segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Anúncio 41

Ok, acabaram meus vestibulares. As primeiras fases, pelo menos. Logo, não tenho mais provas esse ano e, consequentemente, volto a escrever com regularidade. O quinto capítulo da Rainha Vermelha será escrito em breve!
Ok, era só isso.
Até!

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Conto de Terror 13 - Completo

O Pior Pesadelo


Não sou uma pessoa que costuma sentir medo, muito menos entrar em pânico. O irreal nunca me afetou. Filmes de terror normalmente me faziam rir. Relatos sobre psicopatas normalmente prendiam meu interesse, entretendo-me de certa maneira, mas certamente nunca me aterrorizaram ou me tiraram o sono. Porém, após a noite passada, sinto-me desconfortável, para dizer o mínimo. Sinto um mal estar que não vai passar tão cedo, tenho certeza.
Acordei às cinco da manhã, suado, tentando me lembrar do que havia acontecido. Aos poucos, as memórias voltariam.
***
Era só pra ser um grupo de amigos bebendo juntos.
Eric, James, Phil e eu, Matt. Não creio que até aquele dia havíamos saídos todos juntos, apesar de todos sermos bons amigos. Sempre acontecia algum imprevisto e um de nós acabava não indo ou, então, pessoas não agradáveis para algum de nós estaria junto do grupo. Lembro que era impossível sair com Phil e Mary, sua ex, ao mesmo tempo após o término do relacionamento.
Enfim, lá estávamos nós quatro, finalmente, em frente à praia com toda a classe que moleques de dezoito anos desempregados podiam ter. E, sim, isso significava que tínhamos um isopor cheio de bebidas baratas.
A cerveja era a única coisa que salvava. Eu as escolhi afinal. Se eu fosse  ficar bêbado, queria ter um pouco de classe e, se possível, lembrar-me do que aconteceu naquela noite no dia seguinte.
A noite passou rápido. Quando percebemos, as cervejas haviam acabado, Phil já havia vomitado e James, que raramente bebia, estava mais bêbado que todos nós juntos. Pelo menos, conseguimos rir bastante.
No final, eu fui o responsável por levar James até a casa dele. Não por que a culpa era minha por ele ter ficado bêbado, mas eu era a pessoa que morava mais próximo dele. Então, coube a mim andar junto com um bêbado por mais de vinte minutos até o prédio dele (ele não queria pegar um ônibus e eu não estava com vontade de insistir).
Foi engraçado, devo admitir. Eu nunca havia sido a escolta de alguém bêbado, apesar de eu já ter sido escoltado uma vez ou outra.
Minha missão foi cumprida sem problemas, até onde eu me lembrava. Eu só tinha que falar com James no dia seguinte para saber como ele estava. Por ora, eu podia voltar tranquilo para casa.
Cansado, eu dormi poucos instantes depois de me deitar na minha cama.
Então, tudo ficou confuso.
***
Eu acordei no chão de uma sala que eu me lembrava vagamente. Lá, algumas outras pessoas estavam no mesmo estado deplorável no qual eu me encontrava.
Minha cabeça doía, minha boca estava seca, meu corpo estava encharcado de suor. O som de uma conversa em outro cômodo parecia um estádio de futebol em dia de clássico. Ao levantar, quase vomitei. Claramente de ressaca, eu saí da casa.
O sol parecia queimar os meus olhos enquanto tudo girava a minha volta. Meus murmúrios de dor cessaram quando uma mão veio até meu ombro.
Matt! Ele me chamou. Ainda bem que está vivo!
Quando minha visão se normalizou, eu vi Brian, um amigo que eu não via desde que ele havia se mudado.
Cara... Eu murmurei. O que aconteceu?
Uma das melhores noites de todos os tempos. Disse uma garota. Só.
Eu olhei para ela. Não fazia a mínima ideia de quem era. Porém, vi que, com ela, estavam outras pessoas, incluindo algumas inusitadas.
Agatha estava lá. Até onde eu me lembrava, ela estava fazendo intercâmbio. Como ela estava ali, agora?
John era a última pessoa que eu esperava ver lá. Até onde eu sabia, uma festa regada à vodka barata, pelo cheiro das minhas roupas, havia acontecido. Aquele moleque altamente religioso ali no meio não fazia sentido.
Então, outras pessoas, todas do mesmo grupo, vieram falar comigo. Do jeito que elas falavam, nós éramos grandes amigos, comentando sobre eventos da minha vida que eu contava para poucas pessoas. Perguntaram-me da minha mãe que estava doente, da minha irmã que havia terminado a faculdade, do meu novo gato de estimação. Tudo com um sorriso caloroso no rosto.
Após algum tempo, eu me virei para Brian e perguntei:
Você viu o James?
James? Ele franziu o cenho. Eu não acho que ele tenha vindo pra festa, mano...
Sério...? E o Phil?
Que Phil? O Phil Anderson?
É...
Nem sabia que vocês se falavam... Vocês trocaram uma ideia ontem à noite, foi isso?
  Não... Eu sacudi a cabeça para os lados, sem entender o que acontecia. E o Eric?
Que Eric?
Eric Johnson.
Quem é esse?
Eu parei por um instante, olhando confuso para o rosto de Brian. Ele me parecia sério. Não parecia uma das brincadeiras estúpidas que ele fazia de vez em quando.
Eu tinha certeza que eu estava bebendo com eles ontem à noite... Eu disse calmamente. Então, percebi algo que eu deveria ter perguntado desde o começo. Aliás... Como eu vim parar aqui?
Cara... Ele riu. Eu devia ter cortado seu álcool depois que a gente terminou aquela segunda garrafa... Mas não deu. Tava muito bom ver você bêbado...
Brian continuou rindo enquanto eu só ficava mais confuso.
Eu também não queria ser chato com você depois que as coisas não deram certo com a Amber. Ele disse, agora, um pouco mais sério.
Amber? Indaguei. A Amber? Amber Woods?
É. Ele colocou a mão no meu ombro. Você foi o que chegou mais perto de pegar ela, mano. Teria conseguido se a amiga dela não tivesse passado mal. Mó azar ela sair da festa daquele jeito...
Aquele foi o momento em que eu tinha certeza de que alguma estava errada. Amber Woods era colega, não muito bonita pra ser sincero, de classe que eu gostei durante uma época, porém, nunca havia chegado a tentar algo com ela. O tempo simplesmente passou e ela não mais me atraia, simples assim.
Agora, Brian era um cara que podia ter praticamente qualquer mulher que ele quisesse. Ver ele falando de alguém tão trivial quanto Amber, pros padrões dele, daquela maneira era um pouco além do que estranho.
O que aconteceu? Perguntei. A Amber ficou gostosa de repente ou...?
De repente? Ele riu. Ta zoando? Ela sempre foi gostosa, cara!
Claro...
Como assim? Você não se lembra de como ela estava ontem à noite...?
Eu ia responder que não fazia ideia, porém, imagens começar a surgir em minha mente.
***
O sorriso branco. Os lábios escarlates. Os olhos verdes. O cabelo castanho claro que descia como uma cachoeira sobre seus ombros. Amber estava simplesmente deslumbrante.
Eu estava sentado ao lado dela, junto ao balcão de um bar dentro do casarão, conversando, rindo, dividindo um drinque que eu nem me lembrava mais o que era. No meio da multidão, pude ouvir Brian gritando Vai, Matt!, o que me fez rir nervosamente e ficar um pouco irritado com ele.
Tudo estava dando certo até o momento em que a amiga de Amber apareceu do lado dela vomitando.
***
Ah... Eu limpei a garganta. Eu... Eu me lembro... Vagamente...
Cara, prometo que não vou te deixar beber tanto da próxima vez... Brian disse se sentindo um pouco culpado.
Não se preocupe... Eu, de repente, levei minhas mãos até meus bolsos. Preocupado, temi que eu estivesse sem meu celular e minha carteira. Felizmente, eles ainda estavam comigo. Ufa...
Ta com tudo ainda?
Sim...
Vamos embora, então?
Ah... Daqui a pouco... Só tenho que dar um pulo no banheiro...
E você se lembra onde é?
Claro... Menti. Já volto...
Eu voltei pra dentro da casa, ainda com minha cabeça latejando.
Isso não pode ser real... Murmurei para mim mesmo enquanto rodava pelo casarão. Eu ainda estou sonhando... É só mais um daqueles sonhos extremamente realistas...
Não seria o primeiro do gênero. Eu já havia passado por situações assim.
