As batidas
na porta o arrancaram de seu descanso.
Com o coração na boca, o homem se
levantou do seu sofá com um salto, derrubando o livro e os óculos que
repousavam sobre o seu colo. Antes que pudesse tentar recolher-los do chão,
entretanto, mais batidas atingiram sua porta.
— Por favor! — Gritou a voz de um jovem, abafada
pela chuva do lado de fora. — Abra a porta! Por favor! Preciso de ajuda...!
O senhor, de pouco mais de sessenta
anos, permaneceu parado por alguns instantes, tentando raciocinar. Estava ele
sonhando ainda? Não se lembrava de muita coisa antes de pegar no sono folheando
seu livro mais cedo naquela noite. Com certeza não saberia dizer que horas eram
naquele exato momento. Contemplou a escuridão do lado de fora pela janela por
uns poucos segundos. Teria passado de meia noite? Talvez. Mas aquilo pouco
importava. O que era realmente era intrigante para ele era o fato de haver
pessoas batendo em sua porta, afinal, vivia afastado de tudo. Longe do resto da
cidade, longe de farmácias, mercados e parques. Longe das pessoas. Perto apenas
de uns poucos quase intocados. Vivendo como sempre gostou.
— Tem alguém aí? — A voz perguntou, persistindo com as
batidas frenéticas contra a porta. — Por favor... —Suspirou — Se tiver alguém aí... Precisamos de
ajuda...
Seja quem quer que fosse, estava
desesperado. Perdido talvez? O senhor tentava imaginar como alguém vinha parar
naquele fim de mundo. Isso também excluía a possibilidade de ladrões ou algo do
gênero. Aquele lugar estava quase fora do mapa. E, também, por que ladrões
bateriam em sua porta? Talvez alguém viajasse pelo interior do país e sofrerá
algum acidente? Algum tipo de problema mecânico no carro seria uma
possibilidade.
Por fim, cedeu à curiosidade. Recolheu seus óculos e colocou-os.
Andou até a mesinha de centro da sala e pegou seu antigo canivete. Não sabia se
precisaria usá-lo. Preferia que não tivesse, mas não machucava tê-lo à mão.
Então, calçou seus chinelos e se dirigiu até a porta de entrada.
Ao destrancar a porta, as batidas cessaram. Por um momento, o
homem hesitou em girar a maçaneta. Seu coração palpitou mais rápido. Um
sentimento antigo despertando? Não. Não se deixaria levar. Pelo menos, era o
que pensava. Enfim, sacudiu a cabeça, como se mandasse os pensamentos para
longe, e abriu a porta.
Em sua frente, lá estavam. Dois jovens pálidos, magros e
encharcados pela chuva. O rapaz estava em pé, com um misto de medo e
preocupação estampado em seu rosto.
Deitada contra a parede, com o rosto sobre os joelhos, estava a garota.
— Senhor, por favor... — O garoto suplicou. — Nos ajude...
— Mas é claro... — O homem guardou o canivete no bolso.
— Podem entrar...
O rapaz ergueu a jovem do chão,
colocando o braço dela por cima de seu pescoço, carregando-a para dentro da
casa com pressa até deitá-la no sofá onde seu dono até pouco cochilava.
— O que aconteceu? — O senhor indagou. —
Como vocês vieram parar
aqui?
— Viajávamos juntos... — Ele respondeu, ajoelhando-se ao lado
da garota, segurando firme sua mão. — Minha namorada e eu... Mas então... — Ele respirou fundo, voltando seu
olhar para o senhor. — Ela adoeceu...
— Tão de repente assim?
O garoto assentiu.
— Entendo... — O senhor se ajoelhou ao lado da
rapaz, levando uma mão à testa da garota deitada. Então, como se levasse um
choque, trouxe a mão de volta para perto do corpo. — Meu deus...
— Ela está fria como gelo... — Comentou o rapaz. — Quase como se estivesse...
— Morta... — Completou. — Porém... Ele ainda respira.
— Sim... — O jovem suspirou. — Nunca vi ninguém ficar assim, ficar
doente desse jeito... — Lágrimas começaram a verter de seus olhos. — Eu não sei o que fazer...
— Ei. — O senhor levou suas mãos sobre os
ombros do rapaz e o olhou bem nos olhos. — Não precisa se desesperar. Vai dar
tudo certo, ok?
— Você consegue ajudar...? — Havia um fio de esperança na voz do
garoto.
O senhor o analisou. Olhou bem para
o rosto do garoto em sua frente. Sim, garoto
era o termo certo. Deveria ter não mais de vinte anos. Porém, era imaturo.
Ingênuo. Em frente a uma dificuldade com aquela situação, ele estava
desesperado. Realmente, havia um longo caminho até que pudesse ser chamado de
homem de fato.
