Ok, acabaram meus vestibulares. As primeiras fases, pelo menos. Logo, não tenho mais provas esse ano e, consequentemente, volto a escrever com regularidade. O quinto capítulo da Rainha Vermelha será escrito em breve!
Ok, era só isso.
Até!
segunda-feira, 28 de novembro de 2016
quinta-feira, 24 de novembro de 2016
Conto de Terror 13 - Completo
O Pior Pesadelo
Não sou uma pessoa que costuma sentir medo, muito menos
entrar em pânico. O irreal nunca me afetou. Filmes de terror normalmente me
faziam rir. Relatos sobre psicopatas normalmente prendiam meu interesse,
entretendo-me de certa maneira, mas certamente nunca me aterrorizaram ou me
tiraram o sono. Porém, após a noite passada, sinto-me desconfortável, para
dizer o mínimo. Sinto um mal estar que não vai passar tão cedo, tenho certeza.
Acordei às cinco da manhã, suado, tentando me lembrar do que
havia acontecido. Aos poucos, as memórias voltariam.
***
Era só pra ser um grupo de amigos bebendo juntos.
Eric, James, Phil e eu, Matt. Não creio que até aquele dia
havíamos saídos todos juntos, apesar de todos sermos bons amigos. Sempre
acontecia algum imprevisto e um de nós acabava não indo ou, então, pessoas não
agradáveis para algum de nós estaria junto do grupo. Lembro que era impossível
sair com Phil e Mary, sua ex, ao mesmo tempo após o término do relacionamento.
Enfim, lá estávamos nós quatro, finalmente, em frente à
praia com toda a classe que moleques de dezoito anos desempregados podiam ter.
E, sim, isso significava que tínhamos um isopor cheio de bebidas baratas.
A cerveja era a única coisa que salvava. Eu as escolhi
afinal. Se eu fosse ficar bêbado, queria
ter um pouco de classe e, se possível, lembrar-me do que aconteceu naquela
noite no dia seguinte.
A noite passou rápido. Quando percebemos, as cervejas haviam
acabado, Phil já havia vomitado e James, que raramente bebia, estava mais
bêbado que todos nós juntos. Pelo menos, conseguimos rir bastante.
No final, eu fui o responsável por levar James até a casa
dele. Não por que a culpa era minha por ele ter ficado bêbado, mas eu era a
pessoa que morava mais próximo dele. Então, coube a mim andar junto com um
bêbado por mais de vinte minutos até o prédio dele (ele não queria pegar um
ônibus e eu não estava com vontade de insistir).
Foi engraçado, devo admitir. Eu nunca havia sido a escolta
de alguém bêbado, apesar de eu já ter sido escoltado uma vez ou outra.
Minha missão foi cumprida sem problemas, até onde eu me
lembrava. Eu só tinha que falar com James no dia seguinte para saber como ele
estava. Por ora, eu podia voltar tranquilo para casa.
Cansado, eu dormi poucos instantes depois de me deitar na
minha cama.
Então, tudo ficou confuso.
***
Eu acordei no chão de uma sala que eu me lembrava vagamente.
Lá, algumas outras pessoas estavam no mesmo estado deplorável no qual eu me
encontrava.
Minha cabeça doía, minha boca estava seca, meu corpo estava
encharcado de suor. O som de uma conversa em outro cômodo parecia um estádio de
futebol em dia de clássico. Ao levantar, quase vomitei. Claramente de ressaca,
eu saí da casa.
O sol parecia queimar os meus olhos enquanto tudo girava a
minha volta. Meus murmúrios de dor cessaram quando uma mão veio até meu ombro.
—
Matt! — Ele me
chamou. — Ainda bem
que está vivo!
Quando minha visão se normalizou, eu vi Brian, um amigo que
eu não via desde que ele havia se mudado.
— Cara...
— Eu murmurei. — O que aconteceu?
—
Uma das melhores noites de todos os tempos. —
Disse uma garota. —
Só.
Eu olhei para ela. Não fazia a mínima ideia de quem era.
Porém, vi que, com ela, estavam outras pessoas, incluindo algumas inusitadas.
Agatha estava lá. Até onde eu me lembrava, ela estava
fazendo intercâmbio. Como ela estava ali, agora?
John era a última pessoa que eu esperava ver lá. Até onde eu
sabia, uma festa regada à vodka barata, pelo cheiro das minhas roupas, havia
acontecido. Aquele moleque altamente religioso ali no meio não fazia sentido.
Então, outras pessoas, todas do mesmo grupo, vieram falar
comigo. Do jeito que elas falavam, nós éramos grandes amigos, comentando sobre
eventos da minha vida que eu contava para poucas pessoas. Perguntaram-me da
minha mãe que estava doente, da minha irmã que havia terminado a faculdade, do
meu novo gato de estimação. Tudo com um sorriso caloroso no rosto.
Após algum tempo, eu me virei para Brian e perguntei:
—
Você viu o James?
—
James? — Ele franziu
o cenho. — Eu não
acho que ele tenha vindo pra festa, mano...
—
Sério...? E o Phil?
—
Que Phil? O Phil Anderson?
—
É...
—
Nem sabia que vocês se falavam... Vocês trocaram uma ideia ontem à noite, foi
isso?
— Não... — Eu sacudi a cabeça para
os lados, sem entender o que acontecia. —
E o Eric?
—
Que Eric?
—
Eric Johnson.
—
Quem é esse?
Eu parei por um instante, olhando confuso para o rosto de
Brian. Ele me parecia sério. Não parecia uma das brincadeiras estúpidas que ele
fazia de vez em quando.
—
Eu tinha certeza que eu estava bebendo com eles ontem à noite... — Eu disse calmamente.
Então, percebi algo que eu deveria ter perguntado desde o começo. — Aliás... Como eu vim
parar aqui?
—
Cara... — Ele riu. — Eu devia ter cortado seu
álcool depois que a gente terminou aquela segunda garrafa... Mas não deu. Tava
muito bom ver você bêbado...
Brian continuou rindo enquanto eu só ficava mais confuso.
—
Eu também não queria ser chato com você depois que as coisas não deram certo
com a Amber. — Ele
disse, agora, um pouco mais sério.
—
Amber? — Indaguei. — A Amber? Amber Woods?
—
É. — Ele colocou a
mão no meu ombro. —
Você foi o que chegou mais perto de pegar ela, mano. Teria conseguido se a
amiga dela não tivesse passado mal. Mó azar ela sair da festa daquele jeito...
Aquele foi o momento em que eu tinha certeza de que alguma
estava errada. Amber Woods era colega, não muito bonita pra ser sincero, de
classe que eu gostei durante uma época, porém, nunca havia chegado a tentar
algo com ela. O tempo simplesmente passou e ela não mais me atraia, simples
assim.
Agora, Brian era um cara que podia ter praticamente qualquer
mulher que ele quisesse. Ver ele falando de alguém tão trivial quanto Amber,
pros padrões dele, daquela maneira era um pouco além do que estranho.
—
O que aconteceu? —
Perguntei. — A Amber
ficou gostosa de repente ou...?
— De repente? — Ele riu. —
Ta zoando? Ela sempre foi gostosa, cara!
—
Claro...
—
Como assim? Você não se lembra de como ela estava ontem à noite...?
Eu ia responder que não fazia ideia, porém, imagens começar
a surgir em minha mente.
***
O sorriso branco. Os lábios escarlates. Os olhos verdes. O
cabelo castanho claro que descia como uma cachoeira sobre seus ombros. Amber
estava simplesmente deslumbrante.
Eu estava sentado ao lado dela, junto ao balcão de um bar
dentro do casarão, conversando, rindo, dividindo um drinque que eu nem me
lembrava mais o que era. No meio da multidão, pude ouvir Brian gritando Vai, Matt!, o que me fez rir
nervosamente e ficar um pouco irritado com ele.
Tudo estava dando certo até o momento em que a amiga de Amber
apareceu do lado dela vomitando.
***
—
Ah... — Eu limpei a
garganta. — Eu... Eu
me lembro... Vagamente...
—Cara,
prometo que não vou te deixar beber tanto da próxima vez... — Brian disse se sentindo
um pouco culpado.
—
Não se preocupe... —
Eu, de repente, levei minhas mãos até meus bolsos. Preocupado, temi que eu
estivesse sem meu celular e minha carteira. Felizmente, eles ainda estavam
comigo. — Ufa...
—
Ta com tudo ainda?
—
Sim...
—
Vamos embora, então?
—
Ah... Daqui a pouco... Só tenho que dar um pulo no banheiro...
—
E você se lembra onde é?
—
Claro... — Menti. — Já volto...
Eu voltei pra dentro da casa, ainda com minha cabeça
latejando.