Eu não sabia como eu havia chego a tal situação. Não sabia como eu estava falando com pessoas que eu não me dava bem. Não sabia como eu havia saído de minha cama e chego até um shopping em questão de segundos.
Entretanto, tudo parecia tão real.
O ar no meu rosto. Os meus pés pisando contra a calçada. O meu estômago gemendo de fome. A minha bexiga que parecia prestes a estourar. O meu coração palpitando ao ver uma garota que eu gostava.  Já havia sentido tudo isso várias vezes em sonhos.
Porém, esse era diferente. Coisas estranhas estavam acontecendo e ninguém parecia notar, pelo menos, dentro do meu círculo social, o que era comum para um sonho. A ressaca que eu sentia era assustadoramente real, devo admitir. Porém, ainda poderia ser minha imaginação agindo enquanto eu dormia, certo?
Algo, entretanto, dizia-me que não.
Minhas memórias estavam turvas. Eric, James e Phil. Eles não pareciam reais. Eles pareciam um sonho distante compostos por memórias fragmentadas.
Quanto mais eu tentava me lembrar, menos eu me lembrava do dia em que bebemos na praia. Até mesmo a minha caminhada com o James bêbado parecia não ter acontecido.
Por outro lado, a cada instante, mais memórias pareciam surgir em minha mente sobre a festa da noite passada. Não só me lembrei de Amber. Podia me lembrar claramente de outras garotas, de amigos meus que encontrei, de dois caras que brigavam por alguma mulher, de algum moleque que havia sido traído e fazendo um escândalo sobre o ocorrido.
Depois de algum tempo, eu estava parado em algum corredor, apoiado com as costas na parede, cada vez mais certo de que eu não estava num sonho.
Meu lado emocional dizia que aquilo não era verdade, que era tudo um sonho e que eu logo acordaria. Meu lago lógico, entretanto, não conseguia achar provas daquilo.
Comecei a ficar irritado. Afinal, eu estava mais feliz no suposto sonho junto com Phil, Eric e James. Aqueles três eram alguns dos meus melhores amigos, falando besteira, saindo sem rumo pela cidade, rindo que nem idiotas. Das pessoas da festa, eu não tinha nenhum grande amigo.
Aliás, naquele meio, eu não tinha nenhum amigo próximo. Minha fase de ir para baladas não durou mais do que algumas semanas. Simplesmente não era meu estilo. Como eu havia acabado ali, eu não sabia.
Então, percebi algo.
Nessa realidade, pelo menos de acordo com Brian, eu não falava com Phil. Eric era um total desconhecido aparentemente. E quanto a James? Ele existia, mas não sabia dizer como eram as coisas entre nós.
A realidade onde eu estava começava a mostrar falha após falha. Meu lado lógico, enfim, parecia concordar que havia algo errado.
Como sempre, aquele seria o momento em que eu acordaria e, em questão de instantes, todo aquele sonho seria como alguns fragmentos de memória perdidos em minha mente.
Porém, não foi isso o que aconteceu.
Eu comecei a suar frio. Minhas mãos tremiam. Minha respiração ficava mais rápida e pesada a cada segundo.
Por que eu ainda estava ali? Por que eu ainda estava parado naquele corredor? Por que eu não havia acordado.
Não fazia sentido... A não ser que aquele fosse o mundo real, a não ser que eu já estivesse acordado.
Não... Murmurei. Não, não, não...
Levei minhas mãos até o meu cabelo. Eu tentava respirar fundo. Mas não conseguia. Eu sentia algo em minha garganta, apertando-a, sufocando-me.
Isso não pode estar acontecendo... Falei, quase sem voz. Esse não pode estar certo... Isso é só um sonho ruim... Um pesadelo...
Um pesadelo do qual você nunca vai acordar...
A voz desconhecida era grave, gélida e parecia sussurrar diretamente na minha orelha. Senti um calafrio percorrendo a minha espinha e, em seguida, veio o desespero.
***
Minha visão ficou embaçada e, então, tudo ao meu redor parecia imaterial, um caos tingido de vermelho e preto. Eu me senti preso ao chão, acorrentado e amordaçado, incapaz de fazer qualquer coisa a não ser me debater.
Eu ouvia ruídos a minha volta, gritos inclusive. Eu mal podia distinguir formas, então não tinha como eu saber o que exatamente estava acontecendo.
As correntes pareciam estar esmagando minhas costelas e pulmões. Respirar era praticamente impossível. Porém, algo pareceu explodir dentro de mim.
Eu nunca fui uma pessoa que falava alto, muito menos cantava ou gritava. Mas, droga, naquele momento, eu senti o grito mais violento que eu já tinha presenciado saindo da minha garganta, queimando minhas cordas vocais e fazendo meu próprio corpo tremer.
***
Quando percebi, eu estava de volta ao corredor. Quadros estavam destruídos, jogados em pedaços pelo chão.  Vasos haviam sido quebrados, sujando o piso com terra e flores despedaçadas. O próprio papel de parede parecia ter sido rasgado por garras, quase como se um animal selvagem tivesse passado por ali.
Algo dentro de mim tinha certeza que aquilo havia sido minha culpa, resultado de um surto.
Aquilo foi uma alucinação? Enterrei meu rosto em minhas mãos por um segundo e, então, voltei olhar para o corredor. E eu ainda fiz tudo isso num ataque de pânico...?
Eu não consegui fazer nada a não ser rir. Não foi uma risada alegre é claro. Foi algo saído da boca de um maníaco ou de alguém simplesmente desesperado. Eu não sabia dizer em qual dos dois casos eu me enquadrava.
Matt? Uma nova voz me chamou.
Um homem que eu nunca tinha visto olhava para mim, preocupado. Ele parecia arrumado demais para estar no meio daquela zona, mas, fora isso, nada de anormal com o sujeito.
O que aconteceu aqui? Ele perguntou.
Difícil dizer... Respondi. Minha própria voz soava estranha aos meus ouvidos, arrastada e grave demais. Mas, diga-me, você... Quem seria?
Rick... Não se lembra de nada ontem à noite?
Não muito bem... Eu sentia minha sanidade se esvaindo do meu corpo. Não havia nada para ser feito. Muita coisa parece... Só um sonho, sabe?
Sei... Ele suspirou. Bem... Não sei exatamente o que você bebeu ontem à noite... Se é que você só bebeu... Mas não se preocupe... Quando você acordar, você estará melhor.
Eu fiquei ali parado, sem saber o que dizer.
Rick sorriu ao ver a minha expressão, provavelmente a de um idiota espantado e boquiaberto, e seguiu o seu caminho, sumindo de minha vista.
Espere! Eu gritei enquanto corria na direção dele.
Eu segui o corredor até Rick, mas ele não mais estava lá.
Eu queria muito saber mais sobre o sujeito. Como ele poderia dizer algo como aquilo? Certamente não era uma brincadeira, não é? E então ele simplesmente sumiu, sem deixar um rastro.
No final, não importava. As palavras dele me acalmaram. Rick foi quase como um anjo, tranquilizando-me e, principalmente, devolvendo-me minha sanidade.
O resto do sonho foi como deveria ter sido. Agora são apenas memórias fragmentadas, embaçadas na minha mente.
***
Eu tive que dormir pouco depois que acordei. Afinal, eram cinco da manhã e, depois daquele inferno, eu estava exausto mentalmente.
Dormi pesadamente em seguida, acordando somente quando o meio dia estava se aproximando. Não houveram pesadelos dessa vez.
Descansado, eu pensei naquela experiência surreal, ponderando se eu teria mais um sonho como aquele, se eu sofreria enquanto vulnerável mais uma vez. Por sorte, aquilo nunca mais aconteceu.
Entretanto, nunca se sabe. Pouco menos de uma semana se passou desde o ocorrido. Poderia acontecer de novo.
Eu não poderia ficar vivendo com medo. Eu não poderia simplesmente não mais dormir. Eu não poderia simplesmente ficar questionando a realidade. Eu não poderia ficar questionando a minha sanidade.
Porém... Ainda não sei se estou na realidade correta, sabe? Eu estava simplesmente confiando na palavra do tal de Rick... E quem era ele...?
***
Sinceramente, vou parar com essa paranoia, ou tentar pelo menos. É mais fácil continuar vivendo, ou sonhando...
Se eu continuasse vivendo como estou, sinto que estaria jogando minha vida fora, não? Se essa for a verdadeira, não quero desperdiçá-la. Se não for, ainda é melhor do que viver com medo.
Enfim, espero nunca mais ter que falar sobre isso.

