terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Conto de Terror 12 - Parte 4

Ei! Marie exclamou. Edgar!
O rapaz parou de andar e balançou a cabeça para os lados. Uma expressão de surpresa, com olhos bem arregalados, estava estampada em seu rosto.
Hm? Edgar limpou a garganta. O que foi?
Já estamos andando em silêncio há faz uns minutos...
Ah... Sério? Ele coçou a nuca, parecendo um pouco aturdido ainda.
Sério.
Ela voltou a andar. Ele acompanhou.
Edgar... A voz d Marie se tornou, repentinamente, suave. Muitas perguntas sem respostas ainda, não é?
É... O rapaz esboçou um sorriso. Mas não se preocupe. As memórias estão voltando... Aos poucos, não muito claras ainda, mas estão voltando.
Isso é bom. Ela sorriu.
Edgar percebeu, então, o porquê de Marie o tirar de seu transe.
Ela parecia legitimamente preocupada com o rapaz. Edgar não questionaria isso. Não existiam motivos aparentes para tal.
Entretanto, Edgar percebeu que, por mais forte e valente que Marie fosse, ela estava nervosa. Eles poderiam morrer de um instante para o outro naquele lugar. Sem a ajuda dela, ele estaria morto. Porém, sem a ajuda dele, ela também estaria morta. Um precisava do outro naquele inferno. E não só para lutarem lado a lado. Um precisava confortar o outro. E apenas Marie cuidava de Edgar nesse sentido.
Hm... O rapaz estralou os dedos. Então... Eu não me lembro do que eu fazia antes d vir pra cá... Mas e você? O que fazia?
Eu? Marie esboçou um sorriso. Mulher da vida.
Ah... Surpreso, ele hesitou um pouco. Sério?
Bem... Sei que pode não parecer agora... Ela botou ênfase na última palavra. Mas... É. Sou. Ou fui. Não sei se vou voltar pra essa vida quando sair daqui. Se sairmos daqui...
Vamos sair daqui. Edgar disse determinado.
Hm... Ela sorriu. Enfim... Não sei se volto pra minha velha vida. Talvez possamos seguir um novo caminho assim que sairmos daqui, não? Uma nova chance após uma experiência traumática... Mas, é claro, tenho assuntos pra resolver antes de qualquer mudança radical.
Como o quê?
Ajudar minhas amigas.
Companheiras de trabalho?
Sim... Nós tomávamos conta uma das outras, sabe? O mundo não é um lugar gentil para o nosso tipo. Mesmo não matando ou roubando ninguém, somos vistas como parte da escória. Olhares de nojo nos julgam todo dia. Era como se fossemos lixo, animais doentes a beira da morte. Ela trincou os dentes. Mas é claro que tinham aqueles que aceitavam os nossos serviços. E, puta merda, eles conseguiam ser piores que os que odiavam a gente. Homens podres por dentro, alcoólatras que haviam abandonado suas famílias, ratos de merda que traíam as esposas, filhos da puta que sentiam prazer em nos ver sentir dor e sendo humilhadas. Marie bufou. Era por causa desse último tipo que nos tínhamos que nos proteger. Isso sem contar com os bostas que nos atacavam por não nos considerarem humanas, ou aquelas párias que queriam nos tornar propriedades deles para nos explorarem.
Mas, mesmo assim, você nunca matou ninguém?
Foi como eu disse antes... Eu ensinava algumas lições da maneira difícil, mas não mais que isso. E minhas amigas seguiam meu exemplo. Já éramos odiadas sem matar ou roubar... Imagina, então, se fizéssemos essas merdas? Ela riu baixo. Seríamos caçadas, certeza.
Entendo... Edgar disse num tom preocupado. E... Você pretende tirar as suas amigas da sua cidade?
Sim. Pelo menos, pra fora do canto de merda onde a gente fica...
E como você pretende fazer isso?
Não sei. Não pensei nisso ainda. Vou me preocupar com isso assim que sairmos daqui. Ela sorriu. Ok?
Edgar sorriu de volta e, em seguida assentiu.
De repente, um grito agudo soou. O som de algo como o de uma guilhotina veio em seguida.