—
Isso não pode ser real... —
Murmurei para mim mesmo enquanto rodava pelo casarão. — Eu ainda estou sonhando... É só mais um
daqueles sonhos extremamente realistas...
Não seria o primeiro do gênero. Eu já havia passado por
situações assim.
Eu não sabia como eu havia chego a tal situação. Não sabia
como eu estava falando com pessoas que eu não me dava bem. Não sabia como eu
havia saído de minha cama e chego até um shopping em questão de segundos.
Entretanto, tudo parecia tão real.
O ar no meu rosto. Os meus pés pisando contra a calçada. O
meu estômago gemendo de fome. A minha bexiga que parecia prestes a estourar. O meu
coração palpitando ao ver uma garota que eu gostava. Já havia sentido tudo isso várias vezes em
sonhos.
Porém, esse era diferente. Coisas estranhas estavam
acontecendo e ninguém parecia notar, pelo menos, dentro do meu círculo social,
o que era comum para um sonho. A ressaca que eu sentia era assustadoramente
real, devo admitir. Porém, ainda poderia ser minha imaginação agindo enquanto
eu dormia, certo?
Algo, entretanto, dizia-me que não.
Minhas memórias estavam turvas. Eric, James e Phil. Eles não
pareciam reais. Eles pareciam um sonho distante compostos por memórias
fragmentadas.
Quanto mais eu tentava me lembrar, menos eu me lembrava do
dia em que bebemos na praia. Até mesmo a minha caminhada com o James bêbado
parecia não ter acontecido.
Por outro lado, a cada instante, mais memórias pareciam
surgir em minha mente sobre a festa da noite passada. Não só me lembrei de
Amber. Podia me lembrar claramente de outras garotas, de amigos meus que
encontrei, de dois caras que brigavam por alguma mulher, de algum moleque que
havia sido traído e fazendo um escândalo sobre o ocorrido.
Depois de algum tempo, eu estava parado em algum corredor,
apoiado com as costas na parede, cada vez mais certo de que eu não estava num
sonho.
Meu lado emocional dizia que aquilo não era verdade, que era
tudo um sonho e que eu logo acordaria. Meu lago lógico, entretanto, não
conseguia achar provas daquilo.
Comecei a ficar irritado. Afinal, eu estava mais feliz no
suposto sonho junto com Phil, Eric e
James. Aqueles três eram alguns dos meus melhores amigos, falando besteira,
saindo sem rumo pela cidade, rindo que nem idiotas. Das pessoas da festa, eu
não tinha nenhum grande amigo.
Aliás, naquele meio, eu não tinha nenhum amigo próximo.
Minha fase de ir para baladas não durou mais do que algumas semanas.
Simplesmente não era meu estilo. Como eu havia acabado ali, eu não sabia.
Então, percebi algo.
Nessa realidade, pelo menos de acordo com Brian, eu não
falava com Phil. Eric era um total desconhecido aparentemente. E quanto a
James? Ele existia, mas não sabia dizer como eram as coisas entre nós.
A realidade onde eu estava começava a mostrar falha após
falha. Meu lado lógico, enfim, parecia concordar que havia algo errado.
Como sempre, aquele seria o momento em que eu acordaria e,
em questão de instantes, todo aquele sonho seria como alguns fragmentos de
memória perdidos em minha mente.
Porém, não foi isso o que aconteceu.
Eu comecei a suar frio. Minhas mãos tremiam. Minha
respiração ficava mais rápida e pesada a cada segundo.
Por que eu ainda estava ali? Por que eu ainda estava parado
naquele corredor? Por que eu não havia acordado.
Não fazia sentido... A não ser que aquele fosse o mundo
real, a não ser que eu já estivesse acordado.
—
Não... — Murmurei. — Não, não, não...
Levei minhas mãos até o meu cabelo. Eu tentava respirar
fundo. Mas não conseguia. Eu sentia algo em minha garganta, apertando-a,
sufocando-me.
—
Isso não pode estar acontecendo... —
Falei, quase sem voz. —
Esse não pode estar certo... Isso é só um sonho ruim... Um pesadelo...
—
Um pesadelo do qual você nunca vai acordar...
A voz desconhecida era grave, gélida e parecia sussurrar
diretamente na minha orelha. Senti um calafrio percorrendo a minha espinha e,
em seguida, veio o desespero.
***
Minha visão ficou embaçada e, então, tudo ao meu redor
parecia imaterial, um caos tingido de vermelho e preto. Eu me senti preso ao
chão, acorrentado e amordaçado, incapaz de fazer qualquer coisa a não ser me
debater.
Eu ouvia ruídos a minha volta, gritos inclusive. Eu mal
podia distinguir formas, então não tinha como eu saber o que exatamente estava
acontecendo.
As correntes pareciam estar esmagando minhas costelas e
pulmões. Respirar era praticamente impossível. Porém, algo pareceu explodir
dentro de mim.
Eu nunca fui uma pessoa que falava alto, muito menos cantava
ou gritava. Mas, droga, naquele momento, eu senti o grito mais violento que eu
já tinha presenciado saindo da minha garganta, queimando minhas cordas vocais e
fazendo meu próprio corpo tremer.
***
Quando percebi, eu estava de volta ao corredor. Quadros estavam
destruídos, jogados em pedaços pelo chão.
Vasos haviam sido quebrados, sujando o piso com terra e flores
despedaçadas. O próprio papel de parede parecia ter sido rasgado por garras,
quase como se um animal selvagem tivesse passado por ali.
Algo dentro de mim tinha certeza que aquilo havia sido minha
culpa, resultado de um surto.
—
Aquilo foi uma alucinação? —
Enterrei meu rosto em minhas mãos por um segundo e, então, voltei olhar para o
corredor. — E eu
ainda fiz tudo isso num ataque de pânico...?
Eu não consegui fazer nada a não ser rir. Não foi uma risada
alegre é claro. Foi algo saído da boca de um maníaco ou de alguém simplesmente
desesperado. Eu não sabia dizer em qual dos dois casos eu me enquadrava.
—
Matt? — Uma nova voz
me chamou.
Um homem que eu nunca tinha visto olhava para mim,
preocupado. Ele parecia arrumado demais para estar no meio daquela zona, mas,
fora isso, nada de anormal com o sujeito.
—
O que aconteceu aqui? —
Ele perguntou.
—
Difícil dizer... —
Respondi. Minha própria voz soava estranha aos meus ouvidos, arrastada e grave
demais. — Mas,
diga-me, você... Quem seria?
—
Rick... Não se lembra de nada ontem à noite?
—
Não muito bem... — Eu
sentia minha sanidade se esvaindo do meu corpo. Não havia nada para ser feito. — Muita coisa parece... Só
um sonho, sabe?
—
Sei... — Ele
suspirou. — Bem...
Não sei exatamente o que você bebeu ontem à noite... Se é que você só bebeu...
Mas não se preocupe... Quando você acordar, você estará melhor.
Eu fiquei ali parado, sem saber o que dizer.
Rick sorriu ao ver a minha expressão, provavelmente a de um
idiota espantado e boquiaberto, e seguiu o seu caminho, sumindo de minha vista.
—
Espere! — Eu gritei
enquanto corria na direção dele.
Eu segui o corredor até Rick, mas ele não mais estava lá.
Eu queria muito saber mais sobre o sujeito. Como ele poderia
dizer algo como aquilo? Certamente não era uma brincadeira, não é? E então ele
simplesmente sumiu, sem deixar um rastro.
No final, não importava. As palavras dele me acalmaram. Rick
foi quase como um anjo, tranquilizando-me e, principalmente, devolvendo-me
minha sanidade.
O resto do sonho foi como deveria ter sido. Agora são apenas
memórias fragmentadas, embaçadas na minha mente.
***
Eu tive que dormir pouco depois que acordei. Afinal, eram
cinco da manhã e, depois daquele inferno, eu estava exausto mentalmente.
Dormi pesadamente em seguida, acordando somente quando o
meio dia estava se aproximando. Não houveram pesadelos dessa vez.
Descansado, eu pensei naquela experiência surreal,
ponderando se eu teria mais um sonho como aquele, se eu sofreria enquanto
vulnerável mais uma vez. Por sorte, aquilo nunca mais aconteceu.
Entretanto, nunca se sabe. Pouco menos de uma semana se
passou desde o ocorrido. Poderia acontecer de novo.
Eu não poderia ficar vivendo com medo. Eu não poderia
simplesmente não mais dormir. Eu não poderia simplesmente ficar questionando a
realidade. Eu não poderia ficar questionando a minha sanidade.
Porém... Ainda não sei se estou na realidade correta, sabe?
Eu estava simplesmente confiando na palavra do tal de Rick... E quem era
ele...?