Adeus.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

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Sobre Mephisto...
Pouco tempo após a conclusão do The Conflagration - Soulless resolvi escrever aquilo que publiquei no último post do blog. Era pra ser a continuação da história, um segundo livro. Mas foi nessa época que resolvi me aventurar por outros caminhos da escrita. Aí começaram contos e mais contos, histórias curtas e precisas, romances longos que eu nem sabia como terminar, rascunhos e protótipos de texto até. Tudo que vocês já acompanham aqui, resumidamente falando. Aí Mephisto ficou de lado. Bem como Tristan.
Mas talvez tenha sido melhor assim. Essas experiências que eu passei, que eu escrevi, foram ótimas. Elas moldaram o escritor que vos escreve. E estou contente com o resultado.
No final, acho que foi melhor Mephisto ficar de lado. Mas, é claro, eu me vi quase que obrigado a postar o único capítulo. Sempre compartilhei tudo que escrevo aqui. Várias  obras inacabadas inclusive. Então, esta não poderia faltar.
Era só isso. Achei que deveria explicar sobre o texto que surgiu tão inesperadamente, bem do nada mesmo, no meu querido blog. Missão cumprida.
Até a próxima!

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Mephisto

Preparado para a sua grande estréia? Perguntou um Demônio, que manejava uma lança, para um guerreiro. O homem trajava uma armadura negra ornada com prata. Uma longa capa vermelha, em suas costas, estendia-se até chão. Nela, o símbolo das Trevas, o dragão negro, era nítido. O elmo, extremamente lustroso, de formato arredondado, protegia completamente sua cabeça, a não ser pelos olhos e boca, que tinham aberturas largas mais do que suficientes para tornar seus olhos, bem como sua boca, bem visíveis. Logo, a pele alva de seu rosto podia ser vista, bem como os lábios finos, dentes perolados e olhos extremamente azuis.
Tenho certeza que ele não terá problemas. Outro Demônio respondeu no lugar do guerreiro. Este vinha carregando um arco na mão esquerda. Atrás dele pelo menos duas dezenas de outros Demônios, manejando as mais diversas armas, pareciam esperar por algo acontecer. Afinal, ele é o filho de Nidhogg. O Demônio sorriu. Usando apenas uma máscara metálica que cobria a parte superior de seu rosto, sua boca e, conseqüentemente, suas longas presas extremamente brancas eram bem visíveis. E, ainda por cima, foi treinado por Tristan, o Escolhido do Lorde das Trevas.
Ora, fico lisonjeado com sua confiança. Disse Mephisto, o Príncipe das Trevas, com sua voz suave. Mas...não se esqueçam que eu ainda estou em fase de treinamento. Ainda sou um aprendiz de Tristan. Não se esqueçam que eu tenho apenas um mês de vida.
O primeiro Demônio riu.
Que seja. Ele deu de ombros. Você ainda é mais poderoso do que todos nós, os Demônios que se reuniram aqui, juntos.
É... O segundo Demônio concordou sem muita animação. Tenho certeza que você, Mephisto, poderia fazer essa missão sozinho. Ele bufou. Mas...um dos motivos dessa missão é ver se você sabe comandar uma tropa. Por isso que estamos aqui. O Demônio que carregava o arco se voltou para o que manejava a lança. Certo?
Com certa hesitação, o primeiro Demônio concordou, assentindo com a cabeça.
Claro, claro... Mephisto respirou fundo e, então, quase como se estivesse perdido, olhou, minuciosamente, ao seu redor.
“Eu mal conseguido acreditar...”.
A noite já havia começado horas atrás. Dezenas de nuvens escuras cobriam faziam com que as luzes das estrelas não pudessem ser vista. Entretanto, isso não se aplicava a lua, que, soberana, brilhava no céu negro. O chão, em que Mephisto e sua tropa pisavam, parecia ser coberto por um longo tapete verde acinzentado. A pouco menos de um quilômetro de distância, no topo de uma colina, cercada por um fosso, protegida por gigantescas muralhas brancas, estava uma cidade.
“A minha primeira missão...finalmente chegou”.
Mephisto sorriu.
Ah...o que tem de especial mesmo naquela cidade? Um terceiro Demônio, que carregava uma adaga em cada mão, aproximou-se, calmamente, de Mephisto e dos outros dois aliados. Para ter tanta proteção assim...o que há de tão importante lá? Eu e os outros Demônios não fazemos  ideia do porquê...
Nós descobrimos o motivo recentemente também, então, não se preocupe. O segundo Demônio respondeu animado. Ele cruzou os braços e sorriu. Acontece que existem, nessa cidade, pelo menos, algumas dezenas de seguidores da Luz especializados em criar artefatos mágicos. Logo, é bem provável que existam, pelo menos, algumas centenas de objetos valiosos que possamos destruir.
Se eles não nos destruírem antes. Disse, um pouco irritado, o primeiro Demônio. Com tantas armas da Luz...bem, nós poderemos ter problemas.
Realmente. Mephisto sorriu. Parece bem desafiador.
O primeiro Demônio parecia rosnar. O segundo, entretanto, sorriu. O terceiro ficou sem saber como reagir.
Bem...vamos? O Príncipe das Trevas perguntou animado. Eu não vou agüentar esperar tanto.
O segundo Demônio olhou em direção a cidade e coçou a nuca.
Ah...bem... Ele parecia forçar os olhos para enxergar a cidade. Vejo pouquíssimo movimento lá. Creio que todos, com exceção dos guardas que estão fazendo suas rondas, já tenham ido dormir.
Então...vamos? O terceiro Demônio perguntou com certa animação.
Mephisto sorriu. O primeiro e o segundo Demônios concordaram assentindo de leve. Rapidamente, o Príncipe das Trevas ergueu a mão direita para o alto, chamando a atenção do resto de sua tropa.
Vamos! Mephisto sorriu. Temos uma cidade para atacar e nenhum segundo a perder!
De repente, duas grandes asas, feitas a partir de trevas, surgiram nas costas do Príncipe das Trevas. Elas eram cobertas por penas cor de ébano, como as de cisnes negros. Em um instante, Mephisto se ergueu dezenas de metros no ar. Sem dizer mais nada, ele avançou em direção a cidade.
“Bem...qual será o meu primeiro ataque?”.
Ao chegar ao céu nublado que cobria a cidade, Mephisto sorriu. Ao todo, algumas dezenas de guardas, todos usando simples armaduras de aço, patrulhavam as muralhas e as ruas. As casas da cidade estavam envoltas pela escuridão da noite. Apenas alguns pontos de luz, provindos de tochas, tanto nas paredes, tanto nas mãos de guardas, podiam ser vistos em toda a extensão do local.
“Isso vai ser divertido...”.
O Príncipe das Trevas coçou a nuca.
“Ah...mas eu ainda não sei que ataque...”.
Antes que Mephisto pudesse concluir seu pensamento, uma flecha foi lançada em sua direção. Rapidamente, ele esquivou do projétil, jogando-se, em pleno ar, para a direita. Nesse momento, o Príncipe das Trevas olhou novamente para os pontos iluminados. Pelo menos duas dezenas de guardas haviam o avistado e, prontamente, já tinham seus arcos em punhos. Rapidamente, mais flechas foram atiradas. Agora, atento, Mephisto teve ainda mais facilidade em desviar dos projéteis.
Precisa de ajuda? Uma voz familiar, atrás do Príncipe das Trevas, perguntou.
Mephisto, rapidamente, voltou-se para trás. Sua tropa de Demônios havia chego. O segundo deles que havia feito a pergunta. O príncipe sorriu.
Se vocês não se incomodarem... Ele deu de ombros, ainda sorrindo. Vocês podem atacar os guardas que estão nas ruas. Eu cuido dos que estão nas muralhas.
Não houve protestos. A tropa de Demônios avançou por cima das muralhas, em direção às ruas da cidade, servindo, de maneira não proposital, como distração, fazendo com que os guardas parassem de prestar atenção em Mephisto.
