Eu Deveria Estar Feliz?
Eu me lembro muito bem do rosto do garoto. Droga, não acho
que poderia ser capaz de esquecer.
Lembro-me de estar andando de volta para casa, cinco anos
atrás, pegando o trajeto que sempre fazia. Passava por algumas ruas consideradas
não muito amistosas, mas, ei, tive sempre a sorte de não ser assaltado. E
aquele dia não foi diferente. Só não esperava ver aquela cena.
Um grupo de garotos, três no total, espancava um quarto
menino. Deveriam ter todos uns catorze anos. Eram da mesma escola já que
vestiam o mesmo uniforme. Colegas de classe? Qual seria o desentendimento? Então
consegui reparar no rosto do jovem estirado no chão e senti meu estômago
embrulhando.
Vamos apenas dizer que a história de meu país tem passagens
que me envergonham profundamente. Uma gente podre que discrimina com orgulho.
Vermes que andam em bandos. Desgraçados saudosistas de uma época nojenta. Gente
que eu não gostava de chamar de gente. Um povo que enxotava quem era visto como
diferente.
Eu gritei. Acho que foi o mais alto que já consegui. De mim
veio uma voz tão grave que quase não reconheci como minha. Foram ameaças mais que
suficientes para forçar o trio covarde a correr para longe.
Com um sangue ainda fervendo, corri até o quarto menino. Ainda
respirava. Graças a Deus.
Vi com receio os hematomas que se formavam. Temia que
tivesse algum osso quebrado. Algum outro ferimento interno? Não sabia dizer.
Admito ter me acalmado um pouco, porém, após verificar que o menino não
sangrava. Mas, mesmo assim, eu estava nervoso. Aquilo tinha sido obra de meu
povo, de jovens que eram o futuro na nação.
Eu estava triste. Mas logo o sentimento foi amenizado. Afinal,
o garoto sorriu. Foi um sorriso belo, genuíno. Com calma, ele me agradeceu.
Falou também que ficaria bem, que eu não deveria me preocupar. Assenti. Confiei
naquelas palavras. O garoto tinha uma força que não era refletida pelo físico
magro e ossudo.
Com passos lentos, porém, firmes, ele se foi, dizendo que
voltaria para casa e que, no futuro, tudo daria certo.
No final, eu me senti bem. As poucas palavras do rapaz me
fizeram bem. Talvez fosse um dom dele. Poderia ser um prodígio, alguém que
seria grande no futuro. Foi o que pensei naquele dia cinco anos atrás.
E ontem, todo o episódio voltou para mim, uma memória quase
perdida no tempo.
Tiros vindos de todos os lados. Gritos que eram sufocados
pelos sons das explosões. Fogo que tingia o ar de alaranjado. Poças de sangue
que cobriam o chão como lama após a chuva.
Era nesse cenário que eu me encontrava. Dentro de meu carro,
eu tremia, temendo pela minha vida. Meus olhos estavam fechados. Minha testa
contra o volante. Meu suor escorria gelado. Meus lábios moviam-se debilmente.
Eles rezavam silenciosamente para um deus que eu havia pensado ter deixado de
lado há muito tempo.
Eu queria que tudo acabasse. Não queria mais viver naquela
guerra. Não queria mais viver naquele país. Não queria mais viver daquele
jeito.
Os sons das balas rasgavam o ar. Por breves momentos desejei
que uma me acertasse, orei para que meu fim fosse rápido, queria que aquela
agonia chegasse logo ao fim. Porém, outra parte de mim não queria desistir tão
fácil. Uma voz em minha cabeça traçava novos planos para o futuro, ela me
acalmava lembrando-me de minha família, sonhos que eu poderia realizar ainda,
objetivos que eu nunca tive coragem de realizar. Até o momento. Se eu
sobrevivesse, poderia torná-los realidade, não?
Nem mais sabia. Mas pensar em coisas boas estava me
acalmando. Isso é, até eu ouvir um grito do lado de fora do meu carro. Alguém
implorando pela própria vida. Súplicas que vinham seguidas de um ou mais tiros.
Aí, eu voltava a desejar um fim rápido pra minha existência patética.
E eu teria permanecido naquele inferno. Sozinho.
Desesperado. Entretanto, ouvi uma batida na porta de meu carro.
Com receio, olhei para o lado. Senti meu coração batendo
mais e mais rápido. Até o instante que ele parou. Aliás, até o instante que
tudo parou.
O tempo pareceu congelar quando eu vi o mesmo sorriso de
cinco anos atrás.
Era a mesma expressão. O mesmo porte magro. Agora, porém,
mais alto. E, em suas mãos, um rifle, o instrumento da revolução do seu povo.
Eles não aguentavam mais. Uniram-se com o mesmo sentimento.
Com armas em mãos, resolveram lutar por si mesmos. Decidiram que nunca mais
seriam oprimidos.
Então, percebi que eu seria salvo por quem eu havia salvado.
Minha vida seria poupada daquela matança. Mas por quanto tempo? Eu conseguiria
fugir. Mas e depois? Eu teria que lutar? Seria salvo mais uma vez mais tarde?
Teria essa sorte?
Eu ainda não sei a resposta. Apenas um dia se passou. Ainda estou
no meio no caos. Tremendo. Temendo por minha vida, uma vida que ainda persiste.
Não mais sei se isso é bom ou mau.
Então, eu me pergunto: eu deveria estar feliz?
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