sábado, 31 de dezembro de 2016

Teaser 4A

Teaser 4A


Um flash de luz. A sala se iluminou. Algo começou a andar então, fazendo o piso de madeira ranger a cada passo dado. Os olhos atentos da besta vasculhavam. Seu focinho farejava o ar. Sua língua de serpente lambia os beiços. A sua infeliz presa estava lá, em algum lugar, escondida. Tinha certeza disso.
Dentro de um armário velho, John espiava pela fresta da porta. Ele observava os movimentos de seu caçador com temor. Seu coração acelerava à medida que a criatura se aproximava. Suas pernas tremiam além de seu controle agora. Sua visão ficava turva, querendo não mais ver o que via.
O desejo de desistir assombrava o homem. Abrir a porta, se jogar diante dos pés da besta e esperar por um fim rápido. Ele podia fazer isso. Mas não. O ímpeto tinha que ser controlado se quisesse sobreviver à noite. Vencer aquele jogo doentio uma só vez. Era tudo o que precisava, não? John não tinha certeza. Mas tinha que arriscar. Não podia perder as esperanças ainda.
O assobio veio então. Um som agudo, estridente, que se tornava mais alto a cada instante. Era a melodia que trazia o desespero, a música que trazia a dor. Algo que, não importava quantas vezes ouvisse, John não conseguia se acostumar. Seu corpo inteiro tremia, antecipando seu fim novamente.
John trincou os dentes, tentando não deixar um grito escapar. Suas mãos correram até os ouvidos numa tentativa desesperada de abafar o som. Ele sentiu o suor das palmas contra o rosto. Estavam trêmulas. Estavam sem forças. Estavam desconfortavelmente geladas.
Então, um calafrio percorreu sua espinha.
O ar se tornou gélido. Sua pele começou a perder a cor, perdendo a vida que tinha. Seu sangue começou a gelar, percorrendo suas veias como veneno. Não demorou para que cada membro de seu corpo fosse atingido, congelando lentamente enquanto perdia os sentidos.
Logo, não mais sentia. Não tinha mais a capacidade. O frio havia ido embora e, com ele, foi o controle do próprio corpo.
John olhou para os próprios braços. Eles haviam caídos, inertes, ainda presos aos ombros. E agora, suas mãos não mais protegiam seus ouvidos.
O frio quase fez John se esquecer do assobio.
O maldito som estava de volta. Agora, agulhas pareciam ser empurradas lentamente contra seus tímpanos, afundando para dentro de sua cabeça, causando o máximo de dor possível antes que a presa caísse sem vida.
John não aguentava mais. Ele queria desistir. Ele iria desistir. Ele tinha que desistir.
Sua boca se abriu. Um grito soou. O assobio parou. O tempo parou por um instante. A criatura, então, correu para sua presa.
Mas não foi na direção de John. O grito foi de uma outra pessoa. Algum desgraçado caiu numa armadilha deixada pela besta. Um infeliz devia estar com a perna presa por uma estada de metal naquele instante. John se lembrava daquela dor.
Ele respirou fundo. Tinha que se recompor. Agradeceu pela pobre alma que, sem saber, havia salvo sua vida mesmo que por um breve instante.

John tinha que voltar a correr. E assim o fez.

sábado, 24 de dezembro de 2016

Conto 22

Eu Deveria Estar Feliz?


Eu me lembro muito bem do rosto do garoto. Droga, não acho que poderia ser capaz de esquecer.
Lembro-me de estar andando de volta para casa, cinco anos atrás, pegando o trajeto que sempre fazia. Passava por algumas ruas consideradas não muito amistosas, mas, ei, tive sempre a sorte de não ser assaltado. E aquele dia não foi diferente. Só não esperava ver aquela cena.
Um grupo de garotos, três no total, espancava um quarto menino. Deveriam ter todos uns catorze anos. Eram da mesma escola já que vestiam o mesmo uniforme. Colegas de classe? Qual seria o desentendimento? Então consegui reparar no rosto do jovem estirado no chão e senti meu estômago embrulhando.
Vamos apenas dizer que a história de meu país tem passagens que me envergonham profundamente. Uma gente podre que discrimina com orgulho. Vermes que andam em bandos. Desgraçados saudosistas de uma época nojenta. Gente que eu não gostava de chamar de gente. Um povo que enxotava quem era visto como diferente.
Eu gritei. Acho que foi o mais alto que já consegui. De mim veio uma voz tão grave que quase não reconheci como minha. Foram ameaças mais que suficientes para forçar o trio covarde a correr para longe.
Com um sangue ainda fervendo, corri até o quarto menino. Ainda respirava. Graças a Deus.
Vi com receio os hematomas que se formavam. Temia que tivesse algum osso quebrado. Algum outro ferimento interno? Não sabia dizer. Admito ter me acalmado um pouco, porém, após verificar que o menino não sangrava. Mas, mesmo assim, eu estava nervoso. Aquilo tinha sido obra de meu povo, de jovens que eram o futuro na nação.
Eu estava triste. Mas logo o sentimento foi amenizado. Afinal, o garoto sorriu. Foi um sorriso belo, genuíno. Com calma, ele me agradeceu. Falou também que ficaria bem, que eu não deveria me preocupar. Assenti. Confiei naquelas palavras. O garoto tinha uma força que não era refletida pelo físico magro e ossudo.
Com passos lentos, porém, firmes, ele se foi, dizendo que voltaria para casa e que, no futuro, tudo daria certo.
No final, eu me senti bem. As poucas palavras do rapaz me fizeram bem. Talvez fosse um dom dele. Poderia ser um prodígio, alguém que seria grande no futuro. Foi o que pensei naquele dia cinco anos atrás.
E ontem, todo o episódio voltou para mim, uma memória quase perdida no tempo.
Tiros vindos de todos os lados. Gritos que eram sufocados pelos sons das explosões. Fogo que tingia o ar de alaranjado. Poças de sangue que cobriam o chão como lama após a chuva.
Era nesse cenário que eu me encontrava. Dentro de meu carro, eu tremia, temendo pela minha vida. Meus olhos estavam fechados. Minha testa contra o volante. Meu suor escorria gelado. Meus lábios moviam-se debilmente. Eles rezavam silenciosamente para um deus que eu havia pensado ter deixado de lado há muito tempo.
Eu queria que tudo acabasse. Não queria mais viver naquela guerra. Não queria mais viver naquele país. Não queria mais viver daquele jeito.
Os sons das balas rasgavam o ar. Por breves momentos desejei que uma me acertasse, orei para que meu fim fosse rápido, queria que aquela agonia chegasse logo ao fim. Porém, outra parte de mim não queria desistir tão fácil. Uma voz em minha cabeça traçava novos planos para o futuro, ela me acalmava lembrando-me de minha família, sonhos que eu poderia realizar ainda, objetivos que eu nunca tive coragem de realizar. Até o momento. Se eu sobrevivesse, poderia torná-los realidade, não?
Nem mais sabia. Mas pensar em coisas boas estava me acalmando. Isso é, até eu ouvir um grito do lado de fora do meu carro. Alguém implorando pela própria vida. Súplicas que vinham seguidas de um ou mais tiros. Aí, eu voltava a desejar um fim rápido pra minha existência patética.
E eu teria permanecido naquele inferno. Sozinho. Desesperado. Entretanto, ouvi uma batida na porta de meu carro.
Com receio, olhei para o lado. Senti meu coração batendo mais e mais rápido. Até o instante que ele parou. Aliás, até o instante que tudo parou.
O tempo pareceu congelar quando eu vi o mesmo sorriso de cinco anos atrás.
Era a mesma expressão. O mesmo porte magro. Agora, porém, mais alto. E, em suas mãos, um rifle, o instrumento da revolução do seu povo.
Eles não aguentavam mais. Uniram-se com o mesmo sentimento. Com armas em mãos, resolveram lutar por si mesmos. Decidiram que nunca mais seriam oprimidos.
Então, percebi que eu seria salvo por quem eu havia salvado. Minha vida seria poupada daquela matança. Mas por quanto tempo? Eu conseguiria fugir. Mas e depois? Eu teria que lutar? Seria salvo mais uma vez mais tarde? Teria essa sorte?
Eu ainda não sei a resposta. Apenas um dia se passou. Ainda estou no meio no caos. Tremendo. Temendo por minha vida, uma vida que ainda persiste. Não mais sei se isso é bom ou mau.

Então, eu me pergunto: eu deveria estar feliz?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Anúncio 43

Novos contos de terror estão por vir.
Sim. Agora. Nessa época. Fim de ano. Pertinho do Natal. Com o Halloween já pra trás. É.
Fazer o quê? Aceitem. Esse é o conselho que dou.
Até a próxima postagem!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O Julgamento das Chamas, Capítulo 1 (Incompleto)

