O Pior Pesadelo
Não sou uma pessoa que costuma sentir medo, muito menos
entrar em pânico. O irreal nunca me afetou. Filmes de terror normalmente me
faziam rir. Relatos sobre psicopatas normalmente prendiam meu interesse,
entretendo-me de certa maneira, mas certamente nunca me aterrorizaram ou me
tiraram o sono. Porém, após a noite passada, sinto-me desconfortável, para
dizer o mínimo. Sinto um mal estar que não vai passar tão cedo, tenho certeza.
Acordei às cinco da manhã, suado, tentando me lembrar do que
havia acontecido. Aos poucos, as memórias voltariam.
***
Era só pra ser um grupo de amigos bebendo juntos.
Eric, James, Phil e eu, Matt. Não creio que até aquele dia
havíamos saídos todos juntos, apesar de todos sermos bons amigos. Sempre
acontecia algum imprevisto e um de nós acabava não indo ou, então, pessoas não
agradáveis para algum de nós estaria junto do grupo. Lembro que era impossível
sair com Phil e Mary, sua ex, ao mesmo tempo após o término do relacionamento.
Enfim, lá estávamos nós quatro, finalmente, em frente à
praia com toda a classe que moleques de dezoito anos desempregados podiam ter.
E, sim, isso significava que tínhamos um isopor cheio de bebidas baratas.
A cerveja era a única coisa que salvava. Eu as escolhi
afinal. Se eu fosse ficar bêbado, queria
ter um pouco de classe e, se possível, lembrar-me do que aconteceu naquela
noite no dia seguinte.
A noite passou rápido. Quando percebemos, as cervejas haviam
acabado, Phil já havia vomitado e James, que raramente bebia, estava mais
bêbado que todos nós juntos. Pelo menos, conseguimos rir bastante.
No final, eu fui o responsável por levar James até a casa
dele. Não por que a culpa era minha por ele ter ficado bêbado, mas eu era a
pessoa que morava mais próximo dele. Então, coube a mim andar junto com um
bêbado por mais de vinte minutos até o prédio dele (ele não queria pegar um
ônibus e eu não estava com vontade de insistir).
Foi engraçado, devo admitir. Eu nunca havia sido a escolta
de alguém bêbado, apesar de eu já ter sido escoltado uma vez ou outra.
Minha missão foi cumprida sem problemas, até onde eu me
lembrava. Eu só tinha que falar com James no dia seguinte para saber como ele
estava. Por ora, eu podia voltar tranquilo para casa.
Cansado, eu dormi poucos instantes depois de me deitar na
minha cama.
Então, tudo ficou confuso.
***
Eu acordei no chão de uma sala que eu me lembrava vagamente.
Lá, algumas outras pessoas estavam no mesmo estado deplorável no qual eu me
encontrava.
Minha cabeça doía, minha boca estava seca, meu corpo estava
encharcado de suor. O som de uma conversa em outro cômodo parecia um estádio de
futebol em dia de clássico. Ao levantar, quase vomitei. Claramente de ressaca,
eu saí da casa.
O sol parecia queimar os meus olhos enquanto tudo girava a
minha volta. Meus murmúrios de dor cessaram quando uma mão veio até meu ombro.
—
Matt! — Ele me
chamou. — Ainda bem
que está vivo!
Quando minha visão se normalizou, eu vi Brian, um amigo que
eu não via desde que ele havia se mudado.
— Cara...
— Eu murmurei. — O que aconteceu?
—
Uma das melhores noites de todos os tempos. —
Disse uma garota. —
Só.
Eu olhei para ela. Não fazia a mínima ideia de quem era.
Porém, vi que, com ela, estavam outras pessoas, incluindo algumas inusitadas.
Agatha estava lá. Até onde eu me lembrava, ela estava
fazendo intercâmbio. Como ela estava ali, agora?
John era a última pessoa que eu esperava ver lá. Até onde eu
sabia, uma festa regada à vodka barata, pelo cheiro das minhas roupas, havia
acontecido. Aquele moleque altamente religioso ali no meio não fazia sentido.
Então, outras pessoas, todas do mesmo grupo, vieram falar
comigo. Do jeito que elas falavam, nós éramos grandes amigos, comentando sobre
eventos da minha vida que eu contava para poucas pessoas. Perguntaram-me da
minha mãe que estava doente, da minha irmã que havia terminado a faculdade, do
meu novo gato de estimação. Tudo com um sorriso caloroso no rosto.