***
Sinceramente, vou parar com essa paranoia, ou tentar pelo
menos. É mais fácil continuar vivendo, ou sonhando...
Se eu continuasse vivendo como estou, sinto que estaria
jogando minha vida fora, não? Se essa for a verdadeira, não quero
desperdiçá-la. Se não for, ainda é melhor do que viver com medo.
Enfim, espero nunca mais ter que falar sobre isso.
Adeus.
segunda-feira, 21 de novembro de 2016
Anúncio 40
Sobre Mephisto...
Pouco tempo após a conclusão do The Conflagration - Soulless resolvi escrever aquilo que publiquei no último post do blog. Era pra ser a continuação da história, um segundo livro. Mas foi nessa época que resolvi me aventurar por outros caminhos da escrita. Aí começaram contos e mais contos, histórias curtas e precisas, romances longos que eu nem sabia como terminar, rascunhos e protótipos de texto até. Tudo que vocês já acompanham aqui, resumidamente falando. Aí Mephisto ficou de lado. Bem como Tristan.
Mas talvez tenha sido melhor assim. Essas experiências que eu passei, que eu escrevi, foram ótimas. Elas moldaram o escritor que vos escreve. E estou contente com o resultado.
No final, acho que foi melhor Mephisto ficar de lado. Mas, é claro, eu me vi quase que obrigado a postar o único capítulo. Sempre compartilhei tudo que escrevo aqui. Várias obras inacabadas inclusive. Então, esta não poderia faltar.
Era só isso. Achei que deveria explicar sobre o texto que surgiu tão inesperadamente, bem do nada mesmo, no meu querido blog. Missão cumprida.
Até a próxima!
Pouco tempo após a conclusão do The Conflagration - Soulless resolvi escrever aquilo que publiquei no último post do blog. Era pra ser a continuação da história, um segundo livro. Mas foi nessa época que resolvi me aventurar por outros caminhos da escrita. Aí começaram contos e mais contos, histórias curtas e precisas, romances longos que eu nem sabia como terminar, rascunhos e protótipos de texto até. Tudo que vocês já acompanham aqui, resumidamente falando. Aí Mephisto ficou de lado. Bem como Tristan.
Mas talvez tenha sido melhor assim. Essas experiências que eu passei, que eu escrevi, foram ótimas. Elas moldaram o escritor que vos escreve. E estou contente com o resultado.
No final, acho que foi melhor Mephisto ficar de lado. Mas, é claro, eu me vi quase que obrigado a postar o único capítulo. Sempre compartilhei tudo que escrevo aqui. Várias obras inacabadas inclusive. Então, esta não poderia faltar.
Era só isso. Achei que deveria explicar sobre o texto que surgiu tão inesperadamente, bem do nada mesmo, no meu querido blog. Missão cumprida.
Até a próxima!
quinta-feira, 17 de novembro de 2016
Mephisto
— Preparado
para a sua grande estréia? —
Perguntou um Demônio, que manejava uma lança, para um guerreiro. O homem
trajava uma armadura negra ornada com prata. Uma longa capa vermelha, em suas
costas, estendia-se até chão. Nela, o símbolo das Trevas, o dragão negro, era
nítido. O elmo, extremamente lustroso, de formato arredondado, protegia
completamente sua cabeça, a não ser pelos olhos e boca, que tinham aberturas
largas mais do que suficientes para tornar seus olhos, bem como sua boca, bem
visíveis. Logo, a pele alva de seu rosto podia ser vista, bem como os lábios
finos, dentes perolados e olhos extremamente azuis.
—
Tenho certeza que ele não terá problemas. —
Outro Demônio respondeu no lugar do guerreiro. Este vinha carregando um arco na
mão esquerda. Atrás dele pelo menos duas dezenas de outros Demônios, manejando
as mais diversas armas, pareciam esperar por algo acontecer. — Afinal, ele é o filho de
Nidhogg. — O Demônio
sorriu. Usando apenas uma máscara metálica que cobria a parte superior de seu
rosto, sua boca e, conseqüentemente, suas longas presas extremamente brancas
eram bem visíveis. —
E, ainda por cima, foi treinado por Tristan, o Escolhido do Lorde das Trevas.
—
Ora, fico lisonjeado com sua confiança. —
Disse Mephisto, o Príncipe das Trevas, com sua voz suave. — Mas...não se esqueçam que
eu ainda estou em fase de treinamento. Ainda sou um aprendiz de Tristan. Não se
esqueçam que eu tenho apenas um mês de vida.
O primeiro Demônio riu.
—
Que seja. — Ele deu
de ombros. — Você
ainda é mais poderoso do que todos nós, os Demônios que se reuniram aqui,
juntos.
—
É... — O segundo
Demônio concordou sem muita animação. —
Tenho certeza que você, Mephisto, poderia fazer essa missão sozinho. — Ele bufou. — Mas...um dos motivos
dessa missão é ver se você sabe comandar uma tropa. Por isso que estamos aqui. — O Demônio que carregava o
arco se voltou para o que manejava a lança. —
Certo?
Com certa hesitação, o primeiro Demônio concordou,
assentindo com a cabeça.
—
Claro, claro... —
Mephisto respirou fundo e, então, quase como se estivesse perdido, olhou,
minuciosamente, ao seu redor.
“Eu mal conseguido acreditar...”.
A noite já havia começado horas atrás. Dezenas de nuvens
escuras cobriam faziam com que as luzes das estrelas não pudessem ser vista.
Entretanto, isso não se aplicava a lua, que, soberana, brilhava no céu negro. O
chão, em que Mephisto e sua tropa pisavam, parecia ser coberto por um longo
tapete verde acinzentado. A pouco menos de um quilômetro de distância, no topo
de uma colina, cercada por um fosso, protegida por gigantescas muralhas
brancas, estava uma cidade.
“A minha primeira missão...finalmente chegou”.
Mephisto sorriu.
—
Ah...o que tem de especial mesmo naquela cidade? —
Um terceiro Demônio, que carregava uma adaga em cada mão, aproximou-se,
calmamente, de Mephisto e dos outros dois aliados. — Para ter tanta proteção assim...o que há de
tão importante lá? Eu e os outros Demônios não fazemos ideia do porquê...
—
Nós descobrimos o motivo recentemente também, então, não se preocupe. — O segundo Demônio
respondeu animado. Ele cruzou os braços e sorriu. — Acontece que existem, nessa cidade, pelo
menos, algumas dezenas de seguidores da Luz especializados em criar artefatos
mágicos. Logo, é bem provável que existam, pelo menos, algumas centenas de objetos
valiosos que possamos destruir.
—
Se eles não nos destruírem antes. —
Disse, um pouco irritado, o primeiro Demônio. —
Com tantas armas da Luz...bem, nós poderemos ter problemas.
—
Realmente. — Mephisto
sorriu. — Parece bem
desafiador.
O primeiro Demônio parecia rosnar. O segundo, entretanto,
sorriu. O terceiro ficou sem saber como reagir.
—
Bem...vamos? — O
Príncipe das Trevas perguntou animado. —
Eu não vou agüentar esperar tanto.
O segundo Demônio olhou em direção a cidade e coçou a
nuca.
—
Ah...bem... — Ele
parecia forçar os olhos para enxergar a cidade. —
Vejo pouquíssimo movimento lá. Creio que todos, com exceção dos guardas que
estão fazendo suas rondas, já tenham ido dormir.
—
Então...vamos? — O
terceiro Demônio perguntou com certa animação.
Mephisto sorriu. O primeiro e o segundo Demônios
concordaram assentindo de leve. Rapidamente, o Príncipe das Trevas ergueu a mão
direita para o alto, chamando a atenção do resto de sua tropa.
—
Vamos! — Mephisto
sorriu. — Temos uma
cidade para atacar e nenhum segundo a perder!
De repente, duas grandes asas, feitas a partir de trevas,
surgiram nas costas do Príncipe das Trevas. Elas eram cobertas por penas cor de
ébano, como as de cisnes negros. Em um instante, Mephisto se ergueu dezenas de
metros no ar. Sem dizer mais nada, ele avançou em direção a cidade.
“Bem...qual será o meu primeiro ataque?”.
Ao chegar ao céu nublado que cobria a cidade, Mephisto sorriu.
Ao todo, algumas dezenas de guardas, todos usando simples armaduras de aço,
patrulhavam as muralhas e as ruas. As casas da cidade estavam envoltas pela
escuridão da noite. Apenas alguns pontos de luz, provindos de tochas, tanto nas
paredes, tanto nas mãos de guardas, podiam ser vistos em toda a extensão do
local.
“Isso vai ser divertido...”.
O Príncipe das Trevas coçou a nuca.
“Ah...mas eu ainda não sei que ataque...”.