Capítulo 1


Monte de Ferro. Esse era o nome da cidade cinzenta, apenas mais um antro mofado regido por bandidos metidos a mafiosos. Um bando de brutamontes armados com escopetas e rifles. Nada mais do que isso. Não tinham classe, tampouco ética. Mas ofereciam proteção para a população. Apenas para os que pudessem arcar com os preços obviamente. Esses poucos, um punhado de donos de comércios prósperos, podiam agradecer por manter seu pouco luxo no meio da podridão que os cercava.
Não que os mais pobres não tivessem que pagar para lá viver. O pouco dinheiro que tinham era arrancado de seus dedos magros. Impostos justificavam os lidere locais. Benefício algum traziam para a população necessitada. Apenas mantinham seus ossos inteiros e suas famílias em casas miseráveis.
Deve-se reconhecer que faziam um bom papel de governo. E nenhum habitante de Monte de Ferro tinha forças de contrariar o poder autoproclamado. Nenhum era louco para tanto.
Um temporal chegava ao fim. Ou parava por uns poucos momentos pelo menos. O céu coberto por nuvens negras anunciava a possível volta das chuvas. Mas já era o suficiente. O povo voltaria às ruas, de volta às suas vidas mundanas.
Das casas. Dos prédios. Dos barracos. Das caixas de papelão nos becos. Debaixo de cobertores de jornais sob as pontes. A população emergia para fora de seus lares, rastejando quase sem vida. Suas caras pálidas eram tão sem vida quanto o solo estéril da cidade. Seus braços e pernas moviam-se tão lentamente quanto os pingos das goteiras. Suas vozes eram fracas como os ventos que não conseguiam expulsar as nuvens do céu.
E assim a vida seguia em frente.
Rita não era diferente. Sabia que não podia ficar parada. Ela saia de sua viela, correndo, puxando o irmão mais novo pela mão. Ambos descalços. Ambos vestindo vestes esfarrapadas. Ambos cobertos por mantos escuros encharcados pela chuva. Ambos à procura de um bico. Qualquer trabalho que pudessem fazer. Não importava o quão pouco pagassem. Só precisavam de um pouco, apenas o suficiente para terem comida pro dia. O amanhã não era preocupação para o agora. Todo dia vivam por esse lema.
Os passos rápidos pareciam galopar pelas ruas tão conhecidas pela dupla. Desviavam de pessoas. Pulavam poças. Escalavam muros. Tudo como se fosse uma brincadeira. Uma tentativa de escapar da realidade. Por alguns poucos instantes, momentos preciosos para não pensarem em nada.
Porém, toda a pressa cessou em um segundo.
Os pés de Rita fincaram-se no chão. Seu braço puxou seu irmão com um solavanco. O garoto estava prestes a reclamar quando viu a cena.
Oito membros da polícia local se aproximavam. Homens e mulheres. Todos armados. Todos pálidos. Todos vestindo roupas surradas. Quase pareciam cidadãos comuns do Monte de Ferro. Porém, o grupo parecia alegre, cantarolando e rindo alto com a energia que faltava aos demais moradores. De fato, pareciam sempre estar assim. O misto da autoridade que tinham sobre a população com sua ignorância de berço parecia ser um dos caminhos para a felicidade.
O bando poderia resolver implicar com qualquer um dos pobres civis. Seria divertido para eles. Nunca parecia perder a graça. Mas não era isso o que preocupava Rita. O grupo tinha um nono integrante. E ele era o que chamava atenção.
Cabelos loiros bem penteados. Olhos verdes estonteantes. Dentes brancos perfeitos. Terno preto impecável. Sapatos escuros lustrosos. Era obviamente uma figura que não pertencia aquele lugar.
Delacroix... Rita murmurou irritada.
Era um palpite impossível de se errar. Lá estava Dario Delacroix, um dos três herdeiros da mineradora que usurpam as riquezas da cidade. Monte de Ferro não era um nome sem explicação afinal.
Rita trincou os dentes. Ela sabia que os desgraçados da família Delacroix podiam ser bons. Podiam investir na cidade. Tirar o poder das mãos dos bandidos. Ajudar a população para o próprio lucro. Não era nenhum sonho utópico. Era uma alternativa viável. Porém, não era a mais fácil. Seria muito mais econômico e prático se aliar à alcateia que mandava naquela terra melancólica.
Os irmãos apenas observavam a passagem do grupo pela rua. Todos pareciam fazer o mesmo, saindo do caminho. As pessoas corriam para as calçadas, subiam em muretas ou até entravam em casas. Não queriam problemas, não daquele tamanho. Porém, nunca tiravam os olhos atentos do forasteiro e de sua escolta armada. Era uma cena rara afinal, algo que prendia o olhar de qualquer um querendo ou não.
Mas tinha que haver uma exceção à regra.
Um homem correu aos tropeços até Dario. Parou apenas ao cair de joelhos perante o magnata. Suas mãos logo se juntaram, dedos se entrelaçaram, num sinal de súplica.
Me ajude... Ele implorou com a voz fraca. Eu sei que você pode... Sei que tem um coração bondoso...
A população olhou perplexa para o sujeito. Não tinham reação. Apenas continuaram observando boquiabertos.
A milícia já estava pronta para despachar o débil homem. Nem pensaram em gastar munição. Duas mãos já haviam ido até os braços do cidadão, cada uma agarrando um membro. Aquele corpo magro seria arremessado para longe e risos viriam em seguida.
Porém, o inesperado aconteceu.
Esperem! Pediu Dario forçando uma voz mais máscula que a de costume. Soltem esse homem.
Os capangas obedeceram. O herdeiro se aproximou do homem e o analisou.
Era velho. Algo entre setenta e oitenta anos. O corpo era esquelético. As roupas largas pareciam trapos. A cabeça do homem era calva. Sua barba por fazer estava amarelada. Sua pela era escura. As rugas cobriam o rosto cansado. O desespero emanava dele bem como um forte odor corporal. Um fraco brilho de esperança resistia nos olhos opacos. Parecia que não duraria por muito tempo.
O rosto de Dario pareceu se retorcer de nojo por um breve instante. Seu olhar brevemente julgou como sendo patético o homem ajoelhado perante de si. Palavras que nunca escaparam ficaram presas em sua garganta.
Por fim, o magnata respirou fundo e sorriu. Levou uma mão até um bolso, dedos rápidos procurando por algo. E encontrou. Um punhado de moedas. Simples, sem valor para alguém que ostentava gastos na casa dos milhares em seu dia a dia. Porém, lá estavam elas. Pequenos círculos de metal lá plantados com um objetivo em mente.
Sem hesitar, Dario retirou as moedas do bolso e entregou para o homem desesperado. Com um sorriso estampado no rosto, tentava não pensar nas mãos sujas que tocava.
Não precisava agradecer. Pediu sabendo que não seria obedecido. Apenas fiz o que qualquer boa pessoa faria.
O velho olhou para as poucas moedas em suas mãos. Era pouco, mas era mais do que ele estava acostumado a ver. Mal podia acreditar. Suas mãos tremiam emocionadas. Colocou o dinheiro, com pressa, num bolso arregaçado. Então, agradeceu o magnata reverenciando-o com gratidão genuína. Quase fez o homem parecer um santo milagreiro que curava lepra.
Foi exatamente como Dario queria.
Deve estar se sentindo bem. Disse alguém que se aproximava.
A fala chamou a atenção. A voz era grave, imponente, reverberando pelos corredores de ruas da cidade, viajando até o ouvido de cada pessoa presente ali. Não demorou para que identificassem o sujeito que se aproximava.
Camisa negra. Calças negras. Botas negras. Tudo parecia se misturar numa única peça. O sobretudo era o que destacava na multidão. Era cinza como o aço, adornado com marcas intensas cor de vinho, fluindo da cintura para baixo como uma capa. As mãos brancas traziam tatuagens, símbolos escarlates que ninguém dali conhecia. O rosto carregava uma expressão madura e serena que contrastava com a idade de não mais que trinta anos. O cabelo e olhos castanhos davam um quase mundano para o homem. Porém, sua aura não deixava essa ideia perdurar.

Ajudar alguém sem pedir nada em troca. Disse a figura, cativando seus ouvintes. Eis a definição de uma ação altruísta. Algo realmente belo... Tão belo quanto irreal.

domingo, 11 de dezembro de 2016

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O, digamos, Primeiro Arco do A Rainha Vermelha está concluído. Posso ir direto para o segundo se eu quiser . Ou então... Posso começar uma história nova. No mesmo universo.
O que será que eu vou fazer...?
Descubram em breve!

