Porém, devo admitir... Uma coisa ótima sobre essa faculdade é o preço, porque ela é pública... Mas não deixa de ser um lixo por causa disso. Sério. Tem Federal no nome oficial dessa merda, mas acho que é só marketing.
Já falei que o lugar é um lixo?
Enfim... Deixe-me pensar por qual conto da UfsCu eu começo...
Ah, é. UfsCu é o apelido carinhoso dado pelos alunos para a faculdade. Parecia meio bobo no começo, mas você se apega a ele. E acho que não conseguiria pensar num apelido mais adequado para uma faculdade no cu do mundo.
Hmm... Acho que vou começar contando sobre o começo desse semestre e a visita do Arauto do Fim dos Tempos.
Mas, sabe... Outro dia. Tenho que acordar cedo amanhã. Prova fodida. Professor pior ainda. Nada fora do normal.
Então, se tudo der certo... Até amanhã.

sábado, 26 de maio de 2018

A Rainha Vermelha, Prólogo



O carro blindado avançou pela estrada de terra cinzenta. Um véu de poeira se levantava suavemente com o movimento de suas rodas. Um sopro de vento fresco indicava a mudança iminente do tempo. Nuvens escuras já cobriam o céu novamente. Mais chuva estava por vir.
Esse tempo anda cada vez pior, não...? Comentou o motorista, tentando quebrar o silêncio que dominava o interior do carro. Seus olhos se dirigiram ao retrovisor, avistando a quieta passageira de cabelos ruivos, cujo olhar parecia perdido. Não me lembro de chover tanto assim nos últimos anos... Ele continuou após alguns segundos de silêncio. Acha que com tudo que vem acontecendo, até o clima está mudando...?
É assustador. A Rainha Vermelha disse num tom seco.
Ah... O homem parecia confuso. O tempo está assustador, senhora...?
Não... Ela respondeu. Não o tempo... Aquelas paredes...
Foi aí que o motorista olhou para onde sua chefe olhava, para as muralhas da Capital.
As grandes paredes brancas pareciam feitas de marfim. Altas como torres, elas circundavam toda a área ao redor do planalto onde a cidade se situava, deixando a Capital ainda mais inatingível para os que foram deixados de fora dela. Um abismo social mais nítido não existia, dividindo artificialmente os limites de dois mundos tão antagônicos.
Você acha que essas paredes vão cair algum dia? O homem perguntou. Que gente como nós vai poder ver como é lá dentro?
Talvez... A Rainha respondeu pensativa, quase se esquecendo que poucos sabiam de suas origens. Mas talvez fosse melhor que elas continuassem de pé... Que nós continuássemos aqui. E eles continuassem lá.
Por quê? Ele soou intrigado.
Porque elas nos mantém seguros, de um certo jeito... Ela respondeu calmamente. Longe de um certo tipo de doença... Um tipo de vírus que só prolifera em lugares como aquele... Uma ignorância, uma arrogância que felizmente não vemos por aqui.
Ah... Entendo. O motorista pareceu segurar algo em sua garganta. Não falou por medo da reação que poderia vir. Não seria bom ofender sua chefe com alguma pergunta inapropriada, não é mesmo?. Mas lá dentro não pode ser tão ruim quanto aqui, não é? Disse após um pouco pensar. Com certeza não correm o mesmo risco de vida lá dentro, não...?
Hm... A Rainha ponderou por um breve instante. São maus diferentes, sabe? Diferentes maneiras de sofrer... Diferentes maneiras de morrer... De um jeito ou de outro as pessoas se ferram nesse mundo... Ela deu de ombros. Acho que é inevitável...
O homem apenas assentiu, sem muita vontade de continuar a conversa. Aceitaria o silêncio pelo resto da viagem.
Por sorte, não demoraram. Logo haviam chegado ao seu destino.
Sob a sombra das grandes paredes brancas, estava a pequena vila. Era um simples amontoado de casas humildes e comércios pequenos, um lugar calmo que parecia intocado pelo caos do mundo em que viviam.