Marie pareceu tensa por uma fração de segundos e, então, abriu um largo sorriso.
Bem... Ela respirou fundo. Acho que achamos um deles.
Isso... Edgar limpou a garganta. Isso foi um Executor.
É... Vamos!
O rapaz, tenso, seguiu Marie até o corredor de onde os sons vieram.
Alguns murmúrios vieram. Nada inteligível para os dois. Em seguida, mais um som de guilhotina.
Após alguns passos, eles viram a cena.
Mesmo já tendo visto mais de uma vez, Marie ficou apreensiva com a visão. Edgar, então, sentiu o próprio estômago se revirar.
Haviam três corpos no corredor. Apenas um com vida.
Um havia sido decapitado. A força do golpe arremessou a cabeça para longe do resto do corpo.
O outro havia, surpreendentemente, sofrido uma morte ainda mais brutal. O corpo havia sido cortado ao meio na vertical. Um único golpe havia sido o responsável pela proeza.
Pisando nas entranhas derramadas de uma de suas vítimas, o Executor se assemelhava mais a um monstro ou uma máquina do que um humano.
Seu corpo alto era coberto pelo o que parecia ser uma armadura respingada de sangue. A roupa blindada, negra como piche, poderia protegê-lo de algumas balas. Facas, então, seriam ainda menos úteis.
Apoiada no chão estava sua arma. Sua mão direita segurava o cabo do gigantesco e brutal machado. Feito de aço negro, quase toda a sua superfície gasta estava tingida de rubro. A lâmina, entretanto, estava perfeitamente afiada, mais letal do que qualquer arma que Edgar já havia visto. Afinal, nenhuma havia despertado tamanho mal estar tão rapidamente.
As pernas do rapaz tremiam, bem como as suas mãos suadas. Sua respiração arfava incessantemente. Seu coração palpitava, parecendo que iria pular para fora de seu peito.
Sem esforço, o Executor levantou a arma ensanguentada e a guardou junto às costas.
O tempo parecia passar lentamente enquanto o gigante marchava pesadamente para longe, desaparecendo nas sombras, deixando naquele corredor as marcas de seu massacre.
Edgar sentiu um puxão em seu braço.

Vamos! Marie o chamou, trazendo-o de volta à realidade. Não podemos perdê-lo de vista. Ela abriu um sorriso, apesar de estar quase tão nervosa quanto o rapaz. Temos uma chave para pegar.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Conto de Terror 12 - Parte 3

Olha só... Um deles disse.
O homem que havia acabado de falar era pálido, alto, magro e tinha o cabelo castanho desgrenhado.
Não nos ouviram chegando, é? Uma mulher atrás dele riu.
Ela era um pouco mais baixa que ele, além de ser tão magra e pálida quanto. Seus cabelos negros ensebados escorriam pela testa e cobriam seu olho esquerdo.
Atrás dos dois, haviam os outros dois integrantes do quarteto.
Um homem gigantesco sorria. A montanha de músculos e gordura devia ter mais de dois metros de altura. Sua pele era escura e, sua cabeça, calva.
Nenhum dos três primeiros tinha ferimentos sérios ou ataduras no corpo, apenas os rostos sujos e as roupas um tanto quanto danificadas.
O quarto membro, entretanto, era diferente. O homem de estatura média tinha o corpo enfaixado quase por completo, assim, assemelhando-se ao próprio Edgar.
Ouvimos vocês chegando. Marie respondeu secamente. Teríamos que ser surdos pra não ouvir os passos desse daí...
O sorriso do gigante ficou mais largo.
O grandão aqui pode não ser muito furtivo... Concordou a mulher de cabelos escuros. Mas vai matar e comer vocês se o deixarmos.
Se ele nos alcançar, você quis dizer. Ela retrucou.
Você fala demais. O homem esguio falou um pouco irritado. Ainda mais... Ele sacou uma faca do bolso da calça. Pra alguém que está desarmada...
Chefe... O gigante disse com sua voz grave e, então, apontou para Edgar. Aquele ali ta armado...
O magricela, líder do bando, olhou friamente para Edgar.
O jovem, apesar de manejar uma faca, tremia. Suas mãos suavam. Suas pernas estavam bambas. A própria ideia de ter que usar aquela arma parecia o fazer sentir medo.