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

A Rainha Vermelha, Capítulo 5

Capítulo 5


Um tiro. Então dois. Enfim três.
As balas acertaram as costas de Gideon. Elas pararam em sua blindagem, mas o desgraçado sentiu o impacto dos projéteis. Nenhum dano sofrido, apenas marcas foram deixadas em sua armadura: mais do que o suficiente para irritar o canalha. Alguém estava atrapalhando seu momento especial, alguém que seria punido por isso.
Gideon se voltou para trás com voracidade, exibindo seus afiados dentes, fuzilando o adversário com seu olhar enlouquecido.
Em vão.
Aquilo não intimidaria o desafiante.
Cabelos grisalhos. Barba rala também grisalha.  Um metro e noventa de altura. Porte físico de um lutador. Uniforme azul-marinho. Distintivo no peito. Revólver em mãos. Olhar ainda mais sério que o de costume. Expressão ainda menos amistosa que da última vez.
Afaste-se de minha filha, seu doente. Ordenou Martin. Agora!
Gideon sorriu. Antes que ele pudesse abrir a boca, o revólver foi disparado mais três vezes.
Tudo o que o comandante da Inquisição teve que fazer foi cruzar os braços. Simples balas de revólver nunca penetrariam aquela blindagem. Os membros acabaram formando um escudo perfeito para sua face. Enquanto pudesse proteger a única parte do corpo que estava exposta, a derrota do maníaco era improvável.
Então, os seis disparos foram feitos. O policial tinha que recarregar sua arma. E Gideon sabia muito bem disso.
Um movimento rápido. O comandante sacou sua metralhadora. Apontou a arma para frente. Lambeu os lábios com gosto. Levou um dedo nervoso até o gatilho. Tudo em uma mera fração de segundos. Tudo por obra de seu instinto. Tudo antes que sua visão pudesse focar em seu alvo.
E, no final, seus olhos não foram rápidos o suficiente: quando Gideon percebeu, Martin estava a menos de um metro de distância
A mão do policial foi até o cano da metralhadora. Um movimento rápido. O dedo do maníaco apertou o gatilho. Uma rajada de balas foi disparada. Todos os projéteis atingiram o teto.
Gideon estava atônito. Seu olhar petrificado observava a mão que, sem esforço, havia deslocado o cano da arma o alto. Foi um ato que fez o comandante errar todos os disparos. Foi um ato que abaixou sua guarda por tempo demais.
Com ambas as mãos, Martin puxou a metralhadora para si, arrancando-a das mãos do adversário. Sem tempo para reagir, Gideon sentiu a pesada arma golpeando a lateral de sua cabeça como um martelo. Se não fosse pela blindagem, ele teria caído. Graças a ela, pôde permanecer de pé para receber o segundo golpe.
Um urro. Com isso, Martin anunciou o próximo movimento. Ele levantou a arma para o alto e desferiu um golpe com toda a sua força. O ataque derrubaria o alvo, com blindagem ou sem blindagem, prensando-o contra o chão. Isso é o que teria acontecido se tivesse tido sucesso.
O policial demorou demais. Gideon era ágil, não desperdiçaria uma chance daquelas. Ele apenas teve que dar um passo largo para um lado. Assistiu Martin errar seu golpe digno de um bárbaro, contemplando como atacaria em resposta.
Nem um segundo se passou. Mas foi mais que o suficiente. Gideon levou uma mão até o ombro do oponente, impulsionando seu joelho contra o rosto de Martin. O golpe o acertou em cheio. Fez o policial atordoado cambalear para trás. Sua cabeça baixa foi o alvo da cotovelada que veio em seguida. O abdômen foi atingido por um pontapé então. Um chute giratório acertou suas mãos por fim, fazendo-o derrubar a metralhadora para o lado.
Melhor assim. Gideon riu. Não precisamos de armas de fogo atrapalhando. Ele levantou os punhos, assumindo uma postura de luta. Vamos lutar como os guerreiros que somos!
Verme... Martin rosnou e cuspiu no chão. Alguém tão patético e vil nunca será um guerreiro de verdade. Aceite isso.
O comandante da Inquisição mostrou os dentes. Irritado, decidiu não gastar mais palavras com o inimigo. Martin estava grato por isso.
Seus punhos se cerraram. Os batimentos cardíacos aceleraram. O sangue de ambos começou a ferver. O tempo desacelerou para uma última troca de olhares: facas que arremessaram um contra o outro.
Então, ele voltou a correr.
Gideon avançou. O exibicionista pretendia demonstrar todo o seu repertório de ataques. Utilizar sua agilidade, seu grande trunfo, em cada instante da luta. Sequências ensaiadas mesclavam chutes, socos, cambalhotas, esquivas, cotoveladas e joelhadas. Cada golpe seria uma agulhada contra o adversário: fracos em potência, porém, certeiros. Ele cansaria o adversário com cada acerto. Faria o policial cair de joelhos, vulnerável para seu último movimento.
Martin resistia. Ele era o mais forte entre os dois, é claro. Porém, seus socos e investidas acabavam muitas vezes por errar o ligeiro alvo. Quando acertava, quase sempre não alcançava a face do desgraçado. Quando suas mãos atingiam a grossa blindagem do inimigo, o dano parecia ser maior no policial do que no maníaco. Os nós de seus dedos começavam a latejar de dor, ardendo após cada impacto. Era um preço alto a se pagar por apenas acabar deslocando o adversário para o lado, tirando seu equilíbrio por um breve instante ou impedindo apenas um simples chute. Enquanto isso, seu corpo seguia sendo castigado por ataques que não conseguia desviar. Entretanto, ele continuava lutando. Cada vez seu punho esmurrava o rosto asqueroso de Gideon, o guerreiro encontrava forças para se manter em pé no duelo, ansiando pela próxima oportunidade de desfigurar mais um pouco o desgraçado.
E a Rainha apenas observava. Estava sob um estado de torpor. Não mexia os braços. Não mexia as pernas. Não mexia os lábios. Ela estava apenas lá, parada, apavorada. Sentia medo por si. Sentia medo pelo pai. Se a luta continuasse daquele jeito, o veterano policial não sobreviveria. Gideon sabia disso. Sophia sabia disso. Martin sabia disso.
Nada mal, velhote... O comandante reconheceu, aproveitando uma pausa espontânea na luta. Ambos os combatentes estavam cansados, precisando recuperar o ar. Seu adversário, porém, era o que estava mais abatido, com roupas e face igualmente surradas. Não lutava assim fazia um tempo. Quase havia me esquecido como era uma luta de verdade.
Queria poder dizer o mesmo. Martin retrucou arfante.
Hm... Gideon bufou acrescentando uma risada em seguida. Tinha certeza que você diria algo do gênero. Sei que você desaprova meus sentimentos em relação a sua filha, mas... Com um movimento rápido, ele sacou a faca da cintura, girando-a frenética entre os dedos. Você não tem como me parar. Ela vai ser minha assim que eu me livrar de você. E, então... Sussurrou. Eu nunca mais vou deixá-la sair de perto de mim...
A Rainha sentiu um aperto no peito. Seu coração disparou. Sentiu um fogo queimar dentro de si. Ela queria lutar. Mas ainda não conseguiu se mover. Algo ainda faltava para superar o medo que a pressionava contra o chão.
Demorou mais do que eu imaginava pra pegar seu brinquedinho. Martin estralou o pescoço. Mesmo assim... Você não vai conseguir tocar um dedo na minha filha, seu riquinho escroto.
Assim a luta prosseguiu. Os dois homens partindo para cima do outro, urrando feito animais selvagens. Mas o ritmo já não era mais o mesmo. Isso ficou claro em questão de segundos.
Martin acertava ainda menos socos agora. Ele estava, naturalmente, mais preocupado em se manter vivo, recuando perante as investidas do adversário, bloqueando facadas com seus membros quando não tinha outra solução. E o veterano sentia sua derrota se aproximando. Cada golpe da faca de Gideon parecia enfraquecer um pouco mais o policial, tirando suas forças mesmo com o mais superficial dos cortes. Gotas de sangue logo começaram a verter das costas, das pernas, dos braços. Suas roupas em pouco tenho estavam dilaceradas, salpicadas de rubro.
Era como assistir um touro sendo morto lentamente por um toureiro. E Sophia não conseguia mais ver aquilo. Não aguentava mais ver o pai sofrer.
Não demorou para que Martin caisse de joelhos.
Finalmente sentiu o peso da idade, hein? Gideon riu. Não se preocupe. A dor vai passar. Só... Tente não se mexer muito, ok...? Vamos acabar logo com isso...
O guerreiro se levantou uma última vez. Ele arfava pesadamente. Porém, não pretendia parecer fraco, principalmente não nos seus últimos instantes de vida. Martin abriu os braços esperando o último e inevitável ataque.
Gideon avançou. Seus frios olhos focados na expressão resignada do adversário. Seus pés ágeis corriam como se não atritassem com o chão. Sua mão apertava o cabo da faca com afinco. Sua língua lambia seus lábios, saboreando o momento.
Um movimento rápido e certeiro. Foi o suficiente para cravar a faca no peito do guerreiro.
Martin sentiu a fria picada da lâmina invadindo seu corpo. Sentiu também a dor ardente que parecia se espalhar pelo seu sangue. Ele, porém, apenas trincou os dentes, suprimindo o grito de dor, guardando-o para si em silêncio.
Sophia, por outro lado, não conseguiu fazer o mesmo.
A Rainha Vermelha soltou um grito agudo, uma explosão sonora que estremeceu a débil sala onde estavam. Nem se lembrava a última vez que agiu assim, tão desesperada. Nunca que uma reação tão exagerada e irracional partiria dela. Pelo menos, não com ela sendo a vítima. Aquela mulher já tinha chorado todas as lágrimas que podia para si mesma, não mais sentia pena de si. Porém, para seu pai, a história era outra. Ele era inocente. Ele foi puxado para aquele inferno. Ele não tinha que sofrer junto com a filha. Ele não tinha que morrer por sua cria. Era isso o que Sophia sentia.
Mas ela estava errada. Pelo menos, era o que Martin diria. Se tivesse tempo, se tivesse forças, explicaria o porquê da melhor maneira que conseguisse. Mas não podia. Não tinha o tempo. Não tinha as forças. Então, teve que recorrer a uma solução mais rápida, algo que esperava que funcionasse com Sophia mesmo naquela situação.
Martin sorriu para a filha. Um ato raro vindo daquele homem, tão raro quanto genuíno. Sophia conhecia muito bem o pai. Via nitidamente a sinceridade no gesto, o brilho nos olhos que acompanhava. Era mais que um simples sinal de afeto, nada que pudesse ter surgido de um momento para o outro: era algo que evoluiu, que foi se tornando mais forte a medida que o elo dos dois se fortalecia.
Era respeito, reconhecimento do potencial de sua criança, confiança nas escolhas da cria, orgulho de como a filha lidava com vitórias e com derrotas, zelo pela guerreira que havia criado.
Não se podia fingir algo como aquilo. Sophia bem sabia.
A Rainha sorriu de volta para o pai. Ele assentiu.
As mãos de Martin envolveram o pescoço de Gideon. A blindagem impediria que o comandante fosse estrangulado, mas nunca foi essa a intenção. O policial atacou de imediato com uma cabeçada. Não teve como o alvo escapar. O golpe atordoou o inimigo. Porém, o guerreiro sabia que não conseguiria finalizá-lo. Tinha forças apenas para um último movimento. E o fez sem hesitar, agarrando o adversário pelos ombros e o arremessando para o lado.
Gideon cambaleou até cair de joelhos. Ele rangeu os dentes. Levantou-se o mais rápido possível. Queria rachar o crânio de Martin com as próprias mãos, fazê-lo sofrer um pouco mais antes que o ferimento da faca ceifasse sua vida por fim. Só não esperava o golpe que acertou sua face.
Foi um soco rápido. E potente. Seus olhos nem haviam conseguido focar no que o havia acertado. Quando sua visão se tornou menos turva, pôde identificar um soco inglês de bronze acertando sua boca, arremessando-o para trás.
As costas de Gideon bateram no chão. Sentiu o ar fugindo dos pulmões com o impacto. O ataque foi ainda mais forte que o anterior, deixando-o gemendo deitado no piso de madeira. Ele mal pôde reagir quando a Rainha se pôs por cima dele.
Uma mão puxou sua cabeça pela mandíbula, forçando o comandante da Inquisição a olhar Sophia nos olhos. Não havia mais medo neles, só raiva. E aquilo petrificou o canalha.
O soco inglês martelou a cabeça de Gideon contra o chão em seguida. E mais uma vez. E outra. E mais uma.  E então ela parou de contar.
A Rainha não pretendia parar tão cedo. Desferiu soco após soco com destreza. Não parecia ter fim.  O chão de madeira rangia com cada golpe dado. O rosto de Gideon se retorcia com cada impacto. Seus dentes trincavam. Seu queixo rachava. Seu nariz quebrava. Sua pele rasgava. Sua face afundava. O sangue vertia. Tingia o já desfigurado rosto. Encobria os próprios olhos. Coloria a mão que atacava. Respingava na mulher tomada pela fúria.
Gritos escapavam de sua garganta. Sophia não mais podia se controlar. Sua dor esvaia de seu corpo a cada rugido. Uma dor fermentada por tanto tempo, com tanto ódio, era expulsa a cada ataque, expulsa a cada urro. Tomada por um frenesi, a Rainha nem mais enxergava. Sua visão foi se tornando turva pouco a pouco, até ser completamente cegada pela raiva. Felizmente, não mais precisava ver. Ela sabia onde bater. Sabia como bater. Seus golpes se tornavam mais precisos, mais rápidos, mais fortes a cada acerto, castigando implacavelmente a face do seu torturador.
Ela prosseguiu sem consciência. Não mais percebia o que fazia Apenas fazia.
Somente parou quando a chuva começou a cair.
As gotas geladas acertaram o rosto suado de Sophia. Ela arfava. Respirou fundo. O ar parecia mais leve. Olhou para cima então, admirando a garoa que roubava-lhe o calor, as águas que lavavam o sangue do corpo e a fúria da alma.
Olhou para as gotas que caíam sobre Gideon. A armadura quase intacta após o confronto era um primor. Agora podia admirá-la com calma. Mas não o fez. Seus olhos passaram rapidamente por onde o rosto de predador deveria estar. Uma poça de sangue com aspecto enlameado transbordava para além da blindagem de metal.
Foi feito o que tinha que ser feito.
O olhar de Sophia enfim vagou até Martin. E por lá repousou por alguns instantes, tempo que pareceu durar mais que deveria, até que conseguisse forças para se levantar.
Calmamente, a Rainha caminhou até o corpo do pai. Memórias atacaram sua mente. Ela se ajoelhou perante o homem, estudando seu rosto, tocando-o uma última vez com delicadeza. A expressão calma. Os olhos cerrados. O sorriso satisfeito. Sophia teve que retribuir o sorriso.
Morrer com o senso de dever cumprido... Falou enquanto se sentava ao lado de Martin. Levou uma mão até um bolso com calma. A ideia de acender um cigarro passou por sua cabeça, porém, logo foi embora com seus dedos cessando a busca pelo isqueiro. O cheiro nunca agradou o pai. Deve ser bom, né?... Saber que você fez o seu melhor... E que foi o suficiente... Ela riu baixo. Será que eu consigo fazer isso também, pai...? Fazer como você fez...?
Sophia olhou para Martin. Lágrimas começaram a escorrer de seus olhos. Então, olhou para o alto, deixando que elas fossem lavadas para longe pela chuva.
Para morrer em paz... A Rainha continuou. Eu tenho que fazer mais algumas coisas. Coisas que não vão ser fáceis. Eu sei disso... Eu... Seus olhos voltaram para o corpo de Martin e, então, seguiram até o de Alexander. Eu tenho que ser forte... Respirou fundo, soltando o ar com calma em seguida. Mais forte... Forte sozinha... Forte para mim... Forte para os outros... Seu olhar se perdeu na chuva. Mas... Será que eu consigo...? Ela ficou em silêncio por alguns segundos. Então, soltou uma risada. Não sei. Não sei mesmo... Mas vou descobrir. Tenho que tentar.