— Mas é claro. — Ele não tinha certeza, mas precisava
parecer confiante, passar aquela confiança para o garoto. — Nada que um chá de ervas não possa
sarar, não é? — Sorriu. — Tenho algumas ainda numa caixinha no armário da cozinha. Vou
preparar para ela em um instante, ok? Mas, agora... Você precisa trocar essas
roupas. Tomar um banho. Se enxugar pelo menos. E respirar um pouco também,
certo? Desacelerar esse coração só um pouco... Depois você se preocupa com sua
namorada. Eu cuidarei dela. E depois você me ajudará. Amanhã pela manhã iremos
para um hospital caso ela não melhore. Agora está muito tarde, o caminho está
muito escuro e a chuva pode piorar... Por hoje, fiquem na minha casa. Certo?
— Mas... — Ele olhou para a jovem inerte no
sofá. — Eu...
— Não se preocupe. — A voz do senhor soava firme. — Tudo dará certo. Confie em mim.
O jovem permaneceu em silêncio por
um breve momento. Então, um sorriso aliviado surgiu em seu rosto, assentindo enfim.
O homem podia sentir que o rapaz estava muito mais aliviado de não estar no
controle da situação, não tendo que tomar decisões importantes sozinho. Era
mesmo apenas um garoto. Porém, não o julgaria. Já fora daquele mesmo jeito
décadas atrás, ficando perplexo com as responsabilidades que surgiam. Chegaria
o dia em que ele se tornaria um homem também. Ou não. Não havia como prever.
Dependeria mais das atitudes do rapaz do que qualquer outra coisa. Mas havia
tempo.
Com passos apressados, o senhor
subiu as escadas, seguido de perto pelo jovem. Com rapidez,adentrou seu quarto,
abriu seu armário, retirou de lá uma toalha e um pijama limpos e os entregou
para o garoto.
— Muito obrigado. — Ele agradeceu com um sorriso sincero
no rosto. — Achei que... — Ele parou de falar, parando de sorrir.
— Não se preocupe. — O senhor retribuiu o sorriso. — E deixe para me agradecer quando sua
namorada estiver melhor.
O rapaz
assentiu e, então, foi guiado até o banheiro no fim do corredor.
O homem continuou
andando, descendo as escadas para, repentinamente, parar. Nos degraus da base
da escada, o senhor permaneceu, praticamente imóvel, até que pudesse ouvir o
barulho do chuveiro sendo ligado. Então, um sorriso largo, quase desumano, se
abriu em seu rosto.
Com passos rápidos, o senhor voltou
para a sala. Parado, logo na entrada, observou a garota deitada no sofá. Ficou
assim, por alguns segundos, apenas sentindo aquele sentimento que não sentia há
tempos. Sem o garoto por perto, não precisava esconder suas feições asquerosas.
Podia sorrir aquele sorriso demoníaco
que se contorcia a antecipação do prazer.
Lambendo os beiços, ele foi se
aproximando da vítima indefesa, saboreando cada momento. Sua excitação só não
era maior por não poder ver o desespero no rosto da jovem, por não ouvir seus
doces gritos de pavor, por não ter que correr pelos cômodos e pelos bosques
vizinhos atrás de sua presa.
Porém, isso poderia ser resolvido. Ah sim, como poderia.
Bastava cuidar dela por uma noite, não? Se fizesse isso, poderia se divertir
ainda mais no dia seguinte. Podia saciar uma vontade que não sentia fazia anos,
a vontade que o fez morar num lugar tão recluso, tão longe das outras pessoas e
das autoridades locais, tão fácil de se perder, tão fácil de nunca mais ser
achado.
Agora ao lado da garota, ele se ajoelhou. Seus dedos, então,
começaram a alisar a pele da jovem. Pouco importava o frio que sentia com o
toque. Sua maciez já atiçava a mente do seu predador, fazendo sua boca salivar.
Porém, ele não se deixava levar pelo transe daquele prazer. Sua guarda ainda
estava levantada. Afinal, ainda havia um problema a ser resolvido.
Com a casa em silêncio, era possível ouvir o som do chuveiro
ligado com perfeição. O garoto continuava no banho, mas não sabia dizer por
quanto tempo. Sua única certeza era que teria que se livrar dele antes de poder
se divertir de verdade com sua namorada. Então, levou a mão direita ao bolso e
pegou de volta seu canivete. Com a lâmina, veio um sabor nostálgico: a certeza
de que teria que matar naquela noite. Ele não conseguiu conter o riso de
felicidade
Ele pensou em se levantar, ir até as escadas, subir cada
degrau, seguir até a porta do banheiro e lá ficar aguardando o jovem. Fraco
daquele jeito, nem ofereceria resistência. Um único golpe seria o suficiente
para deixá-lo no chão sangrando até o seu fim. Seria um deleite. A mera ideia
de ver a jovem correndo pela casa, desesperada, apenas para se deparar com o
cadáver do namorado estirado no chão, caindo de joelhos com a cena, já excitava
o homem. Ele já podia se imaginar saboreando o salgado de suas lágrimas
enquanto retalha suas roupas e carne.