Ora... O magrelo sorriu maliciosamente. O que adianta ele ter uma faca se nem vai conseguir usá-la? Ele olhou diretamente nos olhos do rapaz e riu. Hein? O que você vai fazer? Você parece que vai começar a chorar e chamar pela sua mãe...
O gigante e a mulher começaram a rir junto com o chefe. O homem enfaixado, porém, continuava indiferente a tudo, mantendo-se de braços cruzados e com o corpo encostado numa parede.
Edgar... Marie o chamou o mais calmamente que pôde. Tente manter a calma, ok? Eles...
Antes que ela pudesse terminar de falar, o líder do grupo avançou contra Edgar.
O homem tinha um sorriso sinistro no rosto. Ele mataria sem hesitar como já tinha feito tantas vezes. A ponta de sua faca encontraria a garganta de sua vítima.
Marie gritou por Edgar. Após isso, parecia que todo o lugar havia se silenciado após o som de uma faca cortando através de carne. Duas vezes seguidas.
Uma faca caiu no chão. Sangue começou a pingar em seguida.
Espantados, Marie e o bando do homem esguio ainda não acreditavam no que haviam visto.
O homem magrelo caiu no chão, incapaz de proferir suas últimas palavras com sua garganta dilacerada. Sangue não só por ela, mas também pelo seu pulso direito, aquele que manejava a faca.
Mesmo com a cena acontecendo bem diante de seus olhos, ninguém parecia conseguir acreditar que o jovem que tremia a pouco havia desarmado e, em seguida, matado alguém com tamanha destreza.
Edgar? Marie o chamou.
Ele, entretanto, não respondeu. O rapaz parecia ainda mais perplexo do que ela.
Chefe...? O rosto da mulher foi tomado pela tristeza. Lentamente, ela, a beira das lágrimas, aproximou-se do corpo caído dele e, então, olhou para Edgar. Seu semblante rapidamente se contorceu, formando um sorriso macabro. Filho da puta... Você ta fudido...
A mulher trincou os dentes. Sua mão esquerda deslizou até a faca no chão. Armada, ela se levantou como se fosse dar um bote. Seu grito de dor veio logo em seguida.
Edgar atacou antes que a mulher. Sua faca atravessou o antebraço esquerdo de sua adversária, fazendo-a derrubar sua faca.
Parecendo horrorizado, Edgar puxou sua faca. O sangue, então, verteu do braço da mulher. Seus gritos angustiantes foram trazidos a um fim quando Marie acertou seu cotovelo em sua face.
Ah... Edgar olhou para a aliada. Eu... Eu não sei...
Aparentemente... Começou Marie. Você sabe manejar uma faca, mesmo que não se lembre...
Mas... Eu não queria matar ninguém... Eu...
Um grito de raiva interrompeu a fala e o pensamento de Edgar.
O gigante olhava irritado para a dupla.
Vocês... Ele grunhiu. Vocês vão pagar...
Com seus passos pesados, o colosso avançou contra Edgar e Marie.
Tente fazer mais uma vez essa sua magia, ok? Ela pediu para Edgar.
Sem responder, ele engoliu em seco.
No primeiro soco do gigante, Edgar havia conseguido abrir um corte que ia do pulso ao cotovelo de seu inimigo.
Com um grito retumbante de dor, ele caiu de joelhos, tentando inutilmente o sangramento pondo a outra mão sobre a ferida.
Antes que Edgar pudesse se sentir mal, um som alto soou e o gigante caiu inconsciente no chão.
Edgar e Marie olharam, espantados, para o homem enfaixado que havia derrubado o companheiro com um pé de cabra.
Antes de qualquer outra coisa... Ele disse. Meu nome é Dylan. Prazer em conhecê-los.
Marie. Ela se apresentou. E este é...
Edgar. Completou Dylan. Ouvi você chamando-o pelo nome umas vezes agora pouco. Ele olhou para o rapaz dos pés a cabeça. E eu achando que eu tinha sido o único a me foder tanto assim nas mãos do Asmodeus... Como foi...?