Sem dizer mais nada, sem fazer mais nada, Sophia ouviu a canção das gotas de chuva que caiam.

domingo, 4 de dezembro de 2016

A Rainha Vermelha, Capítulo 5 (Teaser)

Capítulo 5


Um tiro. Então dois. Enfim três.
As balas acertaram as costas de Gideon. Elas pararam em sua blindagem, mas o desgraçado sentiu o impacto dos projéteis. Nenhum dano sofrido, apenas marcas foram deixadas em sua armadura: mais do que o suficiente para irritar o canalha. Alguém estava atrapalhando seu momento especial, alguém que seria punido por isso.
Gideon se voltou para trás com voracidade, exibindo seus afiados dentes, fuzilando o adversário com seu olhar enlouquecido.
Em vão.
Aquilo não intimidaria o desafiante.
Cabelos grisalhos. Barba rala também grisalha.  Um metro e noventa de altura. Porte físico de um lutador. Uniforme azul-marinho. Distintivo no peito. Revólver em mãos. Olhar ainda mais sério que o de costume. Expressão ainda menos amistosa que da última vez.

Afaste-se de minha filha, seu doente. Ordenou Martin. Agora!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

A Rainha Vermelha, Capítulo 4 (Editado)

http://livrotheconflagration.blogspot.com.br/2016/11/a-rainha-vermelha-capitulo-4.html
Entre por esse endereço para conferir as alterações. Fiz mais do que imaginava.
Isso me lembra: fiz umas pequenas alterações nos outros capítulos também. Nada tão grave quanto nesse, mas vale a pena olhar.
Obs: não fiz mudanças de enredo, apenas em descrições e diálogos. Não mudei o rumo da história.
É isso.
Boa leitura!

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Anúncio 41

Ok, acabaram meus vestibulares. As primeiras fases, pelo menos. Logo, não tenho mais provas esse ano e, consequentemente, volto a escrever com regularidade. O quinto capítulo da Rainha Vermelha será escrito em breve!
Ok, era só isso.
Até!

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Conto de Terror 13 - Completo