Antes que Mephisto pudesse concluir seu pensamento, uma
flecha foi lançada em sua direção. Rapidamente, ele esquivou do projétil,
jogando-se, em pleno ar, para a direita. Nesse momento, o Príncipe das Trevas
olhou novamente para os pontos iluminados. Pelo menos duas dezenas de guardas
haviam o avistado e, prontamente, já tinham seus arcos em punhos. Rapidamente,
mais flechas foram atiradas. Agora, atento, Mephisto teve ainda mais facilidade
em desviar dos projéteis.
—
Precisa de ajuda? —
Uma voz familiar, atrás do Príncipe das Trevas, perguntou.
Mephisto, rapidamente, voltou-se para trás. Sua tropa de
Demônios havia chego. O segundo deles que havia feito a pergunta. O príncipe
sorriu.
—
Se vocês não se incomodarem... —
Ele deu de ombros, ainda sorrindo. —
Vocês podem atacar os guardas que estão nas ruas. Eu cuido dos que estão nas
muralhas.
Não houve protestos. A tropa de Demônios avançou por cima
das muralhas, em direção às ruas da cidade, servindo, de maneira não
proposital, como distração, fazendo com que os guardas parassem de prestar
atenção em Mephisto.
“Perfeito...”.
Em um instante, pequenas descargas elétricas, de coloração
azul, praticamente branco, começaram a percorrer, freneticamente, pelos braços
do Príncipe das Trevas. Com um sorriso, ele apontou, com o dedo indicador
direito, na direção de seus alvos. No mesmo instante, um relâmpago, com um
fraco brilho azul, foi disparado de sua mão, percorrendo uma linha reta no ar
até o peito de um dos guardas. Toda a descarga elétrica percorreu o corpo do
guerreiro envolto pela armadura de aço. Em uma fração de segundos, o guarda
caiu, sem vida, do topo da muralha. Apavorados, os outros guardas, que estavam
próximos daquele que havia acabado de ser morto, voltaram-se na direção de
Mephisto. O Príncipe das Trevas, soberano no céu da noite, sorriu satisfeito.
“Bem...foi fácil...”.
Os guardas nas muralhas começaram a preparar mais flechas
em seus arcos. Agora, a atenção deles estava voltada exclusivamente para
Mephisto.
“Agora...vamos fazer a mesma coisa...mais vezes...e mais
rapidamente...”.
No total, doze inimigos estavam nas proximidades do
Príncipe das Trevas. Com movimentos rápidos com as mãos, quase elegantes,
Mephisto apontava na direção dos adversários. Raios atravessavam o ar. Guardas
eram atingidos. Corpos caiam sem vida. Quando, enfim, flechas foram lançadas
contra o Príncipe das Trevas, seis dos guardas já haviam sido mortos.
“É...está sendo tão fácil quanto Tristan disse que
seria...”.
Apesar de seis flechas estarem vindo em sua direção,
Mephisto parecia tranqüilo. A serenidade estava estampada em seu rosto. Rapidamente,
ele estendeu as mãos. Desta vez, porém, Mephisto apontava na direção dos
projéteis atirados pelos inimigos. Em um instante, mais raios foram lançados
pelo Príncipe das Trevas, acertando as flechas em pleno ar, pulverizando-as sem
dificuldades.
“Nada de muito diferente do treinamento até agora...”.
De repente, Mephisto percebeu chamas brilhando
intensamente das ruas da cidade. Apesar da distância, ele também ouvia inúmeros
ruídos. Urros triunfantes, gritos de dor, o som de metal contra metal.
“A situação parece bem mais emocionante lá em baixo...”.
Rapidamente, Mephisto se transformou em trevas e se
dirigiu até a muralha. Aterrissando atrás de um dos guardas, ele, animado,
olhou para as ruas da cidade. A cena era caótica. Demônios e seguidores da Luz
travavam uma batalha feroz. Apesar de serem mais poderosos, os seres das Trevas
estavam em menor número. Incontáveis guardas eram massacrados, com extrema
facilidade, pelas armas dos Demônios. Entretanto, alguns de seus adversários,
que trajavam túnicas brancas, possuíam alguns amuletos. Assim sendo, magias de
Luz eram lançadas pela cidade. Os flashes aturdiam alguns Demônios. Quase uma
dezena das criaturas das Trevas havia sido aniquilada.
“Nossa...”.
Mephisto estava tonto com a cena. Porém, ao mesmo tempo,
ele sorria admirado.
“Isso é bem mais excitante do que eu imaginava!”.
O Príncipe das Trevas estava inquieto. Ele balançava as
mãos incessantemente. Sua respiração estava acelerada. O sorriso em seu rosto
parecia se expandir mais e mais.
—
Droga! — Uma voz
exclamou atrás de Mephisto.
Rapidamente, o Príncipe das Trevas se voltou para trás.
Os seis guardas ainda estavam ali.
“Ah...eu quase me esqueci deles...”.
O guarda a frente de Mephisto já havia guardado seu arco
nas costas e, agora, sacava sua espada da bainha. Entretanto, antes que o
guerreiro pudesse atacar, uma arma surgiu na mão direita do Príncipe das
Trevas. Em uma fração de segundos, a arma já havia sido cravada no peito do
guarda.
—
Essa armadura de vocês não serve pra nada, pelo visto... — Mephisto murmurou
enquanto puxava sua arma de volta. Com um puxão brusco, ele recuperou o objeto.
Tratava-se de um machado. De coloração cinza, quase negra, a arma tinha cerca
de noventa centímetros de comprimento. O fio da lâmina da arma, vermelho como
sangue, brilhava intensamente. Em ambas as faces do machado, o símbolo das
Trevas havia sido feito com prata. —
E, agora, só restam cinco de vocês. —
Ele sorriu. — Quanto
mais rápido eu acabar com vocês, mais cedo eu vou poder ir lá para baixo. — O príncipe apontou para
trás, na direção das ruas da cidade. —
Então...é...
Antes de completar a frase, Mephisto se transformou em
trevas e surgiu atrás do guarda que se encontrava mais distante dele. Antes que
o guerreiro pudesse agir, o príncipe cravou seu machado nas costas de seu
adversário. Os outros guardas, agora, estavam, apesar de certa distância entre
cada um deles, enfileirados. Mephisto não conseguiu conter um sorriso. Em um
instante, uma cópia idêntica do machado que estava em sua mão direita surgiu em
sua mão esquerda. Sua imagem, de repente, tornou-se turva, como se sua forma
humana e de trevas se revezassem freneticamente. Os guardas pareciam ainda mais
assustados. Ziguezagueando, Mephisto avançou, velozmente, por entre os
adversários. Por onde passava, o Príncipe das Trevas deixava um rastro de
fumaça negra que, rapidamente, aderia ao chão, assumindo a aparência de graxa.
—
Pronto... — Mephisto
murmurou satisfeito.
Ao terminar de falar, O Príncipe das Trevas contemplou,
de relance, sua arma na mão direita. Sangue escorria lentamente de sua lâmina.
Os corpos dos quatro guardas caíram no chão. O primeiro tinha um corte na
cintura, do lado esquerdo, que chegava até quase a coluna. O segundo tivera a
cabeça decepada. O terceiro tinha um machado cravado em sua face. O último fora
degolado.
“Bem...foi fácil...”.
Mephisto estendeu a mão esquerda na direção do terceiro
guarda. Em um instante, o machado se transformou em trevas e se reconstituiu na
mão direita do príncipe. Calmamente, ele andou até a beira da muralha, em
direção ao centro da cidade. Mephisto sorriu largamente ao contemplar novamente
o campo de batalha abaixo. O fogo nas construções brilhava ainda mais
intensamente sob o céu noturno. O Príncipe das Trevas respirou fundo.
—
Aproveitando o momento? —
Uma voz familiar perguntou.
“Ora só...”.
—
Não conseguiu tanto tempo longe de mim, hein? —
Mephisto, sem se virar na direção do recém chegado, perguntou.
—
Talvez. — O homem riu
baixo.
O Príncipe das Trevas ergueu os machados em direção a
lua, quase como um alongamento, e sorriu.
—
Bem...eu já volto. —
Disse e, então, olhou para trás rapidamente. O homem com quem ele falara
trajava uma armadura completamente negra. Sua pele branca contrastava com os
longos e lisos cabelos cor de ébano. Apesar do rosto jovem, sua expressão séria
revelava os horrores que ele já havia presenciado. Entretanto, a característica
mais marcante era, certamente, o seu olhar imponente, composto por dois olhos
inteiramente vermelhos e penetrantes. —
Tente não se preocupar demais, Tristan.
O guerreiro das Trevas sorriu.
—
Tentarei. — Ele
respondeu. — Mas,
sinceramente, eu estou mais preocupado com esses pobres seguidores da Luz. Eles não têm chance de sobreviverem e nem
sabem disso.