Ele não se lembra. Marie respondeu secamente. Perdeu a memória. E você? Não pretende falar nada sobre os seus companheiros? Ela perguntou impacientemente.
Ah... Entendo... Ele limpou a garganta. Seu olhar misterioso e o rosto enfaixado impossibilitavam ler suas emoções quando ele queria. Então... O ditado se não pode com eles, junte-se a eles se aplica bem a situação que eu estava. Para não morrer nas mãos daqueles desgraçados, eu me juntei a eles. Porém, eu só estava à espera de uma oportunidade como essa pra me livrar deles.
Então você os traiu? Indagou Edgar.
De certa maneira, sim. Dylan sorriu. Sei que não sou digno de confiança. Mas não me importo com isso também. Se possível, prefiro continuar minha jornada aqui solo... Por ora, sabe?
Você fala como se isso fosse algum tipo de aventura... murmurou Marie.
Mas é. Ele respondeu. Mas não estou aqui pela emoção e o risco de morte. Estou aqui à procura de alguém. Tenho esperança de conseguir resgatá-la...
Então você veio aqui por vontade própria? Perguntou Edgar.
Ele assentiu.
Você é louco. Afirmou Marie.
Bem, eu não esperava ser pego pelo Asmodeus logo no meu primeiro dia. Dylan esboçou um sorriso. Mas... Fazer o quê? Acontece...
Ela deve ser bem importante. Disse o rapaz.
Ah... Ele sorriu. Você nem faz ideia.
Que fofo. Marie zombou.
Ei, ei... Dylan cruzou os braços. Nem começa. Ele estralou os dedos das mãos, pensativo. Mas, então... Eu tenho que seguir meu caminho. E vocês, o de vocês, certo?
Sim. Ela respondeu secamente.
Ótimo. Ele olhou para Edgar. Tenho algo de familiar em você... Uma certa aura... Bufou. Enfim... Você... Não tenha medo de matar,ok? Não nesse lugar, pelo menos. A escória da humanidade está aqui. Nunca se esqueça disso. Dylan apontou para trás da dupla, para o garoto inconsciente. Aquele ali deve ter feito algo para merecer cair pra cá, tenha certeza. E o meu bando estava atrás dele. Falaram que ele deveria ser delicioso. Estavam caçando ele já fazia um tempo até... Sorriu. Mas, enfim... Se tudo der certo, nós nunca mais nos veremos. Não aqui, pelo menos... Adeus!
Com um aceno de mão, Dylan se despediu, dando as costas para os dois e seguindo pelo corredor do qual ele havia surgido antes.
Marie... Edgar a chamou baixo.
Sim?
Você... Você não acha que eu sou um monstro, acha? Ele riu sem jeito. Eu... Eu matei aquelas pessoas... E foi tão fácil... Tão natural... Eu... Eu devia ser um assassino antes de vir pra cá, não é? Faz sentido, pelo menos. Eu sou um lixo de pessoa...
Edgar... Ela apoiou uma mão no ombro dele e o olhou no fundo dos olhos. Não importa o que você fazia antes... Você pode mudar de agora em diante, ok? Além do mais... Se você não soubesse lutar tão bem... Nós estaríamos mortos agora. Então... Não se envergonhe, certo?
O rapaz assentiu, claramente desconfortável.
Marie percebeu que o rapaz ainda não estava bem, mas sorriu mesmo assim. O que ela não sabia era o que Edgar estava pensando.
Dylan. O jovem havia realmente conhecido o homem enfaixado. As memórias voltavam lentamente a sua cabeça. O rosto intacto dele parecia nítido na mente de Edgar, mas não muito mais que isso. Tudo ainda eram flashes confusos e sem nexo na maior parte do tempo.
Será que Dylan se lembrava de Edgar, porém, preferiu não dizer nada? Qual era a ligação entre os dois? Haveria uma rixa entre os dois?

Enquanto a cabeça de Edgar enfrentava uma tempestade de perguntas sem respostas, ele seguia Marie pelos corredores escuros daquele inferno com a companhia da sinfonia de murmúrios, gemidos e urros que os cercavam.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Conto 17 - Completo

O Meu Dever


Aquele foi um trabalho que eu tive que aceitar.