O Pior Pesadelo


Não sou uma pessoa que costuma sentir medo, muito menos entrar em pânico. O irreal nunca me afetou. Filmes de terror normalmente me faziam rir. Relatos sobre psicopatas normalmente prendiam meu interesse, entretendo-me de certa maneira, mas certamente nunca me aterrorizaram ou me tiraram o sono. Porém, após a noite passada, sinto-me desconfortável, para dizer o mínimo. Sinto um mal estar que não vai passar tão cedo, tenho certeza.
Acordei às cinco da manhã, suado, tentando me lembrar do que havia acontecido. Aos poucos, as memórias voltariam.
***
Era só pra ser um grupo de amigos bebendo juntos.
Eric, James, Phil e eu, Matt. Não creio que até aquele dia havíamos saídos todos juntos, apesar de todos sermos bons amigos. Sempre acontecia algum imprevisto e um de nós acabava não indo ou, então, pessoas não agradáveis para algum de nós estaria junto do grupo. Lembro que era impossível sair com Phil e Mary, sua ex, ao mesmo tempo após o término do relacionamento.
Enfim, lá estávamos nós quatro, finalmente, em frente à praia com toda a classe que moleques de dezoito anos desempregados podiam ter. E, sim, isso significava que tínhamos um isopor cheio de bebidas baratas.
A cerveja era a única coisa que salvava. Eu as escolhi afinal. Se eu fosse  ficar bêbado, queria ter um pouco de classe e, se possível, lembrar-me do que aconteceu naquela noite no dia seguinte.
A noite passou rápido. Quando percebemos, as cervejas haviam acabado, Phil já havia vomitado e James, que raramente bebia, estava mais bêbado que todos nós juntos. Pelo menos, conseguimos rir bastante.
No final, eu fui o responsável por levar James até a casa dele. Não por que a culpa era minha por ele ter ficado bêbado, mas eu era a pessoa que morava mais próximo dele. Então, coube a mim andar junto com um bêbado por mais de vinte minutos até o prédio dele (ele não queria pegar um ônibus e eu não estava com vontade de insistir).
Foi engraçado, devo admitir. Eu nunca havia sido a escolta de alguém bêbado, apesar de eu já ter sido escoltado uma vez ou outra.
Minha missão foi cumprida sem problemas, até onde eu me lembrava. Eu só tinha que falar com James no dia seguinte para saber como ele estava. Por ora, eu podia voltar tranquilo para casa.
Cansado, eu dormi poucos instantes depois de me deitar na minha cama.
Então, tudo ficou confuso.
***
Eu acordei no chão de uma sala que eu me lembrava vagamente. Lá, algumas outras pessoas estavam no mesmo estado deplorável no qual eu me encontrava.
Minha cabeça doía, minha boca estava seca, meu corpo estava encharcado de suor. O som de uma conversa em outro cômodo parecia um estádio de futebol em dia de clássico. Ao levantar, quase vomitei. Claramente de ressaca, eu saí da casa.
O sol parecia queimar os meus olhos enquanto tudo girava a minha volta. Meus murmúrios de dor cessaram quando uma mão veio até meu ombro.
Matt! Ele me chamou. Ainda bem que está vivo!
Quando minha visão se normalizou, eu vi Brian, um amigo que eu não via desde que ele havia se mudado.
Cara... Eu murmurei. O que aconteceu?
Uma das melhores noites de todos os tempos. Disse uma garota. Só.
Eu olhei para ela. Não fazia a mínima ideia de quem era. Porém, vi que, com ela, estavam outras pessoas, incluindo algumas inusitadas.
Agatha estava lá. Até onde eu me lembrava, ela estava fazendo intercâmbio. Como ela estava ali, agora?
John era a última pessoa que eu esperava ver lá. Até onde eu sabia, uma festa regada à vodka barata, pelo cheiro das minhas roupas, havia acontecido. Aquele moleque altamente religioso ali no meio não fazia sentido.
Então, outras pessoas, todas do mesmo grupo, vieram falar comigo. Do jeito que elas falavam, nós éramos grandes amigos, comentando sobre eventos da minha vida que eu contava para poucas pessoas. Perguntaram-me da minha mãe que estava doente, da minha irmã que havia terminado a faculdade, do meu novo gato de estimação. Tudo com um sorriso caloroso no rosto.
Após algum tempo, eu me virei para Brian e perguntei:
Você viu o James?
James? Ele franziu o cenho. Eu não acho que ele tenha vindo pra festa, mano...
Sério...? E o Phil?
Que Phil? O Phil Anderson?
É...
Nem sabia que vocês se falavam... Vocês trocaram uma ideia ontem à noite, foi isso?
  Não... Eu sacudi a cabeça para os lados, sem entender o que acontecia. E o Eric?
Que Eric?
Eric Johnson.
Quem é esse?
Eu parei por um instante, olhando confuso para o rosto de Brian. Ele me parecia sério. Não parecia uma das brincadeiras estúpidas que ele fazia de vez em quando.
Eu tinha certeza que eu estava bebendo com eles ontem à noite... Eu disse calmamente. Então, percebi algo que eu deveria ter perguntado desde o começo. Aliás... Como eu vim parar aqui?
Cara... Ele riu. Eu devia ter cortado seu álcool depois que a gente terminou aquela segunda garrafa... Mas não deu. Tava muito bom ver você bêbado...
Brian continuou rindo enquanto eu só ficava mais confuso.
Eu também não queria ser chato com você depois que as coisas não deram certo com a Amber. Ele disse, agora, um pouco mais sério.
Amber? Indaguei. A Amber? Amber Woods?
É. Ele colocou a mão no meu ombro. Você foi o que chegou mais perto de pegar ela, mano. Teria conseguido se a amiga dela não tivesse passado mal. Mó azar ela sair da festa daquele jeito...
Aquele foi o momento em que eu tinha certeza de que alguma estava errada. Amber Woods era colega, não muito bonita pra ser sincero, de classe que eu gostei durante uma época, porém, nunca havia chegado a tentar algo com ela. O tempo simplesmente passou e ela não mais me atraia, simples assim.
Agora, Brian era um cara que podia ter praticamente qualquer mulher que ele quisesse. Ver ele falando de alguém tão trivial quanto Amber, pros padrões dele, daquela maneira era um pouco além do que estranho.
O que aconteceu? Perguntei. A Amber ficou gostosa de repente ou...?
De repente? Ele riu. Ta zoando? Ela sempre foi gostosa, cara!
Claro...
Como assim? Você não se lembra de como ela estava ontem à noite...?
Eu ia responder que não fazia ideia, porém, imagens começar a surgir em minha mente.
***
O sorriso branco. Os lábios escarlates. Os olhos verdes. O cabelo castanho claro que descia como uma cachoeira sobre seus ombros. Amber estava simplesmente deslumbrante.
Eu estava sentado ao lado dela, junto ao balcão de um bar dentro do casarão, conversando, rindo, dividindo um drinque que eu nem me lembrava mais o que era. No meio da multidão, pude ouvir Brian gritando Vai, Matt!, o que me fez rir nervosamente e ficar um pouco irritado com ele.
Tudo estava dando certo até o momento em que a amiga de Amber apareceu do lado dela vomitando.
***
Ah... Eu limpei a garganta. Eu... Eu me lembro... Vagamente...
Cara, prometo que não vou te deixar beber tanto da próxima vez... Brian disse se sentindo um pouco culpado.
Não se preocupe... Eu, de repente, levei minhas mãos até meus bolsos. Preocupado, temi que eu estivesse sem meu celular e minha carteira. Felizmente, eles ainda estavam comigo. Ufa...
Ta com tudo ainda?
Sim...
Vamos embora, então?
Ah... Daqui a pouco... Só tenho que dar um pulo no banheiro...
E você se lembra onde é?
Claro... Menti. Já volto...
Eu voltei pra dentro da casa, ainda com minha cabeça latejando.
Isso não pode ser real... Murmurei para mim mesmo enquanto rodava pelo casarão. Eu ainda estou sonhando... É só mais um daqueles sonhos extremamente realistas...
Não seria o primeiro do gênero. Eu já havia passado por situações assim.
Eu não sabia como eu havia chego a tal situação. Não sabia como eu estava falando com pessoas que eu não me dava bem. Não sabia como eu havia saído de minha cama e chego até um shopping em questão de segundos.
Entretanto, tudo parecia tão real.
O ar no meu rosto. Os meus pés pisando contra a calçada. O meu estômago gemendo de fome. A minha bexiga que parecia prestes a estourar. O meu coração palpitando ao ver uma garota que eu gostava.  Já havia sentido tudo isso várias vezes em sonhos.
Porém, esse era diferente. Coisas estranhas estavam acontecendo e ninguém parecia notar, pelo menos, dentro do meu círculo social, o que era comum para um sonho. A ressaca que eu sentia era assustadoramente real, devo admitir. Porém, ainda poderia ser minha imaginação agindo enquanto eu dormia, certo?
Algo, entretanto, dizia-me que não.
Minhas memórias estavam turvas. Eric, James e Phil. Eles não pareciam reais. Eles pareciam um sonho distante compostos por memórias fragmentadas.
Quanto mais eu tentava me lembrar, menos eu me lembrava do dia em que bebemos na praia. Até mesmo a minha caminhada com o James bêbado parecia não ter acontecido.
Por outro lado, a cada instante, mais memórias pareciam surgir em minha mente sobre a festa da noite passada. Não só me lembrei de Amber. Podia me lembrar claramente de outras garotas, de amigos meus que encontrei, de dois caras que brigavam por alguma mulher, de algum moleque que havia sido traído e fazendo um escândalo sobre o ocorrido.
Depois de algum tempo, eu estava parado em algum corredor, apoiado com as costas na parede, cada vez mais certo de que eu não estava num sonho.
Meu lado emocional dizia que aquilo não era verdade, que era tudo um sonho e que eu logo acordaria. Meu lago lógico, entretanto, não conseguia achar provas daquilo.
Comecei a ficar irritado. Afinal, eu estava mais feliz no suposto sonho junto com Phil, Eric e James. Aqueles três eram alguns dos meus melhores amigos, falando besteira, saindo sem rumo pela cidade, rindo que nem idiotas. Das pessoas da festa, eu não tinha nenhum grande amigo.
Aliás, naquele meio, eu não tinha nenhum amigo próximo. Minha fase de ir para baladas não durou mais do que algumas semanas. Simplesmente não era meu estilo. Como eu havia acabado ali, eu não sabia.
Então, percebi algo.
Nessa realidade, pelo menos de acordo com Brian, eu não falava com Phil. Eric era um total desconhecido aparentemente. E quanto a James? Ele existia, mas não sabia dizer como eram as coisas entre nós.
A realidade onde eu estava começava a mostrar falha após falha. Meu lado lógico, enfim, parecia concordar que havia algo errado.
Como sempre, aquele seria o momento em que eu acordaria e, em questão de instantes, todo aquele sonho seria como alguns fragmentos de memória perdidos em minha mente.
Porém, não foi isso o que aconteceu.
Eu comecei a suar frio. Minhas mãos tremiam. Minha respiração ficava mais rápida e pesada a cada segundo.
Por que eu ainda estava ali? Por que eu ainda estava parado naquele corredor? Por que eu não havia acordado.
Não fazia sentido... A não ser que aquele fosse o mundo real, a não ser que eu já estivesse acordado.
Não... Murmurei. Não, não, não...
Levei minhas mãos até o meu cabelo. Eu tentava respirar fundo. Mas não conseguia. Eu sentia algo em minha garganta, apertando-a, sufocando-me.
Isso não pode estar acontecendo... Falei, quase sem voz. Esse não pode estar certo... Isso é só um sonho ruim... Um pesadelo...
Um pesadelo do qual você nunca vai acordar...
A voz desconhecida era grave, gélida e parecia sussurrar diretamente na minha orelha. Senti um calafrio percorrendo a minha espinha e, em seguida, veio o desespero.
***
Minha visão ficou embaçada e, então, tudo ao meu redor parecia imaterial, um caos tingido de vermelho e preto. Eu me senti preso ao chão, acorrentado e amordaçado, incapaz de fazer qualquer coisa a não ser me debater.
Eu ouvia ruídos a minha volta, gritos inclusive. Eu mal podia distinguir formas, então não tinha como eu saber o que exatamente estava acontecendo.
As correntes pareciam estar esmagando minhas costelas e pulmões. Respirar era praticamente impossível. Porém, algo pareceu explodir dentro de mim.
Eu nunca fui uma pessoa que falava alto, muito menos cantava ou gritava. Mas, droga, naquele momento, eu senti o grito mais violento que eu já tinha presenciado saindo da minha garganta, queimando minhas cordas vocais e fazendo meu próprio corpo tremer.
***
Quando percebi, eu estava de volta ao corredor. Quadros estavam destruídos, jogados em pedaços pelo chão.  Vasos haviam sido quebrados, sujando o piso com terra e flores despedaçadas. O próprio papel de parede parecia ter sido rasgado por garras, quase como se um animal selvagem tivesse passado por ali.
Algo dentro de mim tinha certeza que aquilo havia sido minha culpa, resultado de um surto.
Aquilo foi uma alucinação? Enterrei meu rosto em minhas mãos por um segundo e, então, voltei olhar para o corredor. E eu ainda fiz tudo isso num ataque de pânico...?
Eu não consegui fazer nada a não ser rir. Não foi uma risada alegre é claro. Foi algo saído da boca de um maníaco ou de alguém simplesmente desesperado. Eu não sabia dizer em qual dos dois casos eu me enquadrava.
Matt? Uma nova voz me chamou.
Um homem que eu nunca tinha visto olhava para mim, preocupado. Ele parecia arrumado demais para estar no meio daquela zona, mas, fora isso, nada de anormal com o sujeito.
O que aconteceu aqui? Ele perguntou.
Difícil dizer... Respondi. Minha própria voz soava estranha aos meus ouvidos, arrastada e grave demais. Mas, diga-me, você... Quem seria?
Rick... Não se lembra de nada ontem à noite?
Não muito bem... Eu sentia minha sanidade se esvaindo do meu corpo. Não havia nada para ser feito. Muita coisa parece... Só um sonho, sabe?
Sei... Ele suspirou. Bem... Não sei exatamente o que você bebeu ontem à noite... Se é que você só bebeu... Mas não se preocupe... Quando você acordar, você estará melhor.
Eu fiquei ali parado, sem saber o que dizer.
Rick sorriu ao ver a minha expressão, provavelmente a de um idiota espantado e boquiaberto, e seguiu o seu caminho, sumindo de minha vista.
Espere! Eu gritei enquanto corria na direção dele.
Eu segui o corredor até Rick, mas ele não mais estava lá.
Eu queria muito saber mais sobre o sujeito. Como ele poderia dizer algo como aquilo? Certamente não era uma brincadeira, não é? E então ele simplesmente sumiu, sem deixar um rastro.
No final, não importava. As palavras dele me acalmaram. Rick foi quase como um anjo, tranquilizando-me e, principalmente, devolvendo-me minha sanidade.
O resto do sonho foi como deveria ter sido. Agora são apenas memórias fragmentadas, embaçadas na minha mente.
***
Eu tive que dormir pouco depois que acordei. Afinal, eram cinco da manhã e, depois daquele inferno, eu estava exausto mentalmente.
Dormi pesadamente em seguida, acordando somente quando o meio dia estava se aproximando. Não houveram pesadelos dessa vez.
Descansado, eu pensei naquela experiência surreal, ponderando se eu teria mais um sonho como aquele, se eu sofreria enquanto vulnerável mais uma vez. Por sorte, aquilo nunca mais aconteceu.
Entretanto, nunca se sabe. Pouco menos de uma semana se passou desde o ocorrido. Poderia acontecer de novo.
Eu não poderia ficar vivendo com medo. Eu não poderia simplesmente não mais dormir. Eu não poderia simplesmente ficar questionando a realidade. Eu não poderia ficar questionando a minha sanidade.
Porém... Ainda não sei se estou na realidade correta, sabe? Eu estava simplesmente confiando na palavra do tal de Rick... E quem era ele...?
***
Sinceramente, vou parar com essa paranoia, ou tentar pelo menos. É mais fácil continuar vivendo, ou sonhando...
Se eu continuasse vivendo como estou, sinto que estaria jogando minha vida fora, não? Se essa for a verdadeira, não quero desperdiçá-la. Se não for, ainda é melhor do que viver com medo.
Enfim, espero nunca mais ter que falar sobre isso.

Adeus.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Anúncio 40

Sobre Mephisto...
Pouco tempo após a conclusão do The Conflagration - Soulless resolvi escrever aquilo que publiquei no último post do blog. Era pra ser a continuação da história, um segundo livro. Mas foi nessa época que resolvi me aventurar por outros caminhos da escrita. Aí começaram contos e mais contos, histórias curtas e precisas, romances longos que eu nem sabia como terminar, rascunhos e protótipos de texto até. Tudo que vocês já acompanham aqui, resumidamente falando. Aí Mephisto ficou de lado. Bem como Tristan.
Mas talvez tenha sido melhor assim. Essas experiências que eu passei, que eu escrevi, foram ótimas. Elas moldaram o escritor que vos escreve. E estou contente com o resultado.
No final, acho que foi melhor Mephisto ficar de lado. Mas, é claro, eu me vi quase que obrigado a postar o único capítulo. Sempre compartilhei tudo que escrevo aqui. Várias  obras inacabadas inclusive. Então, esta não poderia faltar.
Era só isso. Achei que deveria explicar sobre o texto que surgiu tão inesperadamente, bem do nada mesmo, no meu querido blog. Missão cumprida.
Até a próxima!

