Capítulo 1
Monte de Ferro. Esse era o nome da cidade cinzenta, apenas
mais um antro mofado regido por bandidos metidos a mafiosos. Um bando de
brutamontes armados com escopetas e rifles. Nada mais do que isso. Não tinham
classe, tampouco ética. Mas ofereciam proteção para a população. Apenas para os
que pudessem arcar com os preços obviamente. Esses poucos, um punhado de donos
de comércios prósperos, podiam agradecer por manter seu pouco luxo no meio da
podridão que os cercava.
Não que os mais pobres não tivessem que pagar para lá viver.
O pouco dinheiro que tinham era arrancado de seus dedos magros. Impostos justificavam os lidere locais.
Benefício algum traziam para a população necessitada. Apenas mantinham seus
ossos inteiros e suas famílias em casas miseráveis.
Deve-se reconhecer que faziam um bom papel de governo. E
nenhum habitante de Monte de Ferro tinha forças de contrariar o poder
autoproclamado. Nenhum era louco para tanto.
Um temporal chegava ao fim. Ou parava por uns poucos
momentos pelo menos. O céu coberto por nuvens negras anunciava a possível volta
das chuvas. Mas já era o suficiente. O povo voltaria às ruas, de volta às suas
vidas mundanas.
Das casas. Dos prédios. Dos barracos. Das caixas de papelão
nos becos. Debaixo de cobertores de jornais sob as pontes. A população emergia
para fora de seus lares, rastejando quase sem vida. Suas caras pálidas eram tão
sem vida quanto o solo estéril da cidade. Seus braços e pernas moviam-se tão
lentamente quanto os pingos das goteiras. Suas vozes eram fracas como os ventos
que não conseguiam expulsar as nuvens do céu.
E assim a vida seguia em frente.
Rita não era diferente. Sabia que não podia ficar parada.
Ela saia de sua viela, correndo, puxando o irmão mais novo pela mão. Ambos
descalços. Ambos vestindo vestes esfarrapadas. Ambos cobertos por mantos
escuros encharcados pela chuva. Ambos à procura de um bico. Qualquer trabalho
que pudessem fazer. Não importava o quão pouco pagassem. Só precisavam de um
pouco, apenas o suficiente para terem comida pro dia. O amanhã não era preocupação para o agora. Todo dia vivam por esse
lema.
Os passos rápidos pareciam galopar pelas ruas tão conhecidas
pela dupla. Desviavam de pessoas. Pulavam poças. Escalavam muros. Tudo como se
fosse uma brincadeira. Uma tentativa de escapar da realidade. Por alguns poucos
instantes, momentos preciosos para não pensarem em nada.
Porém, toda a pressa cessou em um segundo.
Os pés de Rita fincaram-se no chão. Seu braço puxou seu
irmão com um solavanco. O garoto estava prestes a reclamar quando viu a cena.
Oito membros da polícia local se aproximavam. Homens e
mulheres. Todos armados. Todos pálidos. Todos vestindo roupas surradas. Quase
pareciam cidadãos comuns do Monte de Ferro. Porém, o grupo parecia alegre,
cantarolando e rindo alto com a energia que faltava aos demais moradores. De
fato, pareciam sempre estar assim. O misto da autoridade que tinham sobre a
população com sua ignorância de berço parecia ser um dos caminhos para a
felicidade.
O bando poderia resolver implicar com qualquer um dos pobres
civis. Seria divertido para eles. Nunca parecia perder a graça. Mas não era
isso o que preocupava Rita. O grupo tinha um nono integrante. E ele era o que
chamava atenção.
Cabelos loiros bem penteados. Olhos verdes estonteantes.
Dentes brancos perfeitos. Terno preto impecável. Sapatos escuros lustrosos. Era
obviamente uma figura que não pertencia aquele lugar.
—
Delacroix... — Rita
murmurou irritada.
Era um palpite impossível de se errar. Lá estava Dario
Delacroix, um dos três herdeiros da mineradora que usurpam as riquezas da
cidade. Monte de Ferro não era um nome sem explicação afinal.
Rita trincou os dentes. Ela sabia que os desgraçados da
família Delacroix podiam ser bons. Podiam investir na cidade. Tirar o poder das
mãos dos bandidos. Ajudar a população para o próprio lucro. Não era nenhum
sonho utópico. Era uma alternativa viável. Porém, não era a mais fácil. Seria
muito mais econômico e prático se aliar à alcateia que mandava naquela terra
melancólica.