Mephisto riu.
—
É...verdade. — Ele
concordou sorrindo e, rapidamente, voltou a olhar para o campo de batalha.
“Ah...”.
—
Restam quatro Demônios, pelo que eu estou vendo. —
Disse Tristan. —
Melhor você se apressar. Não creio que deixar todos eles morrerem seria muito
bom para sua reputação. —
Ele gargalhou. — Por
outro lado, você é o filho de Nidhogg. Não creio que algo possa acabar com sua
reputação. — O
guerreiro coçou a nuca. —
Ah...enfim...vá logo. Eu consigo ver nos seus olhos que você não agüenta mais
esperar.
Mephisto assentiu com a cabeça. Rapidamente, suas asas
surgiram. Ele ascendeu no céu da noite e, rapidamente, voou em direção ao meio
do caos do campo de batalha.
sábado, 12 de novembro de 2016
A Rainha Vermelha, Capítulo 4
Capítulo 4
Não havia uma estratégia muito bem definida. Pelo menos, não
havia necessidade de ter uma.
A Inquisição havia acabado de tomar o prédio abandonado. Uma
fábrica há tempos; agora, nada mais que um conjunto de salas e corredores
empoeirados. Os soldados iam de um lado para o outro, carregando caixas com
mantimentos e armamentos, fortificando barreiras, montando seu sistema de
segurança, organizando-se como podiam. A base ficaria inteiramente funcional
dentro de algumas horas. Tempo que não tinham e nem sabiam.
O ronco dos motores veio então. Dezenas de carros vinham do
horizonte. Eles surgiam de todas as direções, estremecendo a terra seca sob
seus pneus, assustando os calangos para fora da estrada, levantando uma densa
cortina de poeira por onde passavam. Em poucos instantes a base estava cercada.
Homens e mulheres saíram dos carros. Todos com armas
pesadas. Nenhum com a intenção de economizar munição.
O tiroteio começou. Rajadas de metralhadoras gritavam, quase
em uníssono, aniquilando os soldados fora da base. Granadas voavam para além
dos muros da velha fábrica, explodindo junto aos desafortunados que estavam no
pátio térreo. Atiradores de elite matavam os que se julgavam seguros, agindo
protegidos pelas barreiras de metal que eram seus carros.
A Inquisição podia ter sido surpreendida, mas não ficaria
assustada. Não sob as ordens de seu comandante.
As medidas de contra-ataque foram logo ordenadas. Grande
parte do contingente dos soldados se mobilizou para as janelas da base, abrindo
fogo contra os inimigos abaixo. Gideon ordenou a execução imediata de qualquer
invasor no território, permitindo o uso de quantas granadas julgassem
necessárias. As unidades remanescentes da Inquisição tentavam se organizar
dentro da base, posicionando-se em locais que pudessem realizar emboscadas
facilmente. A mente por trás da defesa da base deveria ser defendida a todo
custo.
A Rainha soprou uma baforada de fumaça para fora da janela.
Ela ainda estava dentro do carro blindado em que viera. Junto dela, Alexander e
o motorista, um sujeito conhecido como Lince, aguardavam pacientes pelas
ordens.
—
Hm... — A Rainha
Vermelha ouvia a sinfonia de tiros e explosões que recheava o ar, apenas
aguardando o momento certo. Então, socou de leve o próprio abdômen,
certificando-se novamente que seu colete de kevlar estava sob o terno. —
Só mais alguns instantes...
Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis segundos. Esse foi o
tempo que se passou até que uma explosão, significativamente maior que as
anteriores, estremecesse o chão. Outras duas vieram então, uma após a outra.
—
Esse foi o sinal. — A
rainha anunciou e, então, levou uma mão até o bolso. De lá, retirou um velho
soco inglês feito de bronze. Nele, lia-se a inscrição Ambrose. Ela abriu um sorriso confiante ao contemplar o amuleto da
sorte que carregava a mais de duas décadas.
— É... — Ela guardou o antigo
presente do pai. — Agora
é a hora.
O Lince assentiu, saindo rapidamente do veículo com um fuzil
em mãos. Alexander foi o próximo a sair, carregando um rifle de precisão nas
costas, seguido pela Rainha e sua submetralhadora.
Os três podiam ver claramente dali: um rombo havia sido
aberto em uma das paredes. Aquela era uma das três novas entradas para a base
inimiga. Tudo graças aos seus especialistas em demolição e aos seus explosivos
plásticos.
—
Eles nunca decepcionam. —
A Rainha abriu um sorriso discreto e, então, olhou para o alto. Seu olhar se
perdeu. Parecia contemplar as nuvens escuras no céu quase como algo surreal. — Não chove faz um tempo...
É quase como...
O som de um tiro calou sua boca. O projétil, entretanto, não
a acertou. O alvo foi o peito de Alexander. Com exceção de um novo buraco feito
em sua camisa velha, nada aconteceu com o gigante.
A Rainha recobrou sua atenção. Ela parecia se distrair com
coisas que, para outros, são mundanas quando estava nervosa. Tentaria não
repetir o erro.
O atirador deveria estar confuso, tentando entender como o
alvo, desprotegido, não havia caído morto. A Rainha deveria usar bem esse
tempo. Então, deixou sua submetralhadora de lado. Pegou rapidamente o rifle que
Alexander carregava. Aproximou um olho da luneta da arma. Olhou para onde o
tiro havia partido. Encontrou seu alvo. Respirou fundo. Prendeu a respiração.
Mirou na cabeça do desgraçado. Apertou o gatilho.
Quando sua vítima caiu morta, a Rainha exalou o ar que
prendia. Sentiu, então, o sangue correndo mais rápido por suas veias. Fazia
algum tempo que ela não atirava com um rifle daqueles. Ficou feliz de ver que
não tinha perdido o jeito.
A Rainha colocou a arma de volta nas costas do gigantesco
companheiro. Agora, precisaria de algo que atirasse mais rápido. Com a
submetralhadora em mãos, ela avançou lado a lado com o Lince, ambos disparando
rajadas de balas fervorosas, ambos protegidos pelo tanque desenfreado que era
Alexander
Não demorou muito para que o trio chegasse até a entrada que
haviam avistado. Sem hesitarem, adentraram a base inimiga descarregando as
balas remanescentes de seus cartuchos. A chegada deles era esperada após a
explosão. Foi isso o que pensaram. E pensaram certo. A emboscada de quatro
soldados foi rapidamente neutralizada pelos disparos.
Enquanto recarregavam suas armas, os dois atiradores deram
uma última olhada para trás, certificando-se que ninguém os seguia, que ninguém
os vigiava. Seus olhos então se arregalaram ao ver um objeto esverdeado, tão
grande quanto o punho de um adulto, cruzando o céu rapidamente até onde
estavam.
O tempo parecia desacelerar à medida que a granada se
aproximava. O que parecia minutos se passou e o artefato ainda pairava no ar. O
grupo já devia ter corrido para longe. Talvez ainda fosse possível se salvar se
agissem logo.
—
Alexander! — A Rainha
bradou.
Então, o gigante agiu pelo grupo. Ele ergueu o braço maciço
para o alto, agarrando a granada no ar.
Perplexo, o soldado da Inquisição observou a cena. Não
conseguiu nem esboçar reação quando o artefato voltou em sua direção, com a
velocidade de uma bala de canhão, chocando-se contra seu peito e o derrubando
suas costas contra o chão.
Ninguém precisava assistir a cena para saber o final dela.
Atordoado no chão, o infeliz soldado conheceu seu fim quando a granada explodiu
sobre seu corpo débil.
Com a certeza de
que não estavam sendo mais perseguidos, os três prosseguiram pela velha
fábrica.
Tendo a dianteira
protegida pelo gigante, a dupla armada parecia avançar quase despreocupada.
Quando Alexander avançava, atacava os soldados da Inquisição sem hesitar,
arremessando-os contra paredes, quebrando seus ossos como se fossem de vidro,
jogando-os como projéteis contra os demais inimigos, provocando o pânico de quem
via a cena. Muitos largavam as armas no chão e corriam por suas vidas. Poucos
mantinham a calma para tentarem atirar contra os outros dois membros do trio
que, com frieza, fuzilavam os adversários remanescentes.
Uma. Duas Três.
Quatro. Cinco. Esse foi o número de emboscadas consecutivas fracassadas contra
o pequeno grupo. Eles pareciam invencíveis. Sentiam-se invencíveis. Mas não
eram.