“Perfeito...”.
Em um instante, pequenas descargas elétricas, de coloração azul, praticamente branco, começaram a percorrer, freneticamente, pelos braços do Príncipe das Trevas. Com um sorriso, ele apontou, com o dedo indicador direito, na direção de seus alvos. No mesmo instante, um relâmpago, com um fraco brilho azul, foi disparado de sua mão, percorrendo uma linha reta no ar até o peito de um dos guardas. Toda a descarga elétrica percorreu o corpo do guerreiro envolto pela armadura de aço. Em uma fração de segundos, o guarda caiu, sem vida, do topo da muralha. Apavorados, os outros guardas, que estavam próximos daquele que havia acabado de ser morto, voltaram-se na direção de Mephisto. O Príncipe das Trevas, soberano no céu da noite, sorriu satisfeito.
“Bem...foi fácil...”.
Os guardas nas muralhas começaram a preparar mais flechas em seus arcos. Agora, a atenção deles estava voltada exclusivamente para Mephisto.
“Agora...vamos fazer a mesma coisa...mais vezes...e mais rapidamente...”.
No total, doze inimigos estavam nas proximidades do Príncipe das Trevas. Com movimentos rápidos com as mãos, quase elegantes, Mephisto apontava na direção dos adversários. Raios atravessavam o ar. Guardas eram atingidos. Corpos caiam sem vida. Quando, enfim, flechas foram lançadas contra o Príncipe das Trevas, seis dos guardas já haviam sido mortos.
“É...está sendo tão fácil quanto Tristan disse que seria...”.
Apesar de seis flechas estarem vindo em sua direção, Mephisto parecia tranqüilo. A serenidade estava estampada em seu rosto. Rapidamente, ele estendeu as mãos. Desta vez, porém, Mephisto apontava na direção dos projéteis atirados pelos inimigos. Em um instante, mais raios foram lançados pelo Príncipe das Trevas, acertando as flechas em pleno ar, pulverizando-as sem dificuldades.
“Nada de muito diferente do treinamento até agora...”.
De repente, Mephisto percebeu chamas brilhando intensamente das ruas da cidade. Apesar da distância, ele também ouvia inúmeros ruídos. Urros triunfantes, gritos de dor, o som de metal contra metal.
“A situação parece bem mais emocionante lá em baixo...”.
Rapidamente, Mephisto se transformou em trevas e se dirigiu até a muralha. Aterrissando atrás de um dos guardas, ele, animado, olhou para as ruas da cidade. A cena era caótica. Demônios e seguidores da Luz travavam uma batalha feroz. Apesar de serem mais poderosos, os seres das Trevas estavam em menor número. Incontáveis guardas eram massacrados, com extrema facilidade, pelas armas dos Demônios. Entretanto, alguns de seus adversários, que trajavam túnicas brancas, possuíam alguns amuletos. Assim sendo, magias de Luz eram lançadas pela cidade. Os flashes aturdiam alguns Demônios. Quase uma dezena das criaturas das Trevas havia sido aniquilada.
“Nossa...”.
Mephisto estava tonto com a cena. Porém, ao mesmo tempo, ele sorria admirado.
“Isso é bem mais excitante do que eu imaginava!”.
O Príncipe das Trevas estava inquieto. Ele balançava as mãos incessantemente. Sua respiração estava acelerada. O sorriso em seu rosto parecia se expandir mais e mais.
Droga! Uma voz exclamou atrás de Mephisto.
Rapidamente, o Príncipe das Trevas se voltou para trás. Os seis guardas ainda estavam ali.
“Ah...eu quase me esqueci deles...”.
O guarda a frente de Mephisto já havia guardado seu arco nas costas e, agora, sacava sua espada da bainha. Entretanto, antes que o guerreiro pudesse atacar, uma arma surgiu na mão direita do Príncipe das Trevas. Em uma fração de segundos, a arma já havia sido cravada no peito do guarda.
Essa armadura de vocês não serve pra nada, pelo visto... Mephisto murmurou enquanto puxava sua arma de volta. Com um puxão brusco, ele recuperou o objeto. Tratava-se de um machado. De coloração cinza, quase negra, a arma tinha cerca de noventa centímetros de comprimento. O fio da lâmina da arma, vermelho como sangue, brilhava intensamente. Em ambas as faces do machado, o símbolo das Trevas havia sido feito com prata. E, agora, só restam cinco de vocês. Ele sorriu. Quanto mais rápido eu acabar com vocês, mais cedo eu vou poder ir lá para baixo. O príncipe apontou para trás, na direção das ruas da cidade. Então...é...
Antes de completar a frase, Mephisto se transformou em trevas e surgiu atrás do guarda que se encontrava mais distante dele. Antes que o guerreiro pudesse agir, o príncipe cravou seu machado nas costas de seu adversário. Os outros guardas, agora, estavam, apesar de certa distância entre cada um deles, enfileirados. Mephisto não conseguiu conter um sorriso. Em um instante, uma cópia idêntica do machado que estava em sua mão direita surgiu em sua mão esquerda. Sua imagem, de repente, tornou-se turva, como se sua forma humana e de trevas se revezassem freneticamente. Os guardas pareciam ainda mais assustados. Ziguezagueando, Mephisto avançou, velozmente, por entre os adversários. Por onde passava, o Príncipe das Trevas deixava um rastro de fumaça negra que, rapidamente, aderia ao chão, assumindo a aparência de graxa.
Pronto... Mephisto murmurou satisfeito.
Ao terminar de falar, O Príncipe das Trevas contemplou, de relance, sua arma na mão direita. Sangue escorria lentamente de sua lâmina. Os corpos dos quatro guardas caíram no chão. O primeiro tinha um corte na cintura, do lado esquerdo, que chegava até quase a coluna. O segundo tivera a cabeça decepada. O terceiro tinha um machado cravado em sua face. O último fora degolado.
“Bem...foi fácil...”.
Mephisto estendeu a mão esquerda na direção do terceiro guarda. Em um instante, o machado se transformou em trevas e se reconstituiu na mão direita do príncipe. Calmamente, ele andou até a beira da muralha, em direção ao centro da cidade. Mephisto sorriu largamente ao contemplar novamente o campo de batalha abaixo. O fogo nas construções brilhava ainda mais intensamente sob o céu noturno. O Príncipe das Trevas respirou fundo.
Aproveitando o momento? Uma voz familiar perguntou.
“Ora só...”.
Não conseguiu tanto tempo longe de mim, hein? Mephisto, sem se virar na direção do recém chegado, perguntou.
Talvez. O homem riu baixo.
O Príncipe das Trevas ergueu os machados em direção a lua, quase como um alongamento, e sorriu.
Bem...eu já volto. Disse e, então, olhou para trás rapidamente. O homem com quem ele falara trajava uma armadura completamente negra. Sua pele branca contrastava com os longos e lisos cabelos cor de ébano. Apesar do rosto jovem, sua expressão séria revelava os horrores que ele já havia presenciado. Entretanto, a característica mais marcante era, certamente, o seu olhar imponente, composto por dois olhos inteiramente vermelhos e penetrantes. Tente não se preocupar demais, Tristan.
O guerreiro das Trevas sorriu.
Tentarei. Ele respondeu. Mas, sinceramente, eu estou mais preocupado com esses pobres seguidores da Luz.  Eles não têm chance de sobreviverem e nem sabem disso.
Mephisto riu.
É...verdade. Ele concordou sorrindo e, rapidamente, voltou a olhar para o campo de batalha.
“Ah...”.
Restam quatro Demônios, pelo que eu estou vendo. Disse Tristan. Melhor você se apressar. Não creio que deixar todos eles morrerem seria muito bom para sua reputação. Ele gargalhou. Por outro lado, você é o filho de Nidhogg. Não creio que algo possa acabar com sua reputação. O guerreiro coçou a nuca. Ah...enfim...vá logo. Eu consigo ver nos seus olhos que você não agüenta mais esperar.