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Mephisto

Preparado para a sua grande estréia? Perguntou um Demônio, que manejava uma lança, para um guerreiro. O homem trajava uma armadura negra ornada com prata. Uma longa capa vermelha, em suas costas, estendia-se até chão. Nela, o símbolo das Trevas, o dragão negro, era nítido. O elmo, extremamente lustroso, de formato arredondado, protegia completamente sua cabeça, a não ser pelos olhos e boca, que tinham aberturas largas mais do que suficientes para tornar seus olhos, bem como sua boca, bem visíveis. Logo, a pele alva de seu rosto podia ser vista, bem como os lábios finos, dentes perolados e olhos extremamente azuis.
Tenho certeza que ele não terá problemas. Outro Demônio respondeu no lugar do guerreiro. Este vinha carregando um arco na mão esquerda. Atrás dele pelo menos duas dezenas de outros Demônios, manejando as mais diversas armas, pareciam esperar por algo acontecer. Afinal, ele é o filho de Nidhogg. O Demônio sorriu. Usando apenas uma máscara metálica que cobria a parte superior de seu rosto, sua boca e, conseqüentemente, suas longas presas extremamente brancas eram bem visíveis. E, ainda por cima, foi treinado por Tristan, o Escolhido do Lorde das Trevas.
Ora, fico lisonjeado com sua confiança. Disse Mephisto, o Príncipe das Trevas, com sua voz suave. Mas...não se esqueçam que eu ainda estou em fase de treinamento. Ainda sou um aprendiz de Tristan. Não se esqueçam que eu tenho apenas um mês de vida.
O primeiro Demônio riu.
Que seja. Ele deu de ombros. Você ainda é mais poderoso do que todos nós, os Demônios que se reuniram aqui, juntos.
É... O segundo Demônio concordou sem muita animação. Tenho certeza que você, Mephisto, poderia fazer essa missão sozinho. Ele bufou. Mas...um dos motivos dessa missão é ver se você sabe comandar uma tropa. Por isso que estamos aqui. O Demônio que carregava o arco se voltou para o que manejava a lança. Certo?
Com certa hesitação, o primeiro Demônio concordou, assentindo com a cabeça.
Claro, claro... Mephisto respirou fundo e, então, quase como se estivesse perdido, olhou, minuciosamente, ao seu redor.
“Eu mal conseguido acreditar...”.
A noite já havia começado horas atrás. Dezenas de nuvens escuras cobriam faziam com que as luzes das estrelas não pudessem ser vista. Entretanto, isso não se aplicava a lua, que, soberana, brilhava no céu negro. O chão, em que Mephisto e sua tropa pisavam, parecia ser coberto por um longo tapete verde acinzentado. A pouco menos de um quilômetro de distância, no topo de uma colina, cercada por um fosso, protegida por gigantescas muralhas brancas, estava uma cidade.
“A minha primeira missão...finalmente chegou”.
Mephisto sorriu.
Ah...o que tem de especial mesmo naquela cidade? Um terceiro Demônio, que carregava uma adaga em cada mão, aproximou-se, calmamente, de Mephisto e dos outros dois aliados. Para ter tanta proteção assim...o que há de tão importante lá? Eu e os outros Demônios não fazemos  ideia do porquê...
Nós descobrimos o motivo recentemente também, então, não se preocupe. O segundo Demônio respondeu animado. Ele cruzou os braços e sorriu. Acontece que existem, nessa cidade, pelo menos, algumas dezenas de seguidores da Luz especializados em criar artefatos mágicos. Logo, é bem provável que existam, pelo menos, algumas centenas de objetos valiosos que possamos destruir.
Se eles não nos destruírem antes. Disse, um pouco irritado, o primeiro Demônio. Com tantas armas da Luz...bem, nós poderemos ter problemas.
Realmente. Mephisto sorriu. Parece bem desafiador.
O primeiro Demônio parecia rosnar. O segundo, entretanto, sorriu. O terceiro ficou sem saber como reagir.
Bem...vamos? O Príncipe das Trevas perguntou animado. Eu não vou agüentar esperar tanto.
O segundo Demônio olhou em direção a cidade e coçou a nuca.
Ah...bem... Ele parecia forçar os olhos para enxergar a cidade. Vejo pouquíssimo movimento lá. Creio que todos, com exceção dos guardas que estão fazendo suas rondas, já tenham ido dormir.
Então...vamos? O terceiro Demônio perguntou com certa animação.
Mephisto sorriu. O primeiro e o segundo Demônios concordaram assentindo de leve. Rapidamente, o Príncipe das Trevas ergueu a mão direita para o alto, chamando a atenção do resto de sua tropa.
Vamos! Mephisto sorriu. Temos uma cidade para atacar e nenhum segundo a perder!
De repente, duas grandes asas, feitas a partir de trevas, surgiram nas costas do Príncipe das Trevas. Elas eram cobertas por penas cor de ébano, como as de cisnes negros. Em um instante, Mephisto se ergueu dezenas de metros no ar. Sem dizer mais nada, ele avançou em direção a cidade.
“Bem...qual será o meu primeiro ataque?”.
Ao chegar ao céu nublado que cobria a cidade, Mephisto sorriu. Ao todo, algumas dezenas de guardas, todos usando simples armaduras de aço, patrulhavam as muralhas e as ruas. As casas da cidade estavam envoltas pela escuridão da noite. Apenas alguns pontos de luz, provindos de tochas, tanto nas paredes, tanto nas mãos de guardas, podiam ser vistos em toda a extensão do local.
“Isso vai ser divertido...”.
O Príncipe das Trevas coçou a nuca.
“Ah...mas eu ainda não sei que ataque...”.
Antes que Mephisto pudesse concluir seu pensamento, uma flecha foi lançada em sua direção. Rapidamente, ele esquivou do projétil, jogando-se, em pleno ar, para a direita. Nesse momento, o Príncipe das Trevas olhou novamente para os pontos iluminados. Pelo menos duas dezenas de guardas haviam o avistado e, prontamente, já tinham seus arcos em punhos. Rapidamente, mais flechas foram atiradas. Agora, atento, Mephisto teve ainda mais facilidade em desviar dos projéteis.
Precisa de ajuda? Uma voz familiar, atrás do Príncipe das Trevas, perguntou.
Mephisto, rapidamente, voltou-se para trás. Sua tropa de Demônios havia chego. O segundo deles que havia feito a pergunta. O príncipe sorriu.
Se vocês não se incomodarem... Ele deu de ombros, ainda sorrindo. Vocês podem atacar os guardas que estão nas ruas. Eu cuido dos que estão nas muralhas.
Não houve protestos. A tropa de Demônios avançou por cima das muralhas, em direção às ruas da cidade, servindo, de maneira não proposital, como distração, fazendo com que os guardas parassem de prestar atenção em Mephisto.
“Perfeito...”.
Em um instante, pequenas descargas elétricas, de coloração azul, praticamente branco, começaram a percorrer, freneticamente, pelos braços do Príncipe das Trevas. Com um sorriso, ele apontou, com o dedo indicador direito, na direção de seus alvos. No mesmo instante, um relâmpago, com um fraco brilho azul, foi disparado de sua mão, percorrendo uma linha reta no ar até o peito de um dos guardas. Toda a descarga elétrica percorreu o corpo do guerreiro envolto pela armadura de aço. Em uma fração de segundos, o guarda caiu, sem vida, do topo da muralha. Apavorados, os outros guardas, que estavam próximos daquele que havia acabado de ser morto, voltaram-se na direção de Mephisto. O Príncipe das Trevas, soberano no céu da noite, sorriu satisfeito.
“Bem...foi fácil...”.
Os guardas nas muralhas começaram a preparar mais flechas em seus arcos. Agora, a atenção deles estava voltada exclusivamente para Mephisto.
“Agora...vamos fazer a mesma coisa...mais vezes...e mais rapidamente...”.
No total, doze inimigos estavam nas proximidades do Príncipe das Trevas. Com movimentos rápidos com as mãos, quase elegantes, Mephisto apontava na direção dos adversários. Raios atravessavam o ar. Guardas eram atingidos. Corpos caiam sem vida. Quando, enfim, flechas foram lançadas contra o Príncipe das Trevas, seis dos guardas já haviam sido mortos.
“É...está sendo tão fácil quanto Tristan disse que seria...”.
Apesar de seis flechas estarem vindo em sua direção, Mephisto parecia tranqüilo. A serenidade estava estampada em seu rosto. Rapidamente, ele estendeu as mãos. Desta vez, porém, Mephisto apontava na direção dos projéteis atirados pelos inimigos. Em um instante, mais raios foram lançados pelo Príncipe das Trevas, acertando as flechas em pleno ar, pulverizando-as sem dificuldades.
“Nada de muito diferente do treinamento até agora...”.
De repente, Mephisto percebeu chamas brilhando intensamente das ruas da cidade. Apesar da distância, ele também ouvia inúmeros ruídos. Urros triunfantes, gritos de dor, o som de metal contra metal.
“A situação parece bem mais emocionante lá em baixo...”.
Rapidamente, Mephisto se transformou em trevas e se dirigiu até a muralha. Aterrissando atrás de um dos guardas, ele, animado, olhou para as ruas da cidade. A cena era caótica. Demônios e seguidores da Luz travavam uma batalha feroz. Apesar de serem mais poderosos, os seres das Trevas estavam em menor número. Incontáveis guardas eram massacrados, com extrema facilidade, pelas armas dos Demônios. Entretanto, alguns de seus adversários, que trajavam túnicas brancas, possuíam alguns amuletos. Assim sendo, magias de Luz eram lançadas pela cidade. Os flashes aturdiam alguns Demônios. Quase uma dezena das criaturas das Trevas havia sido aniquilada.
“Nossa...”.
Mephisto estava tonto com a cena. Porém, ao mesmo tempo, ele sorria admirado.
“Isso é bem mais excitante do que eu imaginava!”.
O Príncipe das Trevas estava inquieto. Ele balançava as mãos incessantemente. Sua respiração estava acelerada. O sorriso em seu rosto parecia se expandir mais e mais.
Droga! Uma voz exclamou atrás de Mephisto.
Rapidamente, o Príncipe das Trevas se voltou para trás. Os seis guardas ainda estavam ali.
“Ah...eu quase me esqueci deles...”.
O guarda a frente de Mephisto já havia guardado seu arco nas costas e, agora, sacava sua espada da bainha. Entretanto, antes que o guerreiro pudesse atacar, uma arma surgiu na mão direita do Príncipe das Trevas. Em uma fração de segundos, a arma já havia sido cravada no peito do guarda.
Essa armadura de vocês não serve pra nada, pelo visto... Mephisto murmurou enquanto puxava sua arma de volta. Com um puxão brusco, ele recuperou o objeto. Tratava-se de um machado. De coloração cinza, quase negra, a arma tinha cerca de noventa centímetros de comprimento. O fio da lâmina da arma, vermelho como sangue, brilhava intensamente. Em ambas as faces do machado, o símbolo das Trevas havia sido feito com prata. E, agora, só restam cinco de vocês. Ele sorriu. Quanto mais rápido eu acabar com vocês, mais cedo eu vou poder ir lá para baixo. O príncipe apontou para trás, na direção das ruas da cidade. Então...é...
Antes de completar a frase, Mephisto se transformou em trevas e surgiu atrás do guarda que se encontrava mais distante dele. Antes que o guerreiro pudesse agir, o príncipe cravou seu machado nas costas de seu adversário. Os outros guardas, agora, estavam, apesar de certa distância entre cada um deles, enfileirados. Mephisto não conseguiu conter um sorriso. Em um instante, uma cópia idêntica do machado que estava em sua mão direita surgiu em sua mão esquerda. Sua imagem, de repente, tornou-se turva, como se sua forma humana e de trevas se revezassem freneticamente. Os guardas pareciam ainda mais assustados. Ziguezagueando, Mephisto avançou, velozmente, por entre os adversários. Por onde passava, o Príncipe das Trevas deixava um rastro de fumaça negra que, rapidamente, aderia ao chão, assumindo a aparência de graxa.
Pronto... Mephisto murmurou satisfeito.
Ao terminar de falar, O Príncipe das Trevas contemplou, de relance, sua arma na mão direita. Sangue escorria lentamente de sua lâmina. Os corpos dos quatro guardas caíram no chão. O primeiro tinha um corte na cintura, do lado esquerdo, que chegava até quase a coluna. O segundo tivera a cabeça decepada. O terceiro tinha um machado cravado em sua face. O último fora degolado.
“Bem...foi fácil...”.
Mephisto estendeu a mão esquerda na direção do terceiro guarda. Em um instante, o machado se transformou em trevas e se reconstituiu na mão direita do príncipe. Calmamente, ele andou até a beira da muralha, em direção ao centro da cidade. Mephisto sorriu largamente ao contemplar novamente o campo de batalha abaixo. O fogo nas construções brilhava ainda mais intensamente sob o céu noturno. O Príncipe das Trevas respirou fundo.
Aproveitando o momento? Uma voz familiar perguntou.
“Ora só...”.
Não conseguiu tanto tempo longe de mim, hein? Mephisto, sem se virar na direção do recém chegado, perguntou.
Talvez. O homem riu baixo.
O Príncipe das Trevas ergueu os machados em direção a lua, quase como um alongamento, e sorriu.
Bem...eu já volto. Disse e, então, olhou para trás rapidamente. O homem com quem ele falara trajava uma armadura completamente negra. Sua pele branca contrastava com os longos e lisos cabelos cor de ébano. Apesar do rosto jovem, sua expressão séria revelava os horrores que ele já havia presenciado. Entretanto, a característica mais marcante era, certamente, o seu olhar imponente, composto por dois olhos inteiramente vermelhos e penetrantes. Tente não se preocupar demais, Tristan.
O guerreiro das Trevas sorriu.
Tentarei. Ele respondeu. Mas, sinceramente, eu estou mais preocupado com esses pobres seguidores da Luz.  Eles não têm chance de sobreviverem e nem sabem disso.
Mephisto riu.
É...verdade. Ele concordou sorrindo e, rapidamente, voltou a olhar para o campo de batalha.
“Ah...”.
Restam quatro Demônios, pelo que eu estou vendo. Disse Tristan. Melhor você se apressar. Não creio que deixar todos eles morrerem seria muito bom para sua reputação. Ele gargalhou. Por outro lado, você é o filho de Nidhogg. Não creio que algo possa acabar com sua reputação. O guerreiro coçou a nuca. Ah...enfim...vá logo. Eu consigo ver nos seus olhos que você não agüenta mais esperar.