Três logo se
tornaram dois. Um deslize mínimo foi o suficiente para que o Lince voltasse a
se enxergar como um mortal. Após um tiro abrir um buraco profundo em sua coxa,
ele sabia que não conseguiria mais acompanhar a Rainha e Alexander. Sem querer
parecer fraco, o homem manteve sua arma em mãos e pediu para que os dois fossem
em frente, sem saber se sobreviveria ao sangramento. Disse que ficaria ali até
alguma ajuda chegar. Prometeu matar qualquer inimigo que por ali passasse. Sua chefe
não discordou da decisão. Ela logo partiu com Alexander.
Mais uma. Então
duas. Enfim outras três emboscadas sobrevividas. Todas usando a mesma tática.
Agora, ainda mais efetiva. A dupla conseguia compensar um atirador a menos com
seu entrosamento. Era algo que não conseguiam explicar direito. Leitura
corporal. Pressentimento. Sorte. Tudo parecia influenciar a performance dos
dois, tudo os deixava mais fortes. Nenhum dos dois morreria enquanto estivessem
juntos.
Então, chegaram
ao último andar.
A Rainha foi
saudada por um sopro de ar gélido, algo que pareceu tirar o calor de todo seu
corpo. Olhou para o alto, através de um grande buraco no teto, em direção ao
céu nublado acima. Não sabia dizer o motivo do calafrio, uma ventania fria
antes da chuva ou um verdadeiro mau pressentimento. Talvez os dois? Não
importava. Decidiu ignorar e seguir em frente.
Mais uma
emboscada sobrevivida sem problemas e sem surpresas. Aquilo deveria ter a
acalmado, ter provado a si mesma mais uma vez que não seria derrubada por nada nesse
mundo. Mas não. Seu coração batia mais rápido do que antes, mais rápido a cada
instante. Seu corpo só relaxaria quando a maior ameaça estivesse morta diante
de seus pés.
Uma porta
fechada. Lá, bem no final do corredor que estavam. Era velha, podre, quase
caindo das dobradiças. A Rainha poderia a derrubar se precisasse, sem pedir pela
ajuda a Alexander. Mas acabou não precisando. Ela estava destrancada. Precisou
apenas de um giro na maçaneta e um leve empurrão. Pronto. Assim foi aberta.
Após emitir seu
longo e estridente rangido, a porta revelou uma nova e decrépita sala. Mas a
dupla não entrou de imediato.
Passos. Poucos,
quase inaudíveis. Mas eram passos. A Rainha tinha certeza. Alexander tinha
certeza. Por isso a dupla hesitou, por isso se voltaram para trás e aguardaram
por algo, ou alguém. Mas além do relativo silêncio aconteceu.
Após alguns
segundos, ficou claro que nada aconteceria, não enquanto estivessem ali
parados. Por isso resolveram seguir em frente. Suas guardas, é claro, não
baixaram.
Aquele deveria
ser o ponto mais danificado de toda a velha fábrica. Não havia praticamente
mais teto, a chuva logo banharia o salão como já tinha feito inúmeras vezes
antes. As paredes pareciam ter sido corroídas pelo tempo, débeis, prontas para
ceder se forçadas mesmo que pouco. O chão rangia a cada passo que recebia,
soava ainda pior que a porta de entrada. O que era exatamente o lugar? Não
sabiam. E nem pensavam sobre.
Então, algo de
metal quicou levemente no chão, rolando ruidosamente até os pés da dupla. Do
tamanho de uma lata de comida, o artefato permaneceu inerte por uma mísera
fração de segundos. Então, houve um clique metálico.
É claro que
Alexander protegeria a Rainha. Conteria sua força quando a empurrasse,
mandando-a mais de um metro para trás mesmo assim. O gigante se jogaria sem
hesitar sobre o explosivo, formando uma concha sobre a lata de metal. Ele absorveria todo o impacto, impediria que
os estilhaços chegassem até a amiga como já havia feito antes. Ambos sairiam
ilesos mais uma vez.
Porém, não foi o
que aconteceu.
Não houve uma
explosão, apenas uma pequena ruptura. Uma parte da lata de metal se abriu,
exalando um gás adocicado. Subindo rapidamente, o veneno dispersou-se apenas o
suficiente. Em poucos instantes, o gigante estava envolto por uma densa nuvem púrpura.
Pela boca. Pelo
nariz. Pelos poros da pele. O gás penetrou o corpo de Alexander, mais e mais a
cada segundo. Desorientado, o gigante começou a cambalear, movendo seus braços
e pernas com uma fúria inútil. Seus pulmões se retorciam, ingerindo o veneno,
expulsando o ar de seus interiores, murchando e enegrecendo.
—
Não... — A Rainha murmurou
sem conseguir acreditar no que via. —
Alexander...
O guardião caiu
de joelhos. Suas outrora fortes mãos estavam agora trêmulas. Seus olhos, secos,
ardiam com uma cor rubra. Seu coração batia mais lentamente a cada instante que
se passava. No lugar de um urro estrondoso como de um urso, um suspiro
silencioso saiu de seus lábios. Então, o gigante entrou em colapso. Seu peito
atingiu o chão. Seus braços, inertes, não puderem impedir a queda.
Sua respiração
cessou.
Alexander não
mais se moveu.
—
Alexander... —
Ela chamou o amigo mais uma vez em vão.
—
Eu mal posso acreditar... —
Disse uma voz abafada. —
Não é que funcionou...?
Ela não sabia
dizer de onde as palavras vinham.
—
Achei que o grandão aí fosse invencível... — A voz continuou. — Mas, olha só, o pessoal do laboratório
tava certo...
Seus olhos se arregalaram
ao reconhecer a voz.
A Rainha levantou
com as pernas bambas. Seu coração batia quase para fora de seu peito. Suas mãos
tremiam, quase derrubando a arma.
—
Um gás tóxico sem igual... —
O comandante da Inquisição murmurou. —
Um veneno capaz de fazer qualquer ser vivo sufocar até seus últimos instantes
de vida...
A voz parecia se
mover. O desgraçado não permanecia parado por muito tempo. Ela sabia disso.
Mesmo assim, não era capaz de encontrá-lo.
—
Uma arma capaz de eliminar qualquer forma de vida... — Prosseguiu. — Bactérias, plantas, animais, pessoas... E
até aberrações como essa... Emissários do caos... Monstros vindos direto do
Inferno... Para lá devem retornar...
A Rainha apontava
a arma para o alto, movendo-a freneticamente de um canto para o outro. O canalha
estava acima dela, rondando-a como uma fera, decidindo qual seria o melhor
momento para o ataque.
Disso ela tinha
certeza. Ele estava ali. Certo? Talvez não. Talvez ele estivesse a enganando de
alguma forma. Talvez seus próprios sentidos a estivessem traindo. Suas
incertezas aumentavam e se fortaleciam a cada batida de seu coração inquieto.
—
Isso mostra como toda vida é efêmera... Frágil... Tão fácil de quebrar... — Ele riu. — Não concorda... Sophia?
Uma rajada de
tiros. Porém, nada a rainha acertou. Ela nem mesmo tinha seus olhos abertos no instante.
E por um momento, pensou que seria melhor não mais abri-los.
Seus dedos
tremiam. Suas mãos tremiam. Seus braços tremiam. Seu corpo tremia. Não sabia
dizer se sentia medo. Não sabia se sentia raiva. Não sabia mais o que esperar.
Andando pela sala
sem rumo, seus olhos acabaram por pousar sobre o corpo de Alexander. A Rainha
engoliu em seco. Sentiu um vento gélido atingir seu corpo novamente.
O que mais aquele
monstro podia usar contra ela? Se o desgraçado podia matar até Alexander, como pensar
em sair viva de lá? Por quanto tempo mais ele a torturaria? Por quanto tempo
ele continuaria seu jogo, lambendo seus lábios, aproveitando cada segundo do
desespero de sua presa?
A resposta veio
em seguida.
O som veio de
trás dela. O rangido agudo do chão se somou ao estrondo grave da aterrissagem
do predador.
Então, o tempo entrou
em estado de torpor.
A Rainha se
voltou para trás. Seu dedo não conseguiu apertar o gatilho a tempo. A arma foi
arrancada de suas mãos. Antes que pudesse reagir, a coronha da arma foi de
encontro com sua cabeça. Um baque surdo. O golpe a deixou desorientada por um
segundo. Quando percebeu, uma mão se lançou até seu pescoço, agarrando-a com
destreza, jogando-a contra uma parede, sufocando-a com prazer.
Aos poucos, a
visão da Rainha pareceu conseguir focar no agressor. A roupa blindada era
cinzenta, reforçada como uma armadura. Todo o corpo era coberto, incluindo o
rosto, fazendo-o parecer ainda menos humano. Nas costas, carregava uma arma:
uma metralhadora que, se tivesse sido usada, já teria tirado a vida da presa.
Na cintura, uma faca simples, afiada apenas o necessário: um novo instrumento
de tortura para brincar com a vítima.