Os irmãos apenas observavam a passagem do grupo pela rua.
Todos pareciam fazer o mesmo, saindo do caminho. As pessoas corriam para as
calçadas, subiam em muretas ou até entravam em casas. Não queriam problemas,
não daquele tamanho. Porém, nunca tiravam os olhos atentos do forasteiro e de
sua escolta armada. Era uma cena rara afinal, algo que prendia o olhar de
qualquer um querendo ou não.
Mas tinha que haver uma exceção à regra.
Um homem correu aos tropeços até Dario. Parou apenas ao cair
de joelhos perante o magnata. Suas mãos logo se juntaram, dedos se
entrelaçaram, num sinal de súplica.
—
Me ajude... — Ele
implorou com a voz fraca. —
Eu sei que você pode... Sei que tem um coração bondoso...
A população olhou perplexa para o sujeito. Não tinham
reação. Apenas continuaram observando boquiabertos.
A milícia já estava pronta para despachar o débil homem. Nem
pensaram em gastar munição. Duas mãos já haviam ido até os braços do cidadão,
cada uma agarrando um membro. Aquele corpo magro seria arremessado para longe e
risos viriam em seguida.
Porém, o inesperado aconteceu.
—
Esperem! — Pediu
Dario forçando uma voz mais máscula que a de costume. — Soltem esse homem.
Os capangas obedeceram. O herdeiro se aproximou do homem e o
analisou.
Era velho. Algo entre setenta e oitenta anos. O corpo era
esquelético. As roupas largas pareciam trapos. A cabeça do homem era calva. Sua
barba por fazer estava amarelada. Sua pela era escura. As rugas cobriam o rosto
cansado. O desespero emanava dele bem como um forte odor corporal. Um fraco
brilho de esperança resistia nos olhos opacos. Parecia que não duraria por
muito tempo.
O rosto de Dario pareceu se retorcer de nojo por um breve
instante. Seu olhar brevemente julgou como sendo patético o homem ajoelhado
perante de si. Palavras que nunca escaparam ficaram presas em sua garganta.
Por fim, o magnata respirou fundo e sorriu. Levou uma mão
até um bolso, dedos rápidos procurando por algo. E encontrou. Um punhado de
moedas. Simples, sem valor para alguém que ostentava gastos na casa dos
milhares em seu dia a dia. Porém, lá estavam elas. Pequenos círculos de metal
lá plantados com um objetivo em mente.
Sem hesitar, Dario retirou as moedas do bolso e entregou
para o homem desesperado. Com um sorriso estampado no rosto, tentava não pensar
nas mãos sujas que tocava.
—
Não precisava agradecer. —
Pediu sabendo que não seria obedecido. —
Apenas fiz o que qualquer boa pessoa faria.
O velho olhou para as poucas moedas em suas mãos. Era pouco,
mas era mais do que ele estava acostumado a ver. Mal podia acreditar. Suas mãos
tremiam emocionadas. Colocou o dinheiro, com pressa, num bolso arregaçado.
Então, agradeceu o magnata reverenciando-o com gratidão genuína. Quase fez o
homem parecer um santo milagreiro que curava lepra.
Foi exatamente como Dario queria.
—
Deve estar se sentindo bem. —
Disse alguém que se aproximava.
A fala chamou a atenção. A voz era grave, imponente,
reverberando pelos corredores de ruas da cidade, viajando até o ouvido de cada
pessoa presente ali. Não demorou para que identificassem o sujeito que se
aproximava.
Camisa negra. Calças negras. Botas negras. Tudo parecia se
misturar numa única peça. O sobretudo era o que destacava na multidão. Era
cinza como o aço, adornado com marcas intensas cor de vinho, fluindo da cintura
para baixo como uma capa. As mãos brancas traziam tatuagens, símbolos
escarlates que ninguém dali conhecia. O rosto carregava uma expressão madura e
serena que contrastava com a idade de não mais que trinta anos. O cabelo e
olhos castanhos davam um quase mundano para o homem. Porém, sua aura não deixava
essa ideia perdurar.
—
Ajudar alguém sem pedir nada em troca. —
Disse a figura, cativando seus ouvintes. —
Eis a definição de uma ação altruísta. Algo realmente belo... Tão belo quanto
irreal.
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