Mephisto assentiu com a cabeça. Rapidamente, suas asas surgiram. Ele ascendeu no céu da noite e, rapidamente, voou em direção ao meio do caos do campo de batalha.

sábado, 12 de novembro de 2016

A Rainha Vermelha, Capítulo 4

Capítulo 4



Não havia uma estratégia muito bem definida. Pelo menos, não havia necessidade de ter uma.
A Inquisição havia acabado de tomar o prédio abandonado. Uma fábrica há tempos; agora, nada mais que um conjunto de salas e corredores empoeirados. Os soldados iam de um lado para o outro, carregando caixas com mantimentos e armamentos, fortificando barreiras, montando seu sistema de segurança, organizando-se como podiam. A base ficaria inteiramente funcional dentro de algumas horas. Tempo que não tinham e nem sabiam.
O ronco dos motores veio então. Dezenas de carros vinham do horizonte. Eles surgiam de todas as direções, estremecendo a terra seca sob seus pneus, assustando os calangos para fora da estrada, levantando uma densa cortina de poeira por onde passavam. Em poucos instantes a base estava cercada.
Homens e mulheres saíram dos carros. Todos com armas pesadas. Nenhum com a intenção de economizar munição.
O tiroteio começou. Rajadas de metralhadoras gritavam, quase em uníssono, aniquilando os soldados fora da base. Granadas voavam para além dos muros da velha fábrica, explodindo junto aos desafortunados que estavam no pátio térreo. Atiradores de elite matavam os que se julgavam seguros, agindo protegidos pelas barreiras de metal que eram seus carros.
A Inquisição podia ter sido surpreendida, mas não ficaria assustada. Não sob as ordens de seu comandante.
As medidas de contra-ataque foram logo ordenadas. Grande parte do contingente dos soldados se mobilizou para as janelas da base, abrindo fogo contra os inimigos abaixo. Gideon ordenou a execução imediata de qualquer invasor no território, permitindo o uso de quantas granadas julgassem necessárias. As unidades remanescentes da Inquisição tentavam se organizar dentro da base, posicionando-se em locais que pudessem realizar emboscadas facilmente. A mente por trás da defesa da base deveria ser defendida a todo custo.
A Rainha soprou uma baforada de fumaça para fora da janela. Ela ainda estava dentro do carro blindado em que viera. Junto dela, Alexander e o motorista, um sujeito conhecido como Lince, aguardavam pacientes pelas ordens.
Hm... A Rainha Vermelha ouvia a sinfonia de tiros e explosões que recheava o ar, apenas aguardando o momento certo. Então, socou de leve o próprio abdômen, certificando-se novamente que seu colete de kevlar estava sob o terno.   Só mais alguns instantes...
Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis segundos. Esse foi o tempo que se passou até que uma explosão, significativamente maior que as anteriores, estremecesse o chão. Outras duas vieram então, uma após a outra.
Esse foi o sinal. A rainha anunciou e, então, levou uma mão até o bolso. De lá, retirou um velho soco inglês feito de bronze. Nele, lia-se a inscrição Ambrose. Ela abriu um sorriso confiante ao contemplar o amuleto da sorte que carregava a mais de duas décadas.  É... Ela guardou o antigo presente do pai. Agora é a hora.
O Lince assentiu, saindo rapidamente do veículo com um fuzil em mãos. Alexander foi o próximo a sair, carregando um rifle de precisão nas costas, seguido pela Rainha e sua submetralhadora.
Os três podiam ver claramente dali: um rombo havia sido aberto em uma das paredes. Aquela era uma das três novas entradas para a base inimiga. Tudo graças aos seus especialistas em demolição e aos seus explosivos plásticos.
Eles nunca decepcionam. A Rainha abriu um sorriso discreto e, então, olhou para o alto. Seu olhar se perdeu. Parecia contemplar as nuvens escuras no céu quase como algo surreal. Não chove faz um tempo... É quase como...
O som de um tiro calou sua boca. O projétil, entretanto, não a acertou. O alvo foi o peito de Alexander. Com exceção de um novo buraco feito em sua camisa velha, nada aconteceu com o gigante.
A Rainha recobrou sua atenção. Ela parecia se distrair com coisas que, para outros, são mundanas quando estava nervosa. Tentaria não repetir o erro.
O atirador deveria estar confuso, tentando entender como o alvo, desprotegido, não havia caído morto. A Rainha deveria usar bem esse tempo. Então, deixou sua submetralhadora de lado. Pegou rapidamente o rifle que Alexander carregava. Aproximou um olho da luneta da arma. Olhou para onde o tiro havia partido. Encontrou seu alvo. Respirou fundo. Prendeu a respiração. Mirou na cabeça do desgraçado. Apertou o gatilho.
Quando sua vítima caiu morta, a Rainha exalou o ar que prendia. Sentiu, então, o sangue correndo mais rápido por suas veias. Fazia algum tempo que ela não atirava com um rifle daqueles. Ficou feliz de ver que não tinha perdido o jeito.
A Rainha colocou a arma de volta nas costas do gigantesco companheiro. Agora, precisaria de algo que atirasse mais rápido. Com a submetralhadora em mãos, ela avançou lado a lado com o Lince, ambos disparando rajadas de balas fervorosas, ambos protegidos pelo tanque desenfreado que era Alexander
Não demorou muito para que o trio chegasse até a entrada que haviam avistado. Sem hesitarem, adentraram a base inimiga descarregando as balas remanescentes de seus cartuchos. A chegada deles era esperada após a explosão. Foi isso o que pensaram. E pensaram certo. A emboscada de quatro soldados foi rapidamente neutralizada pelos disparos.
Enquanto recarregavam suas armas, os dois atiradores deram uma última olhada para trás, certificando-se que ninguém os seguia, que ninguém os vigiava. Seus olhos então se arregalaram ao ver um objeto esverdeado, tão grande quanto o punho de um adulto, cruzando o céu rapidamente até onde estavam.
O tempo parecia desacelerar à medida que a granada se aproximava. O que parecia minutos se passou e o artefato ainda pairava no ar. O grupo já devia ter corrido para longe. Talvez ainda fosse possível se salvar se agissem logo.
Alexander! A Rainha bradou.
Então, o gigante agiu pelo grupo. Ele ergueu o braço maciço para o alto, agarrando a granada no ar.
Perplexo, o soldado da Inquisição observou a cena. Não conseguiu nem esboçar reação quando o artefato voltou em sua direção, com a velocidade de uma bala de canhão, chocando-se contra seu peito e o derrubando suas costas contra o chão.
Ninguém precisava assistir a cena para saber o final dela. Atordoado no chão, o infeliz soldado conheceu seu fim quando a granada explodiu sobre seu corpo débil.
Com a certeza de que não estavam sendo mais perseguidos, os três prosseguiram pela velha fábrica.
Tendo a dianteira protegida pelo gigante, a dupla armada parecia avançar quase despreocupada. Quando Alexander avançava, atacava os soldados da Inquisição sem hesitar, arremessando-os contra paredes, quebrando seus ossos como se fossem de vidro, jogando-os como projéteis contra os demais inimigos, provocando o pânico de quem via a cena. Muitos largavam as armas no chão e corriam por suas vidas. Poucos mantinham a calma para tentarem atirar contra os outros dois membros do trio que, com frieza, fuzilavam os adversários remanescentes.
Uma. Duas Três. Quatro. Cinco. Esse foi o número de emboscadas consecutivas fracassadas contra o pequeno grupo. Eles pareciam invencíveis. Sentiam-se invencíveis. Mas não eram.
Três logo se tornaram dois. Um deslize mínimo foi o suficiente para que o Lince voltasse a se enxergar como um mortal. Após um tiro abrir um buraco profundo em sua coxa, ele sabia que não conseguiria mais acompanhar a Rainha e Alexander. Sem querer parecer fraco, o homem manteve sua arma em mãos e pediu para que os dois fossem em frente, sem saber se sobreviveria ao sangramento. Disse que ficaria ali até alguma ajuda chegar. Prometeu matar qualquer inimigo que por ali passasse. Sua chefe não discordou da decisão. Ela logo partiu com Alexander.
Mais uma. Então duas. Enfim outras três emboscadas sobrevividas. Todas usando a mesma tática. Agora, ainda mais efetiva. A dupla conseguia compensar um atirador a menos com seu entrosamento. Era algo que não conseguiam explicar direito. Leitura corporal. Pressentimento. Sorte. Tudo parecia influenciar a performance dos dois, tudo os deixava mais fortes. Nenhum dos dois morreria enquanto estivessem juntos.
Então, chegaram ao último andar.