Normalmente, não saio investigando qualquer caso que aparece. Mas, quando o seu trabalho lhe dá a chance de voltar a um lugar querido, um lugar que você não visita desde pequeno, você não recusa.
Demorei a chegar ao lugar praticamente isolado do resto do mundo. Peguei estradas e mais estradas em minha fiel montaria até chegar ao meu destino. Uma vez lá, parei minha moto no topo do vale e, amargamente, olhei para o céu recheado de nuvens cinzentas que apenas ameaçava chover.
Em questão de segundos, fui tomado pela raiva. Todas as minhas doces e nostálgicas lembranças daquele vilarejo desvaneceram, reduzidas ao pó e sopradas para longe.
O gramado verde era, agora, cinzento e coberto por uma leve camada de névoa, destoando das árvores verdes além do vale. Não haviam mais flores ou arbustos carregados de amoras. O rio límpido estava lamacento e, até onde eu podia ver, não haviam mais peixes, apenas alguns poucos sapos que coaxavam. Em compensação, dezenas de insetos voavam e impregnavam o ar com os mais diversos zumbidos. Obviamente, eu não sentia vontade de respirar fundo e sentir meus pulmões se enchendo com aquele ar fétido.
Trinta anos haviam se passado. Entretanto, algo me dizia que não foi o tempo o responsável daquele desastre.
Ao entrar na vila, fiquei ainda mais desanimado.
As casas pareciam abandonadas com suas janelas quebradas, pinturas desbotadas, paredes de madeira rachadas e, em alguns casos, chamuscadas.
Os moradores de lá eram ainda mais deprimentes. Pareciam zumbis se arrastando, cabisbaixos, de um lado para o outro. A maioria era doentiamente pálida. Alguns eram magros, ossudos, com as roupas frouxas no corpo. As olheiras escureciam ainda mais os olhos frios e sem brilho.
Opa, forasteiro... Disse um homem.
Eu olhei para o meu interlocutor. Era um senhor magro, calvo e de pele escura que estava sentado com as costas na parede de uma casa. Pela barba branca, diria que ele não a aparava a dias. Suas roupas eram simples: uma camisa xadrez e calças jeans gastas. Seus pés estavam descalços. Sua boca exibia dentes amarelos, bem como um cigarro de palha.
Aquele era o bom e velho Ferdinando. Eu o reconheceria em qualquer. Afinal, mesmo depois de tantos anos, sua fisionomia não havia se alterado. Ele, entretanto, não tinha como me reconhecer.
  Ei... Murmurei. Julguei que não seria necessário relembrá-lo de mim.
Faz tempo que não vemos ninguém de fora... Ferdinando contou. Ainda mais agora...
Percebo... Limpei minha garganta. Então, o que aconteceu exatamente?
Ora... Ele deu uma tragada no cigarro e soprou a fumaça para o lado. Fomos amaldiçoados, jovem...
Uma maldição, hein? Aproximei-me mais dele, ficando de cócoras a sua frente. Conte-me mais.
Ah... Você acredita em maldiçoes então?
É claro. Já vi muita coisa que, definitivamente, não era desse mundo.
Hm... Ele coçou o queixo, pensativo. Acho que posso acreditar em você... Hm... É... Não vejo por que não...
Poderia me contar os detalhes dessa maldição?
Claro, claro... Ele tossiu. Bem, tudo estava tranquilo, sossegado e devagar como sempre, sabe? Então, isso aconteceu... Faz só uma semana...
Uma semana? Ergui uma sobrancelha. Toda essa devastação...?
É... Forte essa maldição. Coisa do próprio diabo...
Pouco provável... Murmurei.
O quê?
Nada, nada... Prossiga.
Então... Não sei como a maldição começou. Ninguém na vila sabe. Só sabemos que...
O senhor Ferdinando parou de falar. O ar, repentinamente, mudou, tornando-se mais denso, pesando sobre meus ombros e parecendo rarefeito. Tive dificuldade para respirar durante uma fração de segundos, quase como se eu estivesse sendo sufocado. De repente, uma corrente de ar frio atravessou a vila. Os moradores gemeram, antecipando o sofrimento.  Foi aí que a calmaria foi irrompida abruptamente.