—
Fazia tempo que eu não fazia isso contigo... — O monstro riu. — Apertar esse seu pescoço, sentir seus
ossos rachando na minha mão, ver você perdendo os sentidos bem diante de meus
olhos... Mas... —
Ele analisou a presa calmamente. —
Você não parece estar com tanto medo... Não como da última vez... Hm... Por que
será...? Será que você ficou mais durona...? Imune ao medo...? — Sua própria risada veio em seguida. — Não... Improvável...
A Rainha foi
solta. Suas pernas fracas cederam, caindo sentada perante o predador. Ela nem
conseguia pensar. Tinha que recuperar o ar perdido, então o fez. Arfando,
parecia ter se esquecido de toda a cena por um instante.
Então, algo a
trouxe de volta para a realidade. Era o som de alguma coisa acertando o chão de
madeira. A Rainha olhou lentamente na direção do objeto. Era a máscara do monstro.
—
Sophia... — Ele cantou o nome.
— Olha pra cá,
Sophia...
A Rainha olhou
para baixo, tentando desviar o olhar, evitando o que sabia que estava atrás da
máscara. Mas não tinha como fugir.
Dedos revestidos
de metal apertaram seu rosto, segurando-a pela mandíbula, apertando-a com
força, forçando-o para onde olhar.
Os olhos de
Sophia, então, encheram-se de medo como não acontecia em anos.
Um sorriso largo que retorcia o rosto. Dentes brancos que
mais pareciam presas. Olhos azuis que emitiam um brilho doentio. Um riso
maníaco que se deleitava com a cena.
—
Medo... — Gideon
Allard murmurou. —
Medo verdadeiro... Medo incontestável... —
Ele gargalhou. —
Perfeito... — Sua
faca se aproximou do rosto pálido da presa. —
Agora sim... — O
toque da lâmina gélida fez Sophia tremer. —
Agora sim posso começar a me divertir... Me divertir como não faço há anos...
quinta-feira, 10 de novembro de 2016
Anúncio 39
Sobre o poema "O Bicho Papão"...
Não sei se vou continuar. Pelo menos, não na forma atual, escrito como um poema.
Vou deixá-lo de lado. Por ora. Posteriormente o retomarei, com toda a atenção que a história merece, escrevendo-o como estou acostumado, isso é, em prosa.
Creio que assim será melhor. Escrever a história como uma poesia foi um experimento. Foi interessante. Mas creio que estou deixando a desejar na qualidade. Por isso, por enquanto, peço que deixem "O Bicho Papão" em seu canto.
E sobre a Rainha Vermelha...?
Ela retornará. Nesse final de semana. Aguardem.
Até lá!
Não sei se vou continuar. Pelo menos, não na forma atual, escrito como um poema.
Vou deixá-lo de lado. Por ora. Posteriormente o retomarei, com toda a atenção que a história merece, escrevendo-o como estou acostumado, isso é, em prosa.
Creio que assim será melhor. Escrever a história como uma poesia foi um experimento. Foi interessante. Mas creio que estou deixando a desejar na qualidade. Por isso, por enquanto, peço que deixem "O Bicho Papão" em seu canto.
E sobre a Rainha Vermelha...?
Ela retornará. Nesse final de semana. Aguardem.
Até lá!
segunda-feira, 7 de novembro de 2016
Poema 1 - Parte 4
Não me parecia possível
Afinal, nada eu estava fazendo
Era realmente incrível
O quanto ela estava crescendo
Mais encantadora a cada dia
Minha protegida se tornava
Eu já a via como minha cria
E a mim ela já amava
Nada parecia ser capaz de a derrubar
Nem mesmo quando seus pais se afastaram enfim
Era algo impossível de se evitar
Algo previsível que já havia anunciado seu fim
A doce garota dormia em paz
Quando a noite chegava
Sem saber que o que era voraz
E que o caótico a habitava
Noite após noite eu a defendi
Das criaturas vis que se arrastavam até sua cama
Inquebrável eu sempre venci
Com garras afiadas e uma alma como uma chama
Eu não podia fingir que era normal
Aquilo que eu fazia com tanto vigor
Matar aqueles que eu já vi como igual
Para manter meu cargo de protetor
Foi algo que eu acabei tendo que aceitar
Algo que rapidamente se tornou suportável
As negras vidas que eu tive que ceifar
Eram pelo bem daquela criança tão adorável
Porém, uma coisa eu ainda não sabia
Que a noite abrigava demônios maiores que eu imaginava
Monstros que se camuflam durante o dia
Uma espécie de besta que apenas a destruição desejava
quarta-feira, 2 de novembro de 2016
A Rainha Vermelha, Capítulo 3
Capítulo 3
Ela acordou gritando.
A Rainha levou as mãos ao rosto. Sentiu seu suor escorrendo.
Percebeu sua respiração arfante. Ouviu seu coração acelerado. Urrou enraivecida
em seguida.
Foi um pesadelo que a tirou de seu sono. Mas não foi
qualquer pesadelo. Foi praticamente um flashback, um coquetel feito com os
fragmentos de memórias amargas, uma sequência de slides que retratava o mesmo
rosto tantas vezes.
Cabelos negros penteados para trás. Olhos azuis profundos.
Nariz fino e empinado. Dentes brancos perfeitos. O sorriso, porém, era contido.
O jovem parecia esconder algo, segurar algo. Segurar ele mesmo.
A Rainha balançou a cabeça de um lado para o outro, tentando
afastar a imagem de Gideon Allard de sua mente. Em vão.
Ela sentia seu coração batendo cada vez mais rápido, cada
vez mais enfurecido. Seu corpo começava a tremer. Sua visão se tornava
embaçada. Seus punhos se cerraram. Seus dentes trincaram.
Gideon Allard. A Rainha o queria morto. Mais que isso. Ela
queria matar o desgraçado. Quebrar lentamente o corpo dele. Fazê-lo sofrer nos
últimos instantes de vida. Fazer um favor ao mundo e o livrar de um pária
daquela raça. Queria descontar toda a sua raiva, toda a dor que sente e sentiu,
naquele rostinho nojento. Queria deformar tanto aquela face arrogante que nem
mesmo a família do verme pudesse reconhecer o cadáver quando seu trabalho
estivesse finalizado.
A porta do quarto se abriu. A Rainha voltou seu olhar para
quem entrava. Era Alexander. O gigante dormia no mesmo quarto que sua
protegida, numa cama modesta, perto da porta. No primeiro momento, a Rainha não
sabia o porquê do amigo ter saído do quarto. Então, ela viu. Em uma mão, ele
carregava um engradado. Eram cervejas, seis no total, de sua marca favorita.
—
Sempre pensando em mim... —
A Rainha abriu um sorriso e se ajeitou na cama, sentando-se no colchão, com os
pés tocando o piso. —
Não é, grandão?
Alexander assentiu e, com seus passos pesados, andou até sua
chefe. Sentando-se ao lado dela, pegou duas garrafas do engradado e colocou as
restantes no chão. A Rainha se encostou no braço do gigante, respirando fundo.
Inspirando. Expirando. Com calma. Até relaxar. Então, abriu sua primeira
cerveja e tomou um gole.
A Rainha pensou em seu pai, Martin, e na antiga vida deles.
Lembrou-se de como era a Capital, ou melhor, de como eram os lugares que podia frequentar
lá. A cidade não era uma utopia como muitos de fora dela imaginavam. Haviam
abismos sociais. Crimes aconteciam. Era por isso que precisavam de seus
policiais. Porém, o povo, em sua totalidade, considerava-se superior ao resto
do mundo. E aquilo sempre a enojou.
Mais um gole de cerveja. Então, pensou na origem de tudo
aquilo, da divisão do mundo até se tornar o que é hoje. Lembrou-se das aulas de
história. Lembrou-se das teorias da conspiração que lia na internet. Lembrou-se
até mesmo as palavras do próprio pai sobre o assunto. Coisas que ela não
pensava há tanto tempo.
Um gole rápido. Concentrando-se, quase podia se lembrar das
palavras exatas usadas pelos professores. Tantas vezes falaram sobre a Guerra
Infernal, sobre o surgimento de humanos com dons dignos de seres mitológicos,
sobre o banho de sangue que foi o conflito entre normais e anormais.
Popularizados como Malditos, os tais super humanos foram derrotados
por dois motivos principais.
O primeiro foi a questão numérica. Eles estavam em
desvantagem. Eram, e ainda são, a minoria na sociedade. Algumas centenas de
soldados contra cada um deles. A grande maioria não era tão poderosa.