Era isso. O homem já tinha o seu plano traçado.
Sua mão esquerda alcançou o rosto da jovem indefesa, agarrando
a face abatida e trazendo-a para mais perto de si. Ele jurava que já podia
vê-la se contorcendo de medo. Com um sorriso largo, deu-lhe um beijo nos lábios
gélidos.
— Eu já volto, princesa... — Ele sussurrou enquanto deitava a
cabeça da garota de volta no sofá. — Você nem vai...
Sua boca estava aberta, porém, palavras cessaram de sair dela
por um instante. Algo chamou atenção do homem. Um detalhe no lado esquerdo do
pescoço da mulher. Duas marcas idênticas. Cicatrizes ainda da cor do sangue.
As luzes então se apagaram.
O coração do homem acelerou. Não havia sido nenhuma queda de
energia. Ele ouvira claramente o estralo, o barulho inconfundível do
interruptor sendo desligado.
Na escuridão, seus olhos arregalados apenas puderam
distinguir duas luzes vermelhas. Paralisado, lá o homem ficou até garras apertarem
seu pescoço e o erguerem para o alto. Com os pés balançando histericamente, o
predador tremia mesmo sem perceber que havia se tornado uma presa.
Um raio iluminou a noite. O clarão invadiu a casa, permitindo
que o homem pudesse ver, por um breve segundo, o monstro em sua frente. A pele
acinzentada. O corpo magro e musculoso. As longas asas escamosas nas costas. As
longas garras na ponta de cada dedo fino. As afiadas presas brancas que mal
pareciam caber naquela boca. O vermelho hipnótico dos olhos gélidos parecia ler
sua mente e alimentar-se de seus medos.
— Fico feliz que você tenha me deixado
entrar. — A voz do garoto não havia mudado. — Minha espécie não pode ir entrando
em casas alheias sem convite, sabe?
O homem soltou um grunhido abafado. Ele sentia a garra do demônio
espremendo seu pescoço, trincando seus ossos enquanto lutava para respirar.
— Desculpe-me por deixar esquecer o
chuveiro lá de cima ligado. — A criatura continuou, deliciando-se com o momento. — Eu já vou lá em cima desligá-lo, ok?
Enquanto isso... — Ele trouxe o homem para mais perto de si. — Vou te dar uns segundos de vantagem.
Antes que pudesse perceber, o homem já estava no ar, sendo
arremessado contra a própria janela. Ele sentiu a dor do impacto. A janela se
estilhaçava contra suas costas enquanto mais um clarão revelava a criatura da
noite. E toda a cena parecia passar lentamente, forçando a presa a sofrer com a
dor e o medo por todo o tempo que o predador achasse necessário.
O segundo impacto foi contra suas costas de novo. Desta vez,
contra o chão lamacento, embaixo da chuva, que afundou os cacos de vidro para
dentro de seu corpo. O rosto do homem se retorceu de dor. A tosse em seguida o
fez expelir sangue, quase engasgando com o espesso líquido vermelho.
O mais rápido que pôde, o homem tentou se levantar. A dor,
entretanto, o forçou a cair ajoelhado. Seu corpo inteiro parecia quebrado,
juntamente com seu espírito. Apoiando-se sobre seu próprio joelho, ele fez mais
um esforço para ficar de pé. Trêmulo, ele conseguiu, mas logo descobriu que
cada passo dado fazia sua carne estremecer com a aflição.
Sob a chuva que se tronava mais pesada a cada segundo, a
presa cambaleou até onde pôde. Ele via seu sangue sendo lavado pela chuva, mas
a dor não passava. Sentia que havia cortado uma artéria, sentia o sangue
escapando de seu ser. Mas, mesmo assim, persistiu até o limite de seu corpo,
até suas pernas não mais suportarem o peso de seu corpo. Então, o homem caiu
sobre a lama da estrada de terra.
Com a visão turva, ele mal pode distinguir a silhueta que se
aproximava. Entretanto, não era difícil saber quem era.
Quando a garra puxou seus cabelos, a presa encarou seu
predador uma última vez. Vendo o rosto repugnante que o fitava, lambendo os lábios,
saboreando um momento que ainda não havia acontecido, o homem respirou fundo. Vá em frente, pensou. Afinal, ele sabia
que merecia aquele fim.