quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O Julgamento das Chamas, Capítulo 1 (Incompleto)

Capítulo 1


Monte de Ferro. Esse era o nome da cidade cinzenta, apenas mais um antro mofado regido por bandidos metidos a mafiosos. Um bando de brutamontes armados com escopetas e rifles. Nada mais do que isso. Não tinham classe, tampouco ética. Mas ofereciam proteção para a população. Apenas para os que pudessem arcar com os preços obviamente. Esses poucos, um punhado de donos de comércios prósperos, podiam agradecer por manter seu pouco luxo no meio da podridão que os cercava.
Não que os mais pobres não tivessem que pagar para lá viver. O pouco dinheiro que tinham era arrancado de seus dedos magros. Impostos justificavam os lidere locais. Benefício algum traziam para a população necessitada. Apenas mantinham seus ossos inteiros e suas famílias em casas miseráveis.
Deve-se reconhecer que faziam um bom papel de governo. E nenhum habitante de Monte de Ferro tinha forças de contrariar o poder autoproclamado. Nenhum era louco para tanto.
Um temporal chegava ao fim. Ou parava por uns poucos momentos pelo menos. O céu coberto por nuvens negras anunciava a possível volta das chuvas. Mas já era o suficiente. O povo voltaria às ruas, de volta às suas vidas mundanas.
Das casas. Dos prédios. Dos barracos. Das caixas de papelão nos becos. Debaixo de cobertores de jornais sob as pontes. A população emergia para fora de seus lares, rastejando quase sem vida. Suas caras pálidas eram tão sem vida quanto o solo estéril da cidade. Seus braços e pernas moviam-se tão lentamente quanto os pingos das goteiras. Suas vozes eram fracas como os ventos que não conseguiam expulsar as nuvens do céu.
E assim a vida seguia em frente.
Rita não era diferente. Sabia que não podia ficar parada. Ela saia de sua viela, correndo, puxando o irmão mais novo pela mão. Ambos descalços. Ambos vestindo vestes esfarrapadas. Ambos cobertos por mantos escuros encharcados pela chuva. Ambos à procura de um bico. Qualquer trabalho que pudessem fazer. Não importava o quão pouco pagassem. Só precisavam de um pouco, apenas o suficiente para terem comida pro dia. O amanhã não era preocupação para o agora. Todo dia vivam por esse lema.
Os passos rápidos pareciam galopar pelas ruas tão conhecidas pela dupla. Desviavam de pessoas. Pulavam poças. Escalavam muros. Tudo como se fosse uma brincadeira. Uma tentativa de escapar da realidade. Por alguns poucos instantes, momentos preciosos para não pensarem em nada.
Porém, toda a pressa cessou em um segundo.
Os pés de Rita fincaram-se no chão. Seu braço puxou seu irmão com um solavanco. O garoto estava prestes a reclamar quando viu a cena.
Oito membros da polícia local se aproximavam. Homens e mulheres. Todos armados. Todos pálidos. Todos vestindo roupas surradas. Quase pareciam cidadãos comuns do Monte de Ferro. Porém, o grupo parecia alegre, cantarolando e rindo alto com a energia que faltava aos demais moradores. De fato, pareciam sempre estar assim. O misto da autoridade que tinham sobre a população com sua ignorância de berço parecia ser um dos caminhos para a felicidade.
O bando poderia resolver implicar com qualquer um dos pobres civis. Seria divertido para eles. Nunca parecia perder a graça. Mas não era isso o que preocupava Rita. O grupo tinha um nono integrante. E ele era o que chamava atenção.
Cabelos loiros bem penteados. Olhos verdes estonteantes. Dentes brancos perfeitos. Terno preto impecável. Sapatos escuros lustrosos. Era obviamente uma figura que não pertencia aquele lugar.
Delacroix... Rita murmurou irritada.
Era um palpite impossível de se errar. Lá estava Dario Delacroix, um dos três herdeiros da mineradora que usurpam as riquezas da cidade. Monte de Ferro não era um nome sem explicação afinal.
Rita trincou os dentes. Ela sabia que os desgraçados da família Delacroix podiam ser bons. Podiam investir na cidade. Tirar o poder das mãos dos bandidos. Ajudar a população para o próprio lucro. Não era nenhum sonho utópico. Era uma alternativa viável. Porém, não era a mais fácil. Seria muito mais econômico e prático se aliar à alcateia que mandava naquela terra melancólica.