Com o parar do carro, os olhares de curiosos logo rodearam o automóvel. Algumas crianças que brincavam na rua. Algumas senhoras que olhavam pela janela. Até mesmo alguns cachorros que corriam sem rumo certo. Todos observavam, mesmo que timidamente, o grande veículo blindado, ornado por diversas marcas de tiros (pequenas lembranças do último confronto). Aquela com certeza não era uma visão típica de um lugar pacato como aquele.
Tem certeza que esse é o lugar certo? O motorista perguntou, erguendo uma sobrancelha.
Meu pai me disse que sim... A rainha respondeu pensativa. Então, sim, tenho certeza que este é o lugar...
Ah, sim. Ele quase parecia envergonhado por ter perguntado. Claro...
Eu vou tentar não demorar lá dentro.
Certo, senhora.
E... Ela olhou o homem diretamente nos olhos. Nicolas... Chamou o motorista pelo seu nome.
Senhora...?
Muito obrigada. A rainha sorriu, genuinamente grata. Pela carona. E principalmente pela companhia. Sinto que eu precisava disso.
Bem... Nicolas sorriu sem jeito, um pouco surpreso, inclusive. Estou feliz em ajudar, minha Rainha.
Com mais uma troca de sorrisos, os dois se despediram pelo momento.
Uma vez fora do carro, a Rainha observou a casa bem em sua frente. Fitou as paredes amarelas, a porta de madeira simples, as flores em vasos dispostos sobre o parapeito da janela. Sentiu um aroma familiar, incrivelmente nostálgico, vindo de dentro do lugar. Ela logo se sentiu confortável, com um calor ameno que vinha de dentro de si.
Então, com passos tranquilos, andou sobre o caminho de pedras brancas até a porta e tocou a campainha. Um único, longo toque soou. Poucos instantes depois, a maçaneta rodou, e a porta se abriu.
Vestido florido simples. Postura meio curvada. Óculos de lentes grossas. Olhos quase opacos. Cabelos brancos arrumados num coque. Pele cheia de rugas. Um sorriso caloroso.
Boa tarde! A senhora saudou, arrumando os óculos em seguida. Seus olhos se arregalaram ao perceber quem era a visitante. Sophia... Falou o nome com doçura. É você mesma...?
Ela não pôde dizer nem mais uma palavra. A Rainha se atirou, abraçando forte Agnes Ambrose, sua avó.
Eu estava te devendo essa visita fazia muito tempo. Disse a neta, após mais alguns instantes de um abraço apertado. Me desculpe por essa demora toda... Eu...
Esteve ocupada. A senhora completou a fala. Eu sei... Seu pai andou me contando...
Um silêncio, então, pareceu dominar o local, quase roubando a cor da cena.
Martin... Agnes falou quase como se sussurrasse. Ele...?
Uma lágrima escorreu pelo rosto da Rainha Vermelha.
Se foi... Mas não em vão. A senhora concluiu. Morreu em combate, como tantos Ambroses antes de nós?
Sim. A neta assentiu, enxugando a lágrima do rosto em seguida. Se não fosse por ele, não estaria aqui... Não estaria viva...
Eu sei... Agnes disse num tom calmo. Eu... Senti que conversei com ele, sabe? Com o espírito de meu filho... Pareceu tão real... Ela hesitou por um momento. Seu olhar parecia se perder no horizonte. Acho que eu não estava louca afinal de contas. Sorriu por um breve instante. Já chorei todas as lágrimas que tinha pra chorar... Mas meu coração ainda dói...
Vó...
A Rainha interrompeu o abraço que estava prestes a dar.
Ela se sentiu observada por alguém que não havia notado antes. Sua mão, instintivamente, pousou sobre o cabo da arma em sua cintura.
Seu olhar correu para dentro da casa. Por um instante, viu uma figura parada no fundo do cômodo. Tinha formato humano, tinha certeza. Mas sobre os detalhes não podia dizer. Foi quase como se aquilo, simplesmente, desaparecesse em pleno ar, como se nunca estivesse lá.