Após algum tempo, eu me virei para Brian e perguntei:
—
Você viu o James?
—
James? — Ele franziu
o cenho. — Eu não
acho que ele tenha vindo pra festa, mano...
—
Sério...? E o Phil?
—
Que Phil? O Phil Anderson?
—
É...
—
Nem sabia que vocês se falavam... Vocês trocaram uma ideia ontem à noite, foi
isso?
— Não... — Eu sacudi a cabeça para
os lados, sem entender o que acontecia. —
E o Eric?
—
Que Eric?
—
Eric Johnson.
—
Quem é esse?
Eu parei por um instante, olhando confuso para o rosto de
Brian. Ele me parecia sério. Não parecia uma das brincadeiras estúpidas que ele
fazia de vez em quando.
—
Eu tinha certeza que eu estava bebendo com eles ontem à noite... — Eu disse calmamente.
Então, percebi algo que eu deveria ter perguntado desde o começo. — Aliás... Como eu vim
parar aqui?
—
Cara... — Ele riu. — Eu devia ter cortado seu
álcool depois que a gente terminou aquela segunda garrafa... Mas não deu. Tava
muito bom ver você bêbado...
Brian continuou rindo enquanto eu só ficava mais confuso.
—
Eu também não queria ser chato com você depois que as coisas não deram certo
com a Amber. — Ele
disse, agora, um pouco mais sério.
—
Amber? — Indaguei. — A Amber? Amber Woods?
—
É. — Ele colocou a
mão no meu ombro. —
Você foi o que chegou mais perto de pegar ela, mano. Teria conseguido se a
amiga dela não tivesse passado mal. Mó azar ela sair da festa daquele jeito...
Aquele foi o momento em que eu tinha certeza de que alguma
estava errada. Amber Woods era colega, não muito bonita pra ser sincero, de
classe que eu gostei durante uma época, porém, nunca havia chegado a tentar
algo com ela. O tempo simplesmente passou e ela não mais me atraia, simples
assim.
Agora, Brian era um cara que podia ter praticamente qualquer
mulher que ele quisesse. Ver ele falando de alguém tão trivial quanto Amber,
pros padrões dele, daquela maneira era um pouco além do que estranho.
—
O que aconteceu? —
Perguntei. — A Amber
ficou gostosa de repente ou...?
— De repente? — Ele riu. —
Ta zoando? Ela sempre foi gostosa, cara!
—
Claro...
—
Como assim? Você não se lembra de como ela estava ontem à noite...?
Eu ia responder que não fazia ideia, porém, imagens começar
a surgir em minha mente.
***
O sorriso branco. Os lábios escarlates. Os olhos verdes. O
cabelo castanho claro que descia como uma cachoeira sobre seus ombros. Amber
estava simplesmente deslumbrante.
Eu estava sentado ao lado dela, junto ao balcão de um bar
dentro do casarão, conversando, rindo, dividindo um drinque que eu nem me
lembrava mais o que era. No meio da multidão, pude ouvir Brian gritando Vai, Matt!, o que me fez rir
nervosamente e ficar um pouco irritado com ele.
Tudo estava dando certo até o momento em que a amiga de Amber
apareceu do lado dela vomitando.
***
—
Ah... — Eu limpei a
garganta. — Eu... Eu
me lembro... Vagamente...
—Cara,
prometo que não vou te deixar beber tanto da próxima vez... — Brian disse se sentindo
um pouco culpado.
—
Não se preocupe... —
Eu, de repente, levei minhas mãos até meus bolsos. Preocupado, temi que eu
estivesse sem meu celular e minha carteira. Felizmente, eles ainda estavam
comigo. — Ufa...
—
Ta com tudo ainda?
—
Sim...
—
Vamos embora, então?
—
Ah... Daqui a pouco... Só tenho que dar um pulo no banheiro...
—
E você se lembra onde é?
—
Claro... — Menti. — Já volto...
Eu voltei pra dentro da casa, ainda com minha cabeça
latejando.
—
Isso não pode ser real... —
Murmurei para mim mesmo enquanto rodava pelo casarão. — Eu ainda estou sonhando... É só mais um
daqueles sonhos extremamente realistas...
Não seria o primeiro do gênero. Eu já havia passado por
situações assim.
Eu não sabia como eu havia chego a tal situação. Não sabia
como eu estava falando com pessoas que eu não me dava bem. Não sabia como eu
havia saído de minha cama e chego até um shopping em questão de segundos.