Os irmãos apenas observavam a passagem do grupo pela rua. Todos pareciam fazer o mesmo, saindo do caminho. As pessoas corriam para as calçadas, subiam em muretas ou até entravam em casas. Não queriam problemas, não daquele tamanho. Porém, nunca tiravam os olhos atentos do forasteiro e de sua escolta armada. Era uma cena rara afinal, algo que prendia o olhar de qualquer um querendo ou não.
Mas tinha que haver uma exceção à regra.
Um homem correu aos tropeços até Dario. Parou apenas ao cair de joelhos perante o magnata. Suas mãos logo se juntaram, dedos se entrelaçaram, num sinal de súplica.
Me ajude... Ele implorou com a voz fraca. Eu sei que você pode... Sei que tem um coração bondoso...
A população olhou perplexa para o sujeito. Não tinham reação. Apenas continuaram observando boquiabertos.
A milícia já estava pronta para despachar o débil homem. Nem pensaram em gastar munição. Duas mãos já haviam ido até os braços do cidadão, cada uma agarrando um membro. Aquele corpo magro seria arremessado para longe e risos viriam em seguida.
Porém, o inesperado aconteceu.
Esperem! Pediu Dario forçando uma voz mais máscula que a de costume. Soltem esse homem.
Os capangas obedeceram. O herdeiro se aproximou do homem e o analisou.
Era velho. Algo entre setenta e oitenta anos. O corpo era esquelético. As roupas largas pareciam trapos. A cabeça do homem era calva. Sua barba por fazer estava amarelada. Sua pela era escura. As rugas cobriam o rosto cansado. O desespero emanava dele bem como um forte odor corporal. Um fraco brilho de esperança resistia nos olhos opacos. Parecia que não duraria por muito tempo.
O rosto de Dario pareceu se retorcer de nojo por um breve instante. Seu olhar brevemente julgou como sendo patético o homem ajoelhado perante de si. Palavras que nunca escaparam ficaram presas em sua garganta.
Por fim, o magnata respirou fundo e sorriu. Levou uma mão até um bolso, dedos rápidos procurando por algo. E encontrou. Um punhado de moedas. Simples, sem valor para alguém que ostentava gastos na casa dos milhares em seu dia a dia. Porém, lá estavam elas. Pequenos círculos de metal lá plantados com um objetivo em mente.
Sem hesitar, Dario retirou as moedas do bolso e entregou para o homem desesperado. Com um sorriso estampado no rosto, tentava não pensar nas mãos sujas que tocava.
Não precisava agradecer. Pediu sabendo que não seria obedecido. Apenas fiz o que qualquer boa pessoa faria.
O velho olhou para as poucas moedas em suas mãos. Era pouco, mas era mais do que ele estava acostumado a ver. Mal podia acreditar. Suas mãos tremiam emocionadas. Colocou o dinheiro, com pressa, num bolso arregaçado. Então, agradeceu o magnata reverenciando-o com gratidão genuína. Quase fez o homem parecer um santo milagreiro que curava lepra.
Foi exatamente como Dario queria.
Deve estar se sentindo bem. Disse alguém que se aproximava.
A fala chamou a atenção. A voz era grave, imponente, reverberando pelos corredores de ruas da cidade, viajando até o ouvido de cada pessoa presente ali. Não demorou para que identificassem o sujeito que se aproximava.
Camisa negra. Calças negras. Botas negras. Tudo parecia se misturar numa única peça. O sobretudo era o que destacava na multidão. Era cinza como o aço, adornado com marcas intensas cor de vinho, fluindo da cintura para baixo como uma capa. As mãos brancas traziam tatuagens, símbolos escarlates que ninguém dali conhecia. O rosto carregava uma expressão madura e serena que contrastava com a idade de não mais que trinta anos. O cabelo e olhos castanhos davam um quase mundano para o homem. Porém, sua aura não deixava essa ideia perdurar.

Ajudar alguém sem pedir nada em troca. Disse a figura, cativando seus ouvintes. Eis a definição de uma ação altruísta. Algo realmente belo... Tão belo quanto irreal.

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