Mephisto assentiu com a cabeça. Rapidamente, suas asas surgiram. Ele ascendeu no céu da noite e, rapidamente, voou em direção ao meio do caos do campo de batalha.

sábado, 12 de novembro de 2016

A Rainha Vermelha, Capítulo 4

Capítulo 4



Não havia uma estratégia muito bem definida. Pelo menos, não havia necessidade de ter uma.
A Inquisição havia acabado de tomar o prédio abandonado. Uma fábrica há tempos; agora, nada mais que um conjunto de salas e corredores empoeirados. Os soldados iam de um lado para o outro, carregando caixas com mantimentos e armamentos, fortificando barreiras, montando seu sistema de segurança, organizando-se como podiam. A base ficaria inteiramente funcional dentro de algumas horas. Tempo que não tinham e nem sabiam.
O ronco dos motores veio então. Dezenas de carros vinham do horizonte. Eles surgiam de todas as direções, estremecendo a terra seca sob seus pneus, assustando os calangos para fora da estrada, levantando uma densa cortina de poeira por onde passavam. Em poucos instantes a base estava cercada.
Homens e mulheres saíram dos carros. Todos com armas pesadas. Nenhum com a intenção de economizar munição.
O tiroteio começou. Rajadas de metralhadoras gritavam, quase em uníssono, aniquilando os soldados fora da base. Granadas voavam para além dos muros da velha fábrica, explodindo junto aos desafortunados que estavam no pátio térreo. Atiradores de elite matavam os que se julgavam seguros, agindo protegidos pelas barreiras de metal que eram seus carros.
A Inquisição podia ter sido surpreendida, mas não ficaria assustada. Não sob as ordens de seu comandante.
As medidas de contra-ataque foram logo ordenadas. Grande parte do contingente dos soldados se mobilizou para as janelas da base, abrindo fogo contra os inimigos abaixo. Gideon ordenou a execução imediata de qualquer invasor no território, permitindo o uso de quantas granadas julgassem necessárias. As unidades remanescentes da Inquisição tentavam se organizar dentro da base, posicionando-se em locais que pudessem realizar emboscadas facilmente. A mente por trás da defesa da base deveria ser defendida a todo custo.
A Rainha soprou uma baforada de fumaça para fora da janela. Ela ainda estava dentro do carro blindado em que viera. Junto dela, Alexander e o motorista, um sujeito conhecido como Lince, aguardavam pacientes pelas ordens.
Hm... A Rainha Vermelha ouvia a sinfonia de tiros e explosões que recheava o ar, apenas aguardando o momento certo. Então, socou de leve o próprio abdômen, certificando-se novamente que seu colete de kevlar estava sob o terno.   Só mais alguns instantes...
Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis segundos. Esse foi o tempo que se passou até que uma explosão, significativamente maior que as anteriores, estremecesse o chão. Outras duas vieram então, uma após a outra.
Esse foi o sinal. A rainha anunciou e, então, levou uma mão até o bolso. De lá, retirou um velho soco inglês feito de bronze. Nele, lia-se a inscrição Ambrose. Ela abriu um sorriso confiante ao contemplar o amuleto da sorte que carregava a mais de duas décadas.  É... Ela guardou o antigo presente do pai. Agora é a hora.
O Lince assentiu, saindo rapidamente do veículo com um fuzil em mãos. Alexander foi o próximo a sair, carregando um rifle de precisão nas costas, seguido pela Rainha e sua submetralhadora.
Os três podiam ver claramente dali: um rombo havia sido aberto em uma das paredes. Aquela era uma das três novas entradas para a base inimiga. Tudo graças aos seus especialistas em demolição e aos seus explosivos plásticos.
Eles nunca decepcionam. A Rainha abriu um sorriso discreto e, então, olhou para o alto. Seu olhar se perdeu. Parecia contemplar as nuvens escuras no céu quase como algo surreal. Não chove faz um tempo... É quase como...
O som de um tiro calou sua boca. O projétil, entretanto, não a acertou. O alvo foi o peito de Alexander. Com exceção de um novo buraco feito em sua camisa velha, nada aconteceu com o gigante.
A Rainha recobrou sua atenção. Ela parecia se distrair com coisas que, para outros, são mundanas quando estava nervosa. Tentaria não repetir o erro.
O atirador deveria estar confuso, tentando entender como o alvo, desprotegido, não havia caído morto. A Rainha deveria usar bem esse tempo. Então, deixou sua submetralhadora de lado. Pegou rapidamente o rifle que Alexander carregava. Aproximou um olho da luneta da arma. Olhou para onde o tiro havia partido. Encontrou seu alvo. Respirou fundo. Prendeu a respiração. Mirou na cabeça do desgraçado. Apertou o gatilho.
Quando sua vítima caiu morta, a Rainha exalou o ar que prendia. Sentiu, então, o sangue correndo mais rápido por suas veias. Fazia algum tempo que ela não atirava com um rifle daqueles. Ficou feliz de ver que não tinha perdido o jeito.
A Rainha colocou a arma de volta nas costas do gigantesco companheiro. Agora, precisaria de algo que atirasse mais rápido. Com a submetralhadora em mãos, ela avançou lado a lado com o Lince, ambos disparando rajadas de balas fervorosas, ambos protegidos pelo tanque desenfreado que era Alexander
Não demorou muito para que o trio chegasse até a entrada que haviam avistado. Sem hesitarem, adentraram a base inimiga descarregando as balas remanescentes de seus cartuchos. A chegada deles era esperada após a explosão. Foi isso o que pensaram. E pensaram certo. A emboscada de quatro soldados foi rapidamente neutralizada pelos disparos.
Enquanto recarregavam suas armas, os dois atiradores deram uma última olhada para trás, certificando-se que ninguém os seguia, que ninguém os vigiava. Seus olhos então se arregalaram ao ver um objeto esverdeado, tão grande quanto o punho de um adulto, cruzando o céu rapidamente até onde estavam.
O tempo parecia desacelerar à medida que a granada se aproximava. O que parecia minutos se passou e o artefato ainda pairava no ar. O grupo já devia ter corrido para longe. Talvez ainda fosse possível se salvar se agissem logo.
Alexander! A Rainha bradou.
Então, o gigante agiu pelo grupo. Ele ergueu o braço maciço para o alto, agarrando a granada no ar.
Perplexo, o soldado da Inquisição observou a cena. Não conseguiu nem esboçar reação quando o artefato voltou em sua direção, com a velocidade de uma bala de canhão, chocando-se contra seu peito e o derrubando suas costas contra o chão.
Ninguém precisava assistir a cena para saber o final dela. Atordoado no chão, o infeliz soldado conheceu seu fim quando a granada explodiu sobre seu corpo débil.
Com a certeza de que não estavam sendo mais perseguidos, os três prosseguiram pela velha fábrica.
Tendo a dianteira protegida pelo gigante, a dupla armada parecia avançar quase despreocupada. Quando Alexander avançava, atacava os soldados da Inquisição sem hesitar, arremessando-os contra paredes, quebrando seus ossos como se fossem de vidro, jogando-os como projéteis contra os demais inimigos, provocando o pânico de quem via a cena. Muitos largavam as armas no chão e corriam por suas vidas. Poucos mantinham a calma para tentarem atirar contra os outros dois membros do trio que, com frieza, fuzilavam os adversários remanescentes.
Uma. Duas Três. Quatro. Cinco. Esse foi o número de emboscadas consecutivas fracassadas contra o pequeno grupo. Eles pareciam invencíveis. Sentiam-se invencíveis. Mas não eram.
Três logo se tornaram dois. Um deslize mínimo foi o suficiente para que o Lince voltasse a se enxergar como um mortal. Após um tiro abrir um buraco profundo em sua coxa, ele sabia que não conseguiria mais acompanhar a Rainha e Alexander. Sem querer parecer fraco, o homem manteve sua arma em mãos e pediu para que os dois fossem em frente, sem saber se sobreviveria ao sangramento. Disse que ficaria ali até alguma ajuda chegar. Prometeu matar qualquer inimigo que por ali passasse. Sua chefe não discordou da decisão. Ela logo partiu com Alexander.
Mais uma. Então duas. Enfim outras três emboscadas sobrevividas. Todas usando a mesma tática. Agora, ainda mais efetiva. A dupla conseguia compensar um atirador a menos com seu entrosamento. Era algo que não conseguiam explicar direito. Leitura corporal. Pressentimento. Sorte. Tudo parecia influenciar a performance dos dois, tudo os deixava mais fortes. Nenhum dos dois morreria enquanto estivessem juntos.
Então, chegaram ao último andar.