Um grito veio, soando como uma sirene, tremendo o chão e cortando o ar. A mistura de dor e ódio veio nos sons, em forma de som, açoitando tudo o que encontrava. Eu tentei tapar meus ouvidos. Em vão. O som mal foi abafado. Os moradores, que pareciam já saber o que aconteceria, nem tentavam se proteger do ataque. Entretanto, aquilo não queria dizer que eles estavam a salvo. O sofrimento era nítido nos semblantes de cada um deles, inclusive no do senhor Ferdinando.
O som parecia não parar, tornando-se mais agudo e estrondoso a cada segundo. Ondas contínuas vinham e invadiam a minha cabeça, ricocheteando como um projétil dentro de meu crânio. Eu comecei a tremer. Minha visão ficou turva. Perdi o equilíbrio, saindo de minha posição de cócoras para cair sentado no gramado. Levei minhas mãos a minha cabeça, inutilmente, sem poder fazer nada contra a súbita enxaqueca, trincando os dentes, esperando que tudo aquilo passasse o mais rápido possível.
Por um momento, eu achei que ia enlouquecer. Respirei fundo, tentando manter minha sanidade, tentando evitar os pensamentos confusos e violentos que vinham até mim.
Não sei dizer ao certo quanto tempo se passou. Pareceu uma eternidade para mim. Porém, os gritos cessaram.
Minha cabeça parou de latejar no mesmo instante, entretanto, eu sentia o meu corpo enfraquecido, como se parte de minha energia tivesse sido drenada subitamente.
Todo santo dia... O senhor Ferdinando murmurou. Todo santo dia isso acontece... Todo santo dia desde sete dias atrás... 
Ah... Eu limpei a garganta. E... Suponho que isso aconteça várias vezes ao dia.
Umas duas... Ou três. Respondeu sem ânimo.
Suponho que vocês não consigam fugir daqui.
É... Ele bufou. Parte da maldição. É como se algo puxasse a gente de volta pra cá... Ferdinando olhou nos meus olhos. Se você continuar aqui por muito tempo, garoto... Você não vai conseguir se salvar. Por isso...
Não vou sair daqui. Disse determinado. Não enquanto a maldição persistir.
Ora... Ele esboçou um sorriso. E por que isso?
Porque é o meu trabalho.
Acabar com maldições?
Fora outras coisas.
O senhor Ferdinando riu alegre. Até parecia que ele não sofria.
É sempre bom quando jovens cheios de energia resolvem ajudar. Disse ele. Agradeço desde já.
Agradeça quando tudo estiver resolvido. Agora... O que você pode me dizer com certeza sobre a maldição? Isso é, fora o que eu já senti na pele agora pouco...
Hm... Ferdinando coçou a careca. Acho que sei de onde vêm os gritos.
Sério? De onde?
Ah... O senhor apontou para uma colina quase no limite do vale. O único caminho aparente, com isso me refiro aos humanamente possíveis, era uma trilha irregular que ascendia até o local. Ali.
Hm... Sorri confiante. Nesse caso, já volto.
Certo, meu jovem... Espero que essas armas te protejam.
Ah... Sorri, surpreso. Não sabia que ele havia percebido os revólveres nos coldres juntos à minha cintura. No fim, o senhor era mais perspicaz do que aparentava. Espero o mesmo.
Despedi-me rapidamente de Ferdinando e, sem muito ânimo, segui em direção à trilha.
Não me entenda errado. Eu queria ajudar a cidade. Daria o meu melhor para isso. Mas eu me sentia fraco. Aquela energia negra estava me afetando. A assombração que empesteava o lugar era forte. Isso eu admito. Além disso, eu estaria em uma grande desvantagem nesse confronto. E isso me preocupava.
Segui a trilha rochosa, galgando e escalando rochas. Eu sentia pequenas agulhadas pelo corpo a cada esforço meu. Passo a passo, eu sentia o ar se tornar mais pesado e, meus movimentos, mais vagarosos.
Em questão de minutos eu estava em frente do que eu tinha certeza ser o covil da criatura. A abertura irregular na colina sem vida evidenciava a entrada da gruta. Com um mau pressentimento, eu adentrei o local.