Entretanto, tudo parecia tão real.
O ar no meu rosto. Os meus pés pisando contra a calçada. O
meu estômago gemendo de fome. A minha bexiga que parecia prestes a estourar. O meu
coração palpitando ao ver uma garota que eu gostava. Já havia sentido tudo isso várias vezes em
sonhos.
Porém, esse era diferente. Coisas estranhas estavam
acontecendo e ninguém parecia notar, pelo menos, dentro do meu círculo social,
o que era comum para um sonho. A ressaca que eu sentia era assustadoramente
real, devo admitir. Porém, ainda poderia ser minha imaginação agindo enquanto
eu dormia, certo?
Algo, entretanto, dizia-me que não.
Minhas memórias estavam turvas. Eric, James e Phil. Eles não
pareciam reais. Eles pareciam um sonho distante compostos por memórias
fragmentadas.
Quanto mais eu tentava me lembrar, menos eu me lembrava do
dia em que bebemos na praia. Até mesmo a minha caminhada com o James bêbado
parecia não ter acontecido.
Por outro lado, a cada instante, mais memórias pareciam
surgir em minha mente sobre a festa da noite passada. Não só me lembrei de
Amber. Podia me lembrar claramente de outras garotas, de amigos meus que
encontrei, de dois caras que brigavam por alguma mulher, de algum moleque que
havia sido traído e fazendo um escândalo sobre o ocorrido.
Depois de algum tempo, eu estava parado em algum corredor,
apoiado com as costas na parede, cada vez mais certo de que eu não estava num
sonho.
Meu lado emocional dizia que aquilo não era verdade, que era
tudo um sonho e que eu logo acordaria. Meu lago lógico, entretanto, não
conseguia achar provas daquilo.
Comecei a ficar irritado. Afinal, eu estava mais feliz no
suposto sonho junto com Phil, Eric e
James. Aqueles três eram alguns dos meus melhores amigos, falando besteira,
saindo sem rumo pela cidade, rindo que nem idiotas. Das pessoas da festa, eu
não tinha nenhum grande amigo.
Aliás, naquele meio, eu não tinha nenhum amigo próximo.
Minha fase de ir para baladas não durou mais do que algumas semanas.
Simplesmente não era meu estilo. Como eu havia acabado ali, eu não sabia.
Então, percebi algo.
Nessa realidade, pelo menos de acordo com Brian, eu não
falava com Phil. Eric era um total desconhecido aparentemente. E quanto a
James? Ele existia, mas não sabia dizer como eram as coisas entre nós.
A realidade onde eu estava começava a mostrar falha após
falha. Meu lado lógico, enfim, parecia concordar que havia algo errado.
Como sempre, aquele seria o momento em que eu acordaria e,
em questão de instantes, todo aquele sonho seria como alguns fragmentos de
memória perdidos em minha mente.
Porém, não foi isso o que aconteceu.
Eu comecei a suar frio. Minhas mãos tremiam. Minha
respiração ficava mais rápida e pesada a cada segundo.
Por que eu ainda estava ali? Por que eu ainda estava parado
naquele corredor? Por que eu não havia acordado.
Não fazia sentido... A não ser que aquele fosse o mundo
real, a não ser que eu já estivesse acordado.
—
Não... — Murmurei. — Não, não, não...
Levei minhas mãos até o meu cabelo. Eu tentava respirar
fundo. Mas não conseguia. Eu sentia algo em minha garganta, apertando-a,
sufocando-me.
—
Isso não pode estar acontecendo... —
Falei, quase sem voz. —
Esse não pode estar certo... Isso é só um sonho ruim... Um pesadelo...
—
Um pesadelo do qual você nunca vai acordar...
A voz desconhecida era grave, gélida e parecia sussurrar
diretamente na minha orelha. Senti um calafrio percorrendo a minha espinha e,
em seguida, veio o desespero.
***
Minha visão ficou embaçada e, então, tudo ao meu redor
parecia imaterial, um caos tingido de vermelho e preto. Eu me senti preso ao
chão, acorrentado e amordaçado, incapaz de fazer qualquer coisa a não ser me
debater.
Eu ouvia ruídos a minha volta, gritos inclusive. Eu mal
podia distinguir formas, então não tinha como eu saber o que exatamente estava
acontecendo.
As correntes pareciam estar esmagando minhas costelas e
pulmões. Respirar era praticamente impossível. Porém, algo pareceu explodir
dentro de mim.