A Rainha foi saudada por um sopro de ar gélido, algo que pareceu tirar o calor de todo seu corpo. Olhou para o alto, através de um grande buraco no teto, em direção ao céu nublado acima. Não sabia dizer o motivo do calafrio, uma ventania fria antes da chuva ou um verdadeiro mau pressentimento. Talvez os dois? Não importava. Decidiu ignorar e seguir em frente.
Mais uma emboscada sobrevivida sem problemas e sem surpresas. Aquilo deveria ter a acalmado, ter provado a si mesma mais uma vez que não seria derrubada por nada nesse mundo. Mas não. Seu coração batia mais rápido do que antes, mais rápido a cada instante. Seu corpo só relaxaria quando a maior ameaça estivesse morta diante de seus pés.
Uma porta fechada. Lá, bem no final do corredor que estavam. Era velha, podre, quase caindo das dobradiças. A Rainha poderia a derrubar se precisasse, sem pedir pela ajuda a Alexander. Mas acabou não precisando. Ela estava destrancada. Precisou apenas de um giro na maçaneta e um leve empurrão. Pronto. Assim foi aberta.
Após emitir seu longo e estridente rangido, a porta revelou uma nova e decrépita sala. Mas a dupla não entrou de imediato.
Passos. Poucos, quase inaudíveis. Mas eram passos. A Rainha tinha certeza. Alexander tinha certeza. Por isso a dupla hesitou, por isso se voltaram para trás e aguardaram por algo, ou alguém. Mas além do relativo silêncio aconteceu.
Após alguns segundos, ficou claro que nada aconteceria, não enquanto estivessem ali parados. Por isso resolveram seguir em frente. Suas guardas, é claro, não baixaram.
Aquele deveria ser o ponto mais danificado de toda a velha fábrica. Não havia praticamente mais teto, a chuva logo banharia o salão como já tinha feito inúmeras vezes antes. As paredes pareciam ter sido corroídas pelo tempo, débeis, prontas para ceder se forçadas mesmo que pouco. O chão rangia a cada passo que recebia, soava ainda pior que a porta de entrada. O que era exatamente o lugar? Não sabiam. E nem pensavam sobre.
Então, algo de metal quicou levemente no chão, rolando ruidosamente até os pés da dupla. Do tamanho de uma lata de comida, o artefato permaneceu inerte por uma mísera fração de segundos. Então, houve um clique metálico.
É claro que Alexander protegeria a Rainha. Conteria sua força quando a empurrasse, mandando-a mais de um metro para trás mesmo assim. O gigante se jogaria sem hesitar sobre o explosivo, formando uma concha sobre a lata de metal.  Ele absorveria todo o impacto, impediria que os estilhaços chegassem até a amiga como já havia feito antes. Ambos sairiam ilesos mais uma vez.
Porém, não foi o que aconteceu.
Não houve uma explosão, apenas uma pequena ruptura. Uma parte da lata de metal se abriu, exalando um gás adocicado. Subindo rapidamente, o veneno dispersou-se apenas o suficiente. Em poucos instantes, o gigante estava envolto por uma densa nuvem púrpura.
Pela boca. Pelo nariz. Pelos poros da pele. O gás penetrou o corpo de Alexander, mais e mais a cada segundo. Desorientado, o gigante começou a cambalear, movendo seus braços e pernas com uma fúria inútil. Seus pulmões se retorciam, ingerindo o veneno, expulsando o ar de seus interiores, murchando e enegrecendo.  
Não... A Rainha murmurou sem conseguir acreditar no que via. Alexander...
O guardião caiu de joelhos. Suas outrora fortes mãos estavam agora trêmulas. Seus olhos, secos, ardiam com uma cor rubra. Seu coração batia mais lentamente a cada instante que se passava. No lugar de um urro estrondoso como de um urso, um suspiro silencioso saiu de seus lábios. Então, o gigante entrou em colapso. Seu peito atingiu o chão. Seus braços, inertes, não puderem impedir a queda.
Sua respiração cessou.
Alexander não mais se moveu.
Alexander... Ela chamou o amigo mais uma vez em vão.
Eu mal posso acreditar... Disse uma voz abafada. Não é que funcionou...?
Ela não sabia dizer de onde as palavras vinham.
Achei que o grandão aí fosse invencível... A voz continuou. Mas, olha só, o pessoal do laboratório tava certo...
Seus olhos se arregalaram ao reconhecer a voz.
A Rainha levantou com as pernas bambas. Seu coração batia quase para fora de seu peito. Suas mãos tremiam, quase derrubando a arma.
Um gás tóxico sem igual... O comandante da Inquisição murmurou. Um veneno capaz de fazer qualquer ser vivo sufocar até seus últimos instantes de vida...
A voz parecia se mover. O desgraçado não permanecia parado por muito tempo. Ela sabia disso. Mesmo assim, não era capaz de encontrá-lo.
Uma arma capaz de eliminar qualquer forma de vida... Prosseguiu. Bactérias, plantas, animais, pessoas... E até aberrações como essa... Emissários do caos... Monstros vindos direto do Inferno... Para lá devem retornar...
A Rainha apontava a arma para o alto, movendo-a freneticamente de um canto para o outro. O canalha estava acima dela, rondando-a como uma fera, decidindo qual seria o melhor momento para o ataque.
Disso ela tinha certeza. Ele estava ali. Certo? Talvez não. Talvez ele estivesse a enganando de alguma forma. Talvez seus próprios sentidos a estivessem traindo. Suas incertezas aumentavam e se fortaleciam a cada batida de seu coração inquieto.
Isso mostra como toda vida é efêmera... Frágil... Tão fácil de quebrar... Ele riu. Não concorda... Sophia?
Uma rajada de tiros. Porém, nada a rainha acertou. Ela nem mesmo tinha seus olhos abertos no instante. E por um momento, pensou que seria melhor não mais abri-los.
Seus dedos tremiam. Suas mãos tremiam. Seus braços tremiam. Seu corpo tremia. Não sabia dizer se sentia medo. Não sabia se sentia raiva. Não sabia mais o que esperar.
Andando pela sala sem rumo, seus olhos acabaram por pousar sobre o corpo de Alexander. A Rainha engoliu em seco. Sentiu um vento gélido atingir seu corpo novamente.
O que mais aquele monstro podia usar contra ela? Se o desgraçado podia matar até Alexander, como pensar em sair viva de lá? Por quanto tempo mais ele a torturaria? Por quanto tempo ele continuaria seu jogo, lambendo seus lábios, aproveitando cada segundo do desespero de sua presa?
A resposta veio em seguida.
O som veio de trás dela. O rangido agudo do chão se somou ao estrondo grave da aterrissagem do predador.
Então, o tempo entrou em estado de torpor.
A Rainha se voltou para trás. Seu dedo não conseguiu apertar o gatilho a tempo. A arma foi arrancada de suas mãos. Antes que pudesse reagir, a coronha da arma foi de encontro com sua cabeça. Um baque surdo. O golpe a deixou desorientada por um segundo. Quando percebeu, uma mão se lançou até seu pescoço, agarrando-a com destreza, jogando-a contra uma parede, sufocando-a com prazer.
Aos poucos, a visão da Rainha pareceu conseguir focar no agressor. A roupa blindada era cinzenta, reforçada como uma armadura. Todo o corpo era coberto, incluindo o rosto, fazendo-o parecer ainda menos humano. Nas costas, carregava uma arma: uma metralhadora que, se tivesse sido usada, já teria tirado a vida da presa. Na cintura, uma faca simples, afiada apenas o necessário: um novo instrumento de tortura para brincar com a vítima.
Fazia tempo que eu não fazia isso contigo... O monstro riu. Apertar esse seu pescoço, sentir seus ossos rachando na minha mão, ver você perdendo os sentidos bem diante de meus olhos... Mas... Ele analisou a presa calmamente. Você não parece estar com tanto medo... Não como da última vez... Hm... Por que será...? Será que você ficou mais durona...? Imune ao medo...? Sua própria risada veio em seguida. Não... Improvável...
A Rainha foi solta. Suas pernas fracas cederam, caindo sentada perante o predador. Ela nem conseguia pensar. Tinha que recuperar o ar perdido, então o fez. Arfando, parecia ter se esquecido de toda a cena por um instante.
Então, algo a trouxe de volta para a realidade. Era o som de alguma coisa acertando o chão de madeira. A Rainha olhou lentamente na direção do objeto. Era a máscara do monstro.
Sophia... Ele cantou o nome. Olha pra cá, Sophia...
A Rainha olhou para baixo, tentando desviar o olhar, evitando o que sabia que estava atrás da máscara. Mas não tinha como fugir.
Dedos revestidos de metal apertaram seu rosto, segurando-a pela mandíbula, apertando-a com força, forçando-o para onde olhar.
Os olhos de Sophia, então, encheram-se de medo como não acontecia em anos.
Um sorriso largo que retorcia o rosto. Dentes brancos que mais pareciam presas. Olhos azuis que emitiam um brilho doentio. Um riso maníaco que se deleitava com a cena.

Medo... Gideon Allard murmurou. Medo verdadeiro... Medo incontestável... Ele gargalhou. Perfeito... Sua faca se aproximou do rosto pálido da presa. Agora sim... O toque da lâmina gélida fez Sophia tremer. Agora sim posso começar a me divertir... Me divertir como não faço há anos...