A Rainha foi saudada por um sopro de ar gélido, algo que pareceu tirar o calor de todo seu corpo. Olhou para o alto, através de um grande buraco no teto, em direção ao céu nublado acima. Não sabia dizer o motivo do calafrio, uma ventania fria antes da chuva ou um verdadeiro mau pressentimento. Talvez os dois? Não importava. Decidiu ignorar e seguir em frente.
Mais uma emboscada sobrevivida sem problemas e sem surpresas. Aquilo deveria ter a acalmado, ter provado a si mesma mais uma vez que não seria derrubada por nada nesse mundo. Mas não. Seu coração batia mais rápido do que antes, mais rápido a cada instante. Seu corpo só relaxaria quando a maior ameaça estivesse morta diante de seus pés.
Uma porta fechada. Lá, bem no final do corredor que estavam. Era velha, podre, quase caindo das dobradiças. A Rainha poderia a derrubar se precisasse, sem pedir pela ajuda a Alexander. Mas acabou não precisando. Ela estava destrancada. Precisou apenas de um giro na maçaneta e um leve empurrão. Pronto. Assim foi aberta.
Após emitir seu longo e estridente rangido, a porta revelou uma nova e decrépita sala. Mas a dupla não entrou de imediato.
Passos. Poucos, quase inaudíveis. Mas eram passos. A Rainha tinha certeza. Alexander tinha certeza. Por isso a dupla hesitou, por isso se voltaram para trás e aguardaram por algo, ou alguém. Mas além do relativo silêncio aconteceu.
Após alguns segundos, ficou claro que nada aconteceria, não enquanto estivessem ali parados. Por isso resolveram seguir em frente. Suas guardas, é claro, não baixaram.
Aquele deveria ser o ponto mais danificado de toda a velha fábrica. Não havia praticamente mais teto, a chuva logo banharia o salão como já tinha feito inúmeras vezes antes. As paredes pareciam ter sido corroídas pelo tempo, débeis, prontas para ceder se forçadas mesmo que pouco. O chão rangia a cada passo que recebia, soava ainda pior que a porta de entrada. O que era exatamente o lugar? Não sabiam. E nem pensavam sobre.
Então, algo de metal quicou levemente no chão, rolando ruidosamente até os pés da dupla. Do tamanho de uma lata de comida, o artefato permaneceu inerte por uma mísera fração de segundos. Então, houve um clique metálico.
É claro que Alexander protegeria a Rainha. Conteria sua força quando a empurrasse, mandando-a mais de um metro para trás mesmo assim. O gigante se jogaria sem hesitar sobre o explosivo, formando uma concha sobre a lata de metal.  Ele absorveria todo o impacto, impediria que os estilhaços chegassem até a amiga como já havia feito antes. Ambos sairiam ilesos mais uma vez.
Porém, não foi o que aconteceu.
Não houve uma explosão, apenas uma pequena ruptura. Uma parte da lata de metal se abriu, exalando um gás adocicado. Subindo rapidamente, o veneno dispersou-se apenas o suficiente. Em poucos instantes, o gigante estava envolto por uma densa nuvem púrpura.
Pela boca. Pelo nariz. Pelos poros da pele. O gás penetrou o corpo de Alexander, mais e mais a cada segundo. Desorientado, o gigante começou a cambalear, movendo seus braços e pernas com uma fúria inútil. Seus pulmões se retorciam, ingerindo o veneno, expulsando o ar de seus interiores, murchando e enegrecendo.  
Não... A Rainha murmurou sem conseguir acreditar no que via. Alexander...
O guardião caiu de joelhos. Suas outrora fortes mãos estavam agora trêmulas. Seus olhos, secos, ardiam com uma cor rubra. Seu coração batia mais lentamente a cada instante que se passava. No lugar de um urro estrondoso como de um urso, um suspiro silencioso saiu de seus lábios. Então, o gigante entrou em colapso. Seu peito atingiu o chão. Seus braços, inertes, não puderem impedir a queda.
Sua respiração cessou.
Alexander não mais se moveu.
Alexander... Ela chamou o amigo mais uma vez em vão.
Eu mal posso acreditar... Disse uma voz abafada. Não é que funcionou...?
Ela não sabia dizer de onde as palavras vinham.
Achei que o grandão aí fosse invencível... A voz continuou. Mas, olha só, o pessoal do laboratório tava certo...
Seus olhos se arregalaram ao reconhecer a voz.
A Rainha levantou com as pernas bambas. Seu coração batia quase para fora de seu peito. Suas mãos tremiam, quase derrubando a arma.
Um gás tóxico sem igual... O comandante da Inquisição murmurou. Um veneno capaz de fazer qualquer ser vivo sufocar até seus últimos instantes de vida...
A voz parecia se mover. O desgraçado não permanecia parado por muito tempo. Ela sabia disso. Mesmo assim, não era capaz de encontrá-lo.
Uma arma capaz de eliminar qualquer forma de vida... Prosseguiu. Bactérias, plantas, animais, pessoas... E até aberrações como essa... Emissários do caos... Monstros vindos direto do Inferno... Para lá devem retornar...
A Rainha apontava a arma para o alto, movendo-a freneticamente de um canto para o outro. O canalha estava acima dela, rondando-a como uma fera, decidindo qual seria o melhor momento para o ataque.
Disso ela tinha certeza. Ele estava ali. Certo? Talvez não. Talvez ele estivesse a enganando de alguma forma. Talvez seus próprios sentidos a estivessem traindo. Suas incertezas aumentavam e se fortaleciam a cada batida de seu coração inquieto.
Isso mostra como toda vida é efêmera... Frágil... Tão fácil de quebrar... Ele riu. Não concorda... Sophia?
Uma rajada de tiros. Porém, nada a rainha acertou. Ela nem mesmo tinha seus olhos abertos no instante. E por um momento, pensou que seria melhor não mais abri-los.
Seus dedos tremiam. Suas mãos tremiam. Seus braços tremiam. Seu corpo tremia. Não sabia dizer se sentia medo. Não sabia se sentia raiva. Não sabia mais o que esperar.
Andando pela sala sem rumo, seus olhos acabaram por pousar sobre o corpo de Alexander. A Rainha engoliu em seco. Sentiu um vento gélido atingir seu corpo novamente.
O que mais aquele monstro podia usar contra ela? Se o desgraçado podia matar até Alexander, como pensar em sair viva de lá? Por quanto tempo mais ele a torturaria? Por quanto tempo ele continuaria seu jogo, lambendo seus lábios, aproveitando cada segundo do desespero de sua presa?
A resposta veio em seguida.
O som veio de trás dela. O rangido agudo do chão se somou ao estrondo grave da aterrissagem do predador.
Então, o tempo entrou em estado de torpor.
A Rainha se voltou para trás. Seu dedo não conseguiu apertar o gatilho a tempo. A arma foi arrancada de suas mãos. Antes que pudesse reagir, a coronha da arma foi de encontro com sua cabeça. Um baque surdo. O golpe a deixou desorientada por um segundo. Quando percebeu, uma mão se lançou até seu pescoço, agarrando-a com destreza, jogando-a contra uma parede, sufocando-a com prazer.
Aos poucos, a visão da Rainha pareceu conseguir focar no agressor. A roupa blindada era cinzenta, reforçada como uma armadura. Todo o corpo era coberto, incluindo o rosto, fazendo-o parecer ainda menos humano. Nas costas, carregava uma arma: uma metralhadora que, se tivesse sido usada, já teria tirado a vida da presa. Na cintura, uma faca simples, afiada apenas o necessário: um novo instrumento de tortura para brincar com a vítima.
Fazia tempo que eu não fazia isso contigo... O monstro riu. Apertar esse seu pescoço, sentir seus ossos rachando na minha mão, ver você perdendo os sentidos bem diante de meus olhos... Mas... Ele analisou a presa calmamente. Você não parece estar com tanto medo... Não como da última vez... Hm... Por que será...? Será que você ficou mais durona...? Imune ao medo...? Sua própria risada veio em seguida. Não... Improvável...
A Rainha foi solta. Suas pernas fracas cederam, caindo sentada perante o predador. Ela nem conseguia pensar. Tinha que recuperar o ar perdido, então o fez. Arfando, parecia ter se esquecido de toda a cena por um instante.
Então, algo a trouxe de volta para a realidade. Era o som de alguma coisa acertando o chão de madeira. A Rainha olhou lentamente na direção do objeto. Era a máscara do monstro.
Sophia... Ele cantou o nome. Olha pra cá, Sophia...
A Rainha olhou para baixo, tentando desviar o olhar, evitando o que sabia que estava atrás da máscara. Mas não tinha como fugir.
Dedos revestidos de metal apertaram seu rosto, segurando-a pela mandíbula, apertando-a com força, forçando-o para onde olhar.
Os olhos de Sophia, então, encheram-se de medo como não acontecia em anos.
Um sorriso largo que retorcia o rosto. Dentes brancos que mais pareciam presas. Olhos azuis que emitiam um brilho doentio. Um riso maníaco que se deleitava com a cena.