Eu nunca fui uma pessoa que falava alto, muito menos cantava
ou gritava. Mas, droga, naquele momento, eu senti o grito mais violento que eu
já tinha presenciado saindo da minha garganta, queimando minhas cordas vocais e
fazendo meu próprio corpo tremer.
***
Quando percebi, eu estava de volta ao corredor. Quadros estavam
destruídos, jogados em pedaços pelo chão.
Vasos haviam sido quebrados, sujando o piso com terra e flores
despedaçadas. O próprio papel de parede parecia ter sido rasgado por garras,
quase como se um animal selvagem tivesse passado por ali.
Algo dentro de mim tinha certeza que aquilo havia sido minha
culpa, resultado de um surto.
—
Aquilo foi uma alucinação? —
Enterrei meu rosto em minhas mãos por um segundo e, então, voltei olhar para o
corredor. — E eu
ainda fiz tudo isso num ataque de pânico...?
Eu não consegui fazer nada a não ser rir. Não foi uma risada
alegre é claro. Foi algo saído da boca de um maníaco ou de alguém simplesmente
desesperado. Eu não sabia dizer em qual dos dois casos eu me enquadrava.
—
Matt? — Uma nova voz
me chamou.
Um homem que eu nunca tinha visto olhava para mim,
preocupado. Ele parecia arrumado demais para estar no meio daquela zona, mas,
fora isso, nada de anormal com o sujeito.
—
O que aconteceu aqui? —
Ele perguntou.
—
Difícil dizer... —
Respondi. Minha própria voz soava estranha aos meus ouvidos, arrastada e grave
demais. — Mas,
diga-me, você... Quem seria?
—
Rick... Não se lembra de nada ontem à noite?
—
Não muito bem... — Eu
sentia minha sanidade se esvaindo do meu corpo. Não havia nada para ser feito. — Muita coisa parece... Só
um sonho, sabe?
—
Sei... — Ele
suspirou. — Bem...
Não sei exatamente o que você bebeu ontem à noite... Se é que você só bebeu...
Mas não se preocupe... Quando você acordar, você estará melhor.
Eu fiquei ali parado, sem saber o que dizer.
Rick sorriu ao ver a minha expressão, provavelmente a de um
idiota espantado e boquiaberto, e seguiu o seu caminho, sumindo de minha vista.
—
Espere! — Eu gritei
enquanto corria na direção dele.
Eu segui o corredor até Rick, mas ele não mais estava lá.
Eu queria muito saber mais sobre o sujeito. Como ele poderia
dizer algo como aquilo? Certamente não era uma brincadeira, não é? E então ele
simplesmente sumiu, sem deixar um rastro.
No final, não importava. As palavras dele me acalmaram. Rick
foi quase como um anjo, tranquilizando-me e, principalmente, devolvendo-me
minha sanidade.
O resto do sonho foi como deveria ter sido. Agora são apenas
memórias fragmentadas, embaçadas na minha mente.
***
Eu tive que dormir pouco depois que acordei. Afinal, eram
cinco da manhã e, depois daquele inferno, eu estava exausto mentalmente.
Dormi pesadamente em seguida, acordando somente quando o
meio dia estava se aproximando. Não houveram pesadelos dessa vez.
Descansado, eu pensei naquela experiência surreal,
ponderando se eu teria mais um sonho como aquele, se eu sofreria enquanto
vulnerável mais uma vez. Por sorte, aquilo nunca mais aconteceu.
Entretanto, nunca se sabe. Pouco menos de uma semana se
passou desde o ocorrido. Poderia acontecer de novo.
Eu não poderia ficar vivendo com medo. Eu não poderia
simplesmente não mais dormir. Eu não poderia simplesmente ficar questionando a
realidade. Eu não poderia ficar questionando a minha sanidade.
Porém... Ainda não sei se estou na realidade correta, sabe?
Eu estava simplesmente confiando na palavra do tal de Rick... E quem era
ele...?
***
Sinceramente, vou parar com essa paranoia, ou tentar pelo
menos. É mais fácil continuar vivendo, ou sonhando...
Se eu continuasse vivendo como estou, sinto que estaria
jogando minha vida fora, não? Se essa for a verdadeira, não quero
desperdiçá-la. Se não for, ainda é melhor do que viver com medo.
Enfim, espero nunca mais ter que falar sobre isso.
Adeus.