sábado, 24 de dezembro de 2016

Conto 22

Eu Deveria Estar Feliz?


Eu me lembro muito bem do rosto do garoto. Droga, não acho que poderia ser capaz de esquecer.
Lembro-me de estar andando de volta para casa, cinco anos atrás, pegando o trajeto que sempre fazia. Passava por algumas ruas consideradas não muito amistosas, mas, ei, tive sempre a sorte de não ser assaltado. E aquele dia não foi diferente. Só não esperava ver aquela cena.
Um grupo de garotos, três no total, espancava um quarto menino. Deveriam ter todos uns catorze anos. Eram da mesma escola já que vestiam o mesmo uniforme. Colegas de classe? Qual seria o desentendimento? Então consegui reparar no rosto do jovem estirado no chão e senti meu estômago embrulhando.
Vamos apenas dizer que a história de meu país tem passagens que me envergonham profundamente. Uma gente podre que discrimina com orgulho. Vermes que andam em bandos. Desgraçados saudosistas de uma época nojenta. Gente que eu não gostava de chamar de gente. Um povo que enxotava quem era visto como diferente.
Eu gritei. Acho que foi o mais alto que já consegui. De mim veio uma voz tão grave que quase não reconheci como minha. Foram ameaças mais que suficientes para forçar o trio covarde a correr para longe.
Com um sangue ainda fervendo, corri até o quarto menino. Ainda respirava. Graças a Deus.
Vi com receio os hematomas que se formavam. Temia que tivesse algum osso quebrado. Algum outro ferimento interno? Não sabia dizer. Admito ter me acalmado um pouco, porém, após verificar que o menino não sangrava. Mas, mesmo assim, eu estava nervoso. Aquilo tinha sido obra de meu povo, de jovens que eram o futuro na nação.
Eu estava triste. Mas logo o sentimento foi amenizado. Afinal, o garoto sorriu. Foi um sorriso belo, genuíno. Com calma, ele me agradeceu. Falou também que ficaria bem, que eu não deveria me preocupar. Assenti. Confiei naquelas palavras. O garoto tinha uma força que não era refletida pelo físico magro e ossudo.
Com passos lentos, porém, firmes, ele se foi, dizendo que voltaria para casa e que, no futuro, tudo daria certo.
No final, eu me senti bem. As poucas palavras do rapaz me fizeram bem. Talvez fosse um dom dele. Poderia ser um prodígio, alguém que seria grande no futuro. Foi o que pensei naquele dia cinco anos atrás.
E ontem, todo o episódio voltou para mim, uma memória quase perdida no tempo.
Tiros vindos de todos os lados. Gritos que eram sufocados pelos sons das explosões. Fogo que tingia o ar de alaranjado. Poças de sangue que cobriam o chão como lama após a chuva.
Era nesse cenário que eu me encontrava. Dentro de meu carro, eu tremia, temendo pela minha vida. Meus olhos estavam fechados. Minha testa contra o volante. Meu suor escorria gelado. Meus lábios moviam-se debilmente. Eles rezavam silenciosamente para um deus que eu havia pensado ter deixado de lado há muito tempo.
Eu queria que tudo acabasse. Não queria mais viver naquela guerra. Não queria mais viver naquele país. Não queria mais viver daquele jeito.
Os sons das balas rasgavam o ar. Por breves momentos desejei que uma me acertasse, orei para que meu fim fosse rápido, queria que aquela agonia chegasse logo ao fim. Porém, outra parte de mim não queria desistir tão fácil. Uma voz em minha cabeça traçava novos planos para o futuro, ela me acalmava lembrando-me de minha família, sonhos que eu poderia realizar ainda, objetivos que eu nunca tive coragem de realizar. Até o momento. Se eu sobrevivesse, poderia torná-los realidade, não?
Nem mais sabia. Mas pensar em coisas boas estava me acalmando. Isso é, até eu ouvir um grito do lado de fora do meu carro. Alguém implorando pela própria vida. Súplicas que vinham seguidas de um ou mais tiros. Aí, eu voltava a desejar um fim rápido pra minha existência patética.
E eu teria permanecido naquele inferno. Sozinho. Desesperado. Entretanto, ouvi uma batida na porta de meu carro.
Com receio, olhei para o lado. Senti meu coração batendo mais e mais rápido. Até o instante que ele parou. Aliás, até o instante que tudo parou.
O tempo pareceu congelar quando eu vi o mesmo sorriso de cinco anos atrás.
Era a mesma expressão. O mesmo porte magro. Agora, porém, mais alto. E, em suas mãos, um rifle, o instrumento da revolução do seu povo.
Eles não aguentavam mais. Uniram-se com o mesmo sentimento. Com armas em mãos, resolveram lutar por si mesmos. Decidiram que nunca mais seriam oprimidos.
Então, percebi que eu seria salvo por quem eu havia salvado. Minha vida seria poupada daquela matança. Mas por quanto tempo? Eu conseguiria fugir. Mas e depois? Eu teria que lutar? Seria salvo mais uma vez mais tarde? Teria essa sorte?
Eu ainda não sei a resposta. Apenas um dia se passou. Ainda estou no meio no caos. Tremendo. Temendo por minha vida, uma vida que ainda persiste. Não mais sei se isso é bom ou mau.

Então, eu me pergunto: eu deveria estar feliz?

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