A escuridão era praticamente absoluta. Eu mal conseguia enxergar o chão em que eu pisava. Receoso, fui até a parede mais próxima. Praticamente sem visão, resolvi confiar no meu tato.
A cada passo meu, eu tocava delicadamente a parede ao meu lado, quase com medo de que eu pudesse quebrá-la. Meus nervos estavam à flor da pele. A assombração poderia surgir a qualquer momento. Nesse momento, eu teria que sacar minhas armas para tentar me defender.
Talvez não faça muito sentido para quem é, digamos, de fora, mas revólveres podem causar danos a fantasmas. Óbvio que me refiro àqueles abençoados, próprios para serem usados contra monstros de qualquer forma. O mero contato das balas de uma arma contra uma assombração é capaz de feri-la. Isso se refere a qualquer outra arma. Rifles, espadas e, até mesmo, crucifixos. Isso me lembra de um amigo meu. Mas isso é estória pra outro dia.
Voltando ao assunto de se usar armas contra inimigos sem corpo físico, admito que não é muito efetivo. Encantamentos são muito mais eficazes. Porém, eles não são minha especialidade.  Teria que me virar com os revólveres. Cada bala era capaz de infligir uma sensação de dor aguda, como uma agulha em brasa, contra um fantasma. Mas estava longe de ser letal. Mas era aí que vinha o real plano.
Acabar com uma maldição pode, na verdade, ser feita, por qualquer pessoa. Basta saber como se livrar do fantasma. Afinal, algo prende o espírito nesse plano. Assuntos não resolvidos, sabe? Talvez, naquele covil, eu achasse algo de útil.
Assim, eu senti meu coração acelerar ao pisar em algo no chão. Era algo de metal. Pequeno também. Certamente, eu não o havia danificado. Ou era o que eu esperava.
Enfim, eu soube que aquele objeto era importante pelo o que aconteceu em seguida.
Um sopro de ar gélido adentrou a gruta. Estremeci. O vento sibilava, parecendo tentar murmurar algo que eu não conseguiria entender. A escuridão começou, de repente, a se mover, como milhares de serpentes se arrastando por estalactites e estalagmites, unindo-se lentamente no centro da caverna, dando origem a uma poça de líquido negro que borbulhava.
À medida que as sombras se reuniam a minha frente, o ambiente à minha volta se tornava mais claro, como se a criatura que se formaria perante meus olhos fosse a responsável por roubar a luz.
Um odor fétido era liberado constantemente da poça. Cobri meu nariz com minha mão esquerda, mas aquilo pouco adiantou. Lentamente, a mistura hedionda começou a tomar forma. Como se saísse de um portal, os braços longos e com dedos que mais pareciam garras surgiram e agarraram o chão. Rapidamente, a criatura se puxou para fora da poça, como se estivesse saindo da margem de um rio.
Seu corpo estava coberto pelo líquido negro. Seus longos cabelos que passavam do meio das costas, seu vestido esvoaçante, até mesmo suas pernas que não tocavam o chão. Era como se fosse uma grande silhueta tridimensional em minha frente. Da escuridão, só consegui distinguir os dentes retorcidos em um sorriso malévolo e os olhos escarlates.
Sua boca se abriu. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ou até mesmo gritar como antes, saquei um revólver com a mão direita e, rapidamente, atirei contra ela. A bala atravessou seu ombro direito. Em seguida, a aparição gritou. Mas não como antes. Agora, havia apenas dor em sua voz.
Consegui tempo o suficiente para me abaixar e pegar o objeto metálico. Era um relógio de corda feito de prata. Essa era toda a análise que eu podia fazer no momento. Coloquei-o rapidamente num bolso.
A assombração parecia furiosa agora. Ela avançou em minha direção rapidamente como se deslizasse por uma camada de gelo. Entretanto, duas balas abençoadas contra seu tórax eram o suficiente para acalmá-la temporariamente.
Tive tempo o suficiente de correr por ela. Sempre é uma sensação estranha atravessar um fantasma. Você sente como se estivesse sendo asfixiado e cegado ao mesmo tempo enquanto seu corpo gela. Porém, isso dura apenas uma fração de segundos e, quando você percebe, você tem que continuar correndo.