O segundo fator foi a resistência. Por mais que pudessem
cuspir fogo, controlar ventanias, invocar relâmpagos ou causar terremotos,
balas causavam tanto dano neles quanto em pessoas comuns. Tiros na cabeça os
eliminavam sem problemas. Bombardeios dizimavam dezenas ao mesmo tempo. Uma bomba
atômica extinguia milhares em uma fração de segundos.
No final, os Malditos remanescentes se renderam, fugiram, esconderam-se.
As grandes cidades construíram muralhas para se proteger de eventuais ataques
e, também, para manter as ameaças sobrenaturais do lado de fora, mandando a
Inquisição para exterminar os monstros sobreviventes. Ou era o que diziam.
Poucos habitantes da Capital não eram alienados e conseguiam
pensar por si só, questionando essa história, pelo menos, em alguns aspectos.
As conclusões eram vistas pela maioria da população, é claro, como bobagens.
Mas os mais inteligentes sabiam que muitas pessoas além dos muros não tinham
super poderes, não representavam uma grave ameaça. Porém, todos eram pobres. A
parcela da população considerada mais grosseira, mais burra, com maior
tendência à criminalidade. A divisão era apenas para afastá-los dos mais ricos.
E Martin fez questão de explicar isso para a filha desde cedo.
Quando a Rainha percebeu, sua garrafa estava vazia. Antes
que pudesse estender o braço para pegar outra, Alexander já havia feito isso
por ela. Ele pegou duas novas cervejas, uma para a amiga e uma para si, e deixou
as que acabaram no chão, junto ao engradado.
Um novo gole a refrescou. A Rainha, então, olhou para seu
protetor silencioso. Um Maldito, como
o próprio pai havia dito. Aquele termo a enraivecia. Era puramente pejorativo.
Mais uma forma que o governo criou para incentivar o ódio contra aquela raça
apenas por terem nascido diferentes. E ela sabia que não era a primeira vez que
aquilo acontecia na História.
Segundo gole. Pensar no caso de alguém tão próximo quanto
Alexander era especialmente revoltante, doloroso até. Primeiramente, o gigante
nunca foi capaz de falar. Com exceção dos grunhidos e rugidos, não podia se
expressar. Aquilo já era um problema grande o suficiente por si só. Some isso
ao fato do companheiro ter nascido em algum fim de mundo qualquer e que ele
literalmente teve que lutar, muitas vezes sozinho, para sobreviver e a tragédia
que era sua vida fica clara.
Um novo gole. A Rainha olhou com carinho para Alexander. O
amigo só sobreviveu tanto tempo graças a sua resistência e a sua força, ambas
descomunais. Se fosse outro Maldito, sozinho, já teria morrido em uma viela
qualquer com um tiro na nuca. Mas aquilo nunca aconteceria com o gigante. Ele
já havia sobrevivido a mais surras, facadas, tiros e explosões que ela podia
imaginar.
O quarto gole foi rápido. Ela respirou fundo. Sentiu o ar
preencher os pulmões. Segurou um pouco. E soltou enfim. A Rainha se sentia
confortável junto ao amigo, protegida como se ainda tivesse dezessete anos,
morando em casa com o pai, só tendo que se preocupar com os típicos problemas
de adolescentes. Foi uma época boa. Uma época que ela não soube dar valor. Uma
época que chegou ao fim em poucos minutos. Tudo graças a um monstro. Um monstro
que não tinha nada de sobre-humano. E era exatamente isso que a aterrorizava.
Gideon Allard. Mais uma vez ela pensou no nome. Mais uma vez
se lembrou daquele rosto.
A Rainha rosnou. Com um longo gole, terminou sua cerveja.
Alexander logo providenciou a próxima para ela e para si.
Apenas uma adolescente. Não sabia nem o que faria da vida.
Não tinha a mínima ideia. Inteligente, mas não tanto quanto achava que era.
Bela, mas não sabia os problemas que a beleza atrairia. Assim a Rainha podia se
descrever na época. Ainda melhor, se fosse para se resumir em uma palavra,
provavelmente escolheria inocente.
Afinal, não sabia o que estava por vir. Não entendia o quão frio o mundo
poderia ser uma vez que não havia sentido na pele suas presas geladas.
Era noite. O céu estava limpo. A chuva não atrapalharia os
planos pro fim de semana. A jovem Sophia sairia com as amigas. Iria para a
festa que tanto queria. Já havia planejado tudo há semanas. Sabia como iria.
Como voltaria. O que lá faria. E sabia que poderia se envolver com um homem de
classe, ainda mais quando comparado com os velhos pretendentes. Era uma dos
poucos eventos da Capital que alguns membros da tão invejável elite socializavam
com a plebe. A garota só esperava não terminar com algum porco arrogante. Mal
sabia ela que acabaria nas mãos do diabo.
Demônios enganam. Demônios seduzem. Demônios possuem. Isso
tudo com suas máscaras. E Gideon não era diferente. Bem vestido, perfumado, com
pose de galã. Quando ele ofereceu um drinque para Sophia, a garota pensou em
dar uma chance para ele. A jovem parecia encantada pelo jeito misterioso do
novo pretendente.
Começaram a se conhecer. Poucas palavras foram trocadas.
Então, o nada veio. Um vazio, uma tela em branco no lugar de onde deveria estar
a memória.
Sophia nem se lembra de como saiu da festa. Nem se lembra de
ter visto as amigas. Só percebeu, dias depois, que havia algo em seu drinque.
Os poucos fragmentos de memória que sobreviveram foram
justamente os piores. Prova de que o destino tem um senso de humor desgraçado.
Sophia apenas se lembrava do sorriso de Gideon alargando-se, esticando e
retorcendo o rosto. Os dentes como presas. Um olhar doentio. Um riso maníaco.
Dedos como garras rasgando suas roupas, apertando seu pescoço, estrangulando-a,
deixando hematomas por todo seu corpo dormente, marcas que só veria no dia
seguinte. A língua percorreu todo seu ser, traçando curvas e mais curvas, saboreando
a presa que só conseguia mover os olhos, tentando desviar o olhar, rezando para
que as lágrimas continuassem embaçando sua visão. Seus gritos não saiam de sua
garganta, não como gritos pelo menos, saindo fracos e impotentes, suspiros e
gemidos apenas, para o deleite do demônio que se excitava mais e mais, rindo freneticamente
enquanto apreciava toda a cena nefasta que criara.
A Rainha deu o primeiro gole na terceira garrafa, virando-a
e bebendo a cerveja de uma vez.
Ela se lembrava do dia seguinte, de acordar nua num motel
barato. Quando as memórias começaram a vir, ela vomitou. Então, começou a chorar.
A pobre Sophia não sabia o que fazer. Sabia que não havia como concertar
aquilo. Sabia que não havia como voltar no tempo, impedir que aquilo
acontecesse. Sabia que aquele pesadelo tinha sido a sua primeira vez.
É claro que ela iria até o pai, o policial. É claro que ele
ficaria revoltado com o que havia acontecido. É claro que ele faria tudo ao seu
alcance para ajudar sua filha e punir o diabo que havia feito aquilo ela. Mas a
realidade era outra.
Allard. Uma das mais ricas e influentes famílias da Capital.
Melhor dizendo, uma das donas da
Capital. A palavra deles era lei. Se quisessem silenciar o departamento de
polícia e todos os tribunais da cidade, assim o fariam. E o fizeram. Ninguém
tocaria no jovem Gideon. Não importa o crime, principalmente contra uma reles
filha de um policial. O desgraçado se safou. E sabia que se safaria mesmo antes
de drogar Sophia.
Não havia mais nada a ser feito. Martin não poderia fazer
nada. Perderia seu emprego e até a sua vida caso tentasse alguma loucura. E
Sophia sabia disso. Então, ela fugiu. Sem olhar para trás.
Muito havia acontecido desde então. Uma garota da Capital
correu às cegas em direção a um mundo hostil e desconhecido. Sua única certeza
era a de que não poderia viver mais onde estava. Tinha a tola esperança de que
algo melhor a aguardava, que algo bom tinha que acontecer, uma fora de compensação
talvez.
Um anjo, então, apareceu. Alguém que a salvaria da morte
incontáveis vezes. Alguém que possibilitaria que seu reinado se formasse. Seu
primeiro súdito. Seu primeiro aliado. Seu primeiro amigo num mundo sem dó. Um
homem que também precisava ser salvo.
A Rainha Vermelha abraçou Alexander o mais forte que podia.
O gigante retribuiu o gesto, sempre atento a sua força, sempre com carinho.
Era ali que ela se sentia confortável. Era daquele jeito que
ela se sentia invencível.
—
Ah, Alexander... —
Sophia sorriu como só conseguia sorrir para o amigo. — Amanhã vai ser um grande dia... — Seus olhos brilhavam como
chamas. — Sangue
jorrará em homenagem à Rainha Vermelha.
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