Estaria o vulto lá esse tempo todo, apenas observando? Ou teria entrado na casa naquele instante e, ao ser detectado, fugiu? Como alguém poderia aparecer e desaparecer daquele jeito? Ela não sabia dizer. Sua única certeza era que alguém estava lá. E sentia que ainda estava.
Sophia...? Agnes parecia confusa, observando o olhar fixo da neta para o nada.
Tem mais alguém na casa com você, vó? Ela perguntou rapidamente, quase como um reflexo.
Ah... Para falar a verdade... Tem sim. A senhora confirmou sorrindo. Clara, o nome dela... A senhora fez uma pausa, olhando para trás em seguida, encontrando ninguém. Você a viu passando?
Não... Foi apenas pressentimento. Respondeu, afastando a mão da arma, sem se acalmar ainda entretanto. Essa Clara... Quem é essa?
Uma jovenzinha que anda me ajudando por aqui. Agnes soou bem feliz. Você tem que conhecer-la, Sophia! Vou chamar-la agora!
Tudo...
Clara! A senhora praticamente berrou, nem deixando a neta terminar de falar. Venha aqui, garota! Tem uma pessoa aqui que quero que você conheça!
Poucos instantes depois, a jovem apareceu. Com passos vagarosos, ela andou em direção à senhora e sua convidada, desviando o olhar como se fugisse do julgamento da desconhecida.
Não seja tímida! Agnes apressou-a. Venha, venha!
Com os últimos dos passos receosos, Clara chegou até a porta, junto das duas.
Olá... A jovem disse sem muito entusiasmo, ainda evitando contato visual.
A Rainha a fitou, sem nada dizer, observando cada detalhe da garota. As roupas simples. A pele clara. O corpo magro. Os olhos azuis. O cabelo loiro ondulado. O jeito inseguro. Claramente estava incomodada com o olhar da desconhecida sobre si. Parecia uma adolescente normal, ao que tudo indicava. Pelo menos, superficialmente. Entretanto, havia algo diferente nela. Uma aura que Sophia conhecia bem, mas que não sabia muito bem o que era ainda.
Clara. A senhora sorriu, animada, decidindo apresentar-las direito. Está é minha filha, Sophia!
Muito prazer... A garota disse, quase falando para dentro, mal olhando para a desconhecida.
O prazer é meu. A Rainha sorriu, ainda intrigada com a jovem. Porém, seus olhos logo se voltaram para Agnes. Vó, tenho que falar sobre algo com você...
Pode falar, minha neta. Ela pediu.
Não vim aqui apenas para falar sobre meu pai... Explicou. Eu também estou para me mudar. Para um lugar maior. Para um lugar mais bonito inclusive... Então... Eu gostaria de te convidar para vir morar junto comigo... E com o resto de minha família. Seus olhos passaram de relance por Clara. Você pode levar a garota também, é claro.
Olha só... A senhora sorriu. É uma bela proposta. Bem inesperada também, devo dizer. Ela soltou um breve riso. Essa pressa de me falar isso tem a ver com problemas do seu trabalho?
Pode-se dizer que sim... A Rainha sorriu, feliz de não ter que explicar toda a situação naquele exato instante.
Eu entendo... Agnes, então, olhou para a jovem. Se eu for com minha neta, você vem junto?
A jovem hesitou. Seu olhar se dirigiu à Rainha por um breve instante e, então, voltou para a senhora, assentindo por fim. Podia não estar muito feliz com a ideia, principalmente por ela ser tão repentina, mas era o melhor a se fazer. Pensou, pelo menos, que seria a opção mais segura. Pouco a garota sabia...
Então está tudo certo. A avó sorriu para a neta. Nós iremos.
Ótimo. A Rainha soou contente. Mas temos que ir agora. Nos preocupamos com a mudança depois, tudo bem?
Mas é claro... Não podemos nos arriscar afinal...
Arriscar? Clara soou um pouco nervosa. Nos arriscar por quê? Seu olhar soltou para Sophia. Para o que você está nos arrastando?
Olha... A Rainha Vermelha bufou, soltando um breve riso em seguida. Eu te explico no caminho, garota. Agora temos que correr. Vamos!