Medo... Gideon Allard murmurou. Medo verdadeiro... Medo incontestável... Ele gargalhou. Perfeito... Sua faca se aproximou do rosto pálido da presa. Agora sim... O toque da lâmina gélida fez Sophia tremer. Agora sim posso começar a me divertir... Me divertir como não faço há anos...

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Anúncio 39

Sobre o poema "O Bicho Papão"...
Não sei se vou  continuar. Pelo menos, não na forma atual, escrito  como um poema.
Vou deixá-lo de lado. Por ora. Posteriormente o retomarei, com toda a atenção que a história merece, escrevendo-o como estou acostumado, isso é, em prosa.
Creio que assim será melhor. Escrever a história como uma poesia foi um experimento. Foi interessante. Mas creio que estou deixando a desejar na qualidade. Por isso, por enquanto, peço que deixem "O Bicho Papão" em seu canto.
E sobre a Rainha Vermelha...?
Ela retornará. Nesse final de semana. Aguardem.
Até lá!

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Poema 1 - Parte 4

Não me parecia possível
Afinal, nada eu estava fazendo
Era realmente incrível
O quanto ela estava crescendo

Mais encantadora a cada dia
Minha protegida se tornava
Eu já a via como minha cria
E a mim ela já amava

Nada parecia ser capaz de a derrubar
Nem mesmo quando seus pais se afastaram enfim
Era algo impossível de se evitar
Algo previsível que já havia anunciado seu fim

A doce garota dormia em paz
Quando a noite chegava
Sem saber que o que era voraz
E que o caótico a habitava

Noite após noite eu a defendi
Das criaturas vis que se arrastavam até sua cama
Inquebrável eu sempre venci
Com garras afiadas e uma alma como uma chama

Eu não podia fingir que era normal
Aquilo que eu fazia com tanto vigor
Matar aqueles que eu já vi como igual
Para manter meu cargo de protetor

Foi algo que eu acabei tendo que aceitar
Algo que rapidamente se tornou suportável
As negras vidas que eu tive que ceifar
Eram pelo bem daquela criança tão adorável

Porém, uma coisa eu ainda não sabia
Que a noite abrigava demônios maiores que eu imaginava
Monstros que se camuflam durante o dia

Uma espécie de besta que apenas a destruição desejava

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Rainha Vermelha, Capítulo 3

Capítulo 3


Ela acordou gritando.
A Rainha levou as mãos ao rosto. Sentiu seu suor escorrendo. Percebeu sua respiração arfante. Ouviu seu coração acelerado. Urrou enraivecida em seguida.
Foi um pesadelo que a tirou de seu sono. Mas não foi qualquer pesadelo. Foi praticamente um flashback, um coquetel feito com os fragmentos de memórias amargas, uma sequência de slides que retratava o mesmo rosto tantas vezes.
Cabelos negros penteados para trás. Olhos azuis profundos. Nariz fino e empinado. Dentes brancos perfeitos. O sorriso, porém, era contido. O jovem parecia esconder algo, segurar algo. Segurar ele mesmo.
A Rainha balançou a cabeça de um lado para o outro, tentando afastar a imagem de Gideon Allard de sua mente. Em vão.
Ela sentia seu coração batendo cada vez mais rápido, cada vez mais enfurecido. Seu corpo começava a tremer. Sua visão se tornava embaçada. Seus punhos se cerraram. Seus dentes trincaram.
Gideon Allard. A Rainha o queria morto. Mais que isso. Ela queria matar o desgraçado. Quebrar lentamente o corpo dele. Fazê-lo sofrer nos últimos instantes de vida. Fazer um favor ao mundo e o livrar de um pária daquela raça. Queria descontar toda a sua raiva, toda a dor que sente e sentiu, naquele rostinho nojento. Queria deformar tanto aquela face arrogante que nem mesmo a família do verme pudesse reconhecer o cadáver quando seu trabalho estivesse finalizado.
A porta do quarto se abriu. A Rainha voltou seu olhar para quem entrava. Era Alexander. O gigante dormia no mesmo quarto que sua protegida, numa cama modesta, perto da porta. No primeiro momento, a Rainha não sabia o porquê do amigo ter saído do quarto. Então, ela viu. Em uma mão, ele carregava um engradado. Eram cervejas, seis no total, de sua marca favorita.
Sempre pensando em mim... A Rainha abriu um sorriso e se ajeitou na cama, sentando-se no colchão, com os pés tocando o piso. Não é, grandão?
Alexander assentiu e, com seus passos pesados, andou até sua chefe. Sentando-se ao lado dela, pegou duas garrafas do engradado e colocou as restantes no chão. A Rainha se encostou no braço do gigante, respirando fundo. Inspirando. Expirando. Com calma. Até relaxar. Então, abriu sua primeira cerveja e tomou um gole.
A Rainha pensou em seu pai, Martin, e na antiga vida deles. Lembrou-se de como era a Capital, ou melhor, de como eram os lugares que podia frequentar lá. A cidade não era uma utopia como muitos de fora dela imaginavam. Haviam abismos sociais. Crimes aconteciam. Era por isso que precisavam de seus policiais. Porém, o povo, em sua totalidade, considerava-se superior ao resto do mundo. E aquilo sempre a enojou.
Mais um gole de cerveja. Então, pensou na origem de tudo aquilo, da divisão do mundo até se tornar o que é hoje. Lembrou-se das aulas de história. Lembrou-se das teorias da conspiração que lia na internet. Lembrou-se até mesmo as palavras do próprio pai sobre o assunto. Coisas que ela não pensava há tanto tempo.
Um gole rápido. Concentrando-se, quase podia se lembrar das palavras exatas usadas pelos professores. Tantas vezes falaram sobre a Guerra Infernal, sobre o surgimento de humanos com dons dignos de seres mitológicos, sobre o banho de sangue que foi o conflito entre normais e anormais.
Popularizados como Malditos, os tais super humanos foram derrotados por dois motivos principais.
O primeiro foi a questão numérica. Eles estavam em desvantagem. Eram, e ainda são, a minoria na sociedade. Algumas centenas de soldados contra cada um deles. A grande maioria não era tão poderosa.
O segundo fator foi a resistência. Por mais que pudessem cuspir fogo, controlar ventanias, invocar relâmpagos ou causar terremotos, balas causavam tanto dano neles quanto em pessoas comuns. Tiros na cabeça os eliminavam sem problemas. Bombardeios dizimavam dezenas ao mesmo tempo. Uma bomba atômica extinguia milhares em uma fração de segundos.
No final, os Malditos remanescentes se renderam, fugiram, esconderam-se. As grandes cidades construíram muralhas para se proteger de eventuais ataques e, também, para manter as ameaças sobrenaturais do lado de fora, mandando a Inquisição para exterminar os monstros sobreviventes. Ou era o que diziam.
Poucos habitantes da Capital não eram alienados e conseguiam pensar por si só, questionando essa história, pelo menos, em alguns aspectos. As conclusões eram vistas pela maioria da população, é claro, como bobagens. Mas os mais inteligentes sabiam que muitas pessoas além dos muros não tinham super poderes, não representavam uma grave ameaça. Porém, todos eram pobres. A parcela da população considerada mais grosseira, mais burra, com maior tendência à criminalidade. A divisão era apenas para afastá-los dos mais ricos. E Martin fez questão de explicar isso para a filha desde cedo.
Quando a Rainha percebeu, sua garrafa estava vazia. Antes que pudesse estender o braço para pegar outra, Alexander já havia feito isso por ela. Ele pegou duas novas cervejas, uma para a amiga e uma para si, e deixou as que acabaram no chão, junto ao engradado.
Um novo gole a refrescou. A Rainha, então, olhou para seu protetor silencioso. Um Maldito, como o próprio pai havia dito. Aquele termo a enraivecia. Era puramente pejorativo. Mais uma forma que o governo criou para incentivar o ódio contra aquela raça apenas por terem nascido diferentes. E ela sabia que não era a primeira vez que aquilo acontecia na História.
Segundo gole. Pensar no caso de alguém tão próximo quanto Alexander era especialmente revoltante, doloroso até. Primeiramente, o gigante nunca foi capaz de falar. Com exceção dos grunhidos e rugidos, não podia se expressar. Aquilo já era um problema grande o suficiente por si só. Some isso ao fato do companheiro ter nascido em algum fim de mundo qualquer e que ele literalmente teve que lutar, muitas vezes sozinho, para sobreviver e a tragédia que era sua vida fica clara.
Um novo gole. A Rainha olhou com carinho para Alexander. O amigo só sobreviveu tanto tempo graças a sua resistência e a sua força, ambas descomunais. Se fosse outro Maldito, sozinho, já teria morrido em uma viela qualquer com um tiro na nuca. Mas aquilo nunca aconteceria com o gigante. Ele já havia sobrevivido a mais surras, facadas, tiros e explosões que ela podia imaginar.
O quarto gole foi rápido. Ela respirou fundo. Sentiu o ar preencher os pulmões. Segurou um pouco. E soltou enfim. A Rainha se sentia confortável junto ao amigo, protegida como se ainda tivesse dezessete anos, morando em casa com o pai, só tendo que se preocupar com os típicos problemas de adolescentes. Foi uma época boa. Uma época que ela não soube dar valor. Uma época que chegou ao fim em poucos minutos. Tudo graças a um monstro. Um monstro que não tinha nada de sobre-humano. E era exatamente isso que a aterrorizava.
Gideon Allard. Mais uma vez ela pensou no nome. Mais uma vez se lembrou daquele rosto.
A Rainha rosnou. Com um longo gole, terminou sua cerveja. Alexander logo providenciou a próxima para ela e para si.
Apenas uma adolescente. Não sabia nem o que faria da vida. Não tinha a mínima ideia. Inteligente, mas não tanto quanto achava que era. Bela, mas não sabia os problemas que a beleza atrairia. Assim a Rainha podia se descrever na época. Ainda melhor, se fosse para se resumir em uma palavra, provavelmente escolheria inocente. Afinal, não sabia o que estava por vir. Não entendia o quão frio o mundo poderia ser uma vez que não havia sentido na pele suas presas geladas.
Era noite. O céu estava limpo. A chuva não atrapalharia os planos pro fim de semana. A jovem Sophia sairia com as amigas. Iria para a festa que tanto queria. Já havia planejado tudo há semanas. Sabia como iria. Como voltaria. O que lá faria. E sabia que poderia se envolver com um homem de classe, ainda mais quando comparado com os velhos pretendentes. Era uma dos poucos eventos da Capital que alguns membros da tão invejável elite socializavam com a plebe. A garota só esperava não terminar com algum porco arrogante. Mal sabia ela que acabaria nas mãos do diabo.
Demônios enganam. Demônios seduzem. Demônios possuem. Isso tudo com suas máscaras. E Gideon não era diferente. Bem vestido, perfumado, com pose de galã. Quando ele ofereceu um drinque para Sophia, a garota pensou em dar uma chance para ele. A jovem parecia encantada pelo jeito misterioso do novo pretendente.
Começaram a se conhecer. Poucas palavras foram trocadas. Então, o nada veio. Um vazio, uma tela em branco no lugar de onde deveria estar a memória.
Sophia nem se lembra de como saiu da festa. Nem se lembra de ter visto as amigas. Só percebeu, dias depois, que havia algo em seu drinque.
Os poucos fragmentos de memória que sobreviveram foram justamente os piores. Prova de que o destino tem um senso de humor desgraçado. Sophia apenas se lembrava do sorriso de Gideon alargando-se, esticando e retorcendo o rosto. Os dentes como presas. Um olhar doentio. Um riso maníaco. Dedos como garras rasgando suas roupas, apertando seu pescoço, estrangulando-a, deixando hematomas por todo seu corpo dormente, marcas que só veria no dia seguinte. A língua percorreu todo seu ser, traçando curvas e mais curvas, saboreando a presa que só conseguia mover os olhos, tentando desviar o olhar, rezando para que as lágrimas continuassem embaçando sua visão. Seus gritos não saiam de sua garganta, não como gritos pelo menos, saindo fracos e impotentes, suspiros e gemidos apenas, para o deleite do demônio que se excitava mais e mais, rindo freneticamente enquanto apreciava toda a cena nefasta que criara.
A Rainha deu o primeiro gole na terceira garrafa, virando-a e bebendo a cerveja de uma vez.
Ela se lembrava do dia seguinte, de acordar nua num motel barato. Quando as memórias começaram a vir, ela vomitou. Então, começou a chorar. A pobre Sophia não sabia o que fazer. Sabia que não havia como concertar aquilo. Sabia que não havia como voltar no tempo, impedir que aquilo acontecesse. Sabia que aquele pesadelo tinha sido a sua primeira vez.
É claro que ela iria até o pai, o policial. É claro que ele ficaria revoltado com o que havia acontecido. É claro que ele faria tudo ao seu alcance para ajudar sua filha e punir o diabo que havia feito aquilo ela. Mas a realidade era outra.
Allard. Uma das mais ricas e influentes famílias da Capital. Melhor dizendo, uma das donas da Capital. A palavra deles era lei. Se quisessem silenciar o departamento de polícia e todos os tribunais da cidade, assim o fariam. E o fizeram. Ninguém tocaria no jovem Gideon. Não importa o crime, principalmente contra uma reles filha de um policial. O desgraçado se safou. E sabia que se safaria mesmo antes de drogar Sophia.
Não havia mais nada a ser feito. Martin não poderia fazer nada. Perderia seu emprego e até a sua vida caso tentasse alguma loucura. E Sophia sabia disso. Então, ela fugiu. Sem olhar para trás.
Muito havia acontecido desde então. Uma garota da Capital correu às cegas em direção a um mundo hostil e desconhecido. Sua única certeza era a de que não poderia viver mais onde estava. Tinha a tola esperança de que algo melhor a aguardava, que algo bom tinha que acontecer, uma fora de compensação talvez.
Um anjo, então, apareceu. Alguém que a salvaria da morte incontáveis vezes. Alguém que possibilitaria que seu reinado se formasse. Seu primeiro súdito. Seu primeiro aliado. Seu primeiro amigo num mundo sem dó. Um homem que também precisava ser salvo.
A Rainha Vermelha abraçou Alexander o mais forte que podia. O gigante retribuiu o gesto, sempre atento a sua força, sempre com carinho.
Era ali que ela se sentia confortável. Era daquele jeito que ela se sentia invencível.

Ah, Alexander... Sophia sorriu como só conseguia sorrir para o amigo. Amanhã vai ser um grande dia... Seus olhos brilhavam como chamas. Sangue jorrará em homenagem à Rainha Vermelha.