Cheguei até a entrada da gruta e, rapidamente, voltei-me para trás. Dei apenas um tiro. O suficiente para impedir o espírito de tentar vir atrás de mim. Como toda boa assombração, ela não deveria deixar o lugar com qual tem um vínculo. Afinal, deveria haver mais naquela caverna. Restos mortais, muito provavelmente.
Como esperado, consegui sair da gruta sem ser atacado. O fantasma realmente não conseguiu deixar o local. Entretanto, também como esperado, o grito da assombração veio em seguida, ecoando por todo o vale, drenando mais uma vez as minhas forças.
Cai de joelhos no chão rochoso. Senti meus pulmões doerem. Não consegui respirar pelo o que me pareceu uma eternidade. Meus ouvidos zumbiam. Minha cabeça latejava novamente. Porém, desta vez, consegui me levantar mais rapidamente, antes mesmo que o grito chegasse ao fim.
Os anos me deram uma grande vantagem. Ouso dizer que me acostumei com esses monstros. Minha resistência ao seus ataques era impressionante até mesmo entre os meus. Entretanto, o mesmo não podia ser dito aos moradores da pequena cidade. Eles deveriam estar sofrendo cada vez mais com os gritos, sem poder fugir ou se defender. Por eles, eu não poderia diminuir meu rimo.
Não demorou muito para eu voltar para a vila e ser cumprimentado pelo senhor Ferdinando.
Posso ter achado algo de útil. Informei.
Ah é? Ele parecia curioso. Então, vamos lá, mostre-me.
Tirei o relógio de prata do meu bolso e o mostrei para Ferdinando.
E o que tem isso? Ele indagou.
Eu o abri. Dentro do relógio, havia uma foto. Havia um homem, uma mulher e uma menina pequena no colo dela. Supostamente, uma família feliz.  Apesar de preta e branca, vi que, pelas roupas, a imagem não era muito antiga.
Ah! Ferdinando exclamou.
Você os conhece?
Sim. São Thiago e Annabel. A pequena é a filha dos dois, Agatha. Faz um tempo que eu não os vejo...
Eles são da cidade?
Sim. Annabel nasceu aqui e nunca se mudou. Thiago se apaixonou por ela e veio se mudar aqui. Deixar a cidade grande e aproveitar o campo, sabe? Eles tiveram a pequena Agatha e começaram a criar a filha aqui...
Porém...?
Hm... O amor acabou, acho. Eles começaram a discutir muito e, no fim, acabaram se separando. Annabel ficou aqui. Thiago voltou pra cidade dele. A Agatha passava a maior parte do tempo aqui. O pai vinha buscar a pequena de vez em quando e passava uns dias só com ela.
Sinto que há mais sobre essa estória...
Bem... Nem eu, nem ninguém da vila, viu os três ultimamente.
De quanto tempo estamos falando?
Hm... Ferdinando coçou o queixo, pensativo. Umas duas semanas... Acho.
Certo... Olhei para o topo do vale, onde eu havia deixado minha moto. E onde é exatamente a cidade desse tal de Thiago?
Uns vinte minutos seguindo a estrada. Pra lá. Ele apontou, indicando a direção. São Alguma Coisa o nome da cidade. Não sei direito o quê. Também não sei pra que tanto nome de santo pra cidade...
Eu muito menos. Apoiei uma mão no ombro do senhor. Eu já volto.
Não precisa ter pressa, garoto.
Ferdinando sorriu. Eu sorri de volta. Porém, eu sabia que precisava correr. O presente daquela vila já era trágico o suficiente. O futuro não precisava ser também.
Entretanto, o destino de todos deles dependiam de pessoas que eu nem sabia se estavam vivas ou mortas.
Sair do vale se mostrou ser uma tarefa bem fácil.
Eu sentia um peso a mais sobre meus ombros, uma força me puxando pela nuca de volta para a vila, deixando-me em um estado de leve torpor. Aquilo deveria ser torturante para os moradores do vilarejo, fazendo-os desistir em segundos. Mais uma vez, minha experiência e resistência contra maldições se mostraram úteis.
Em questão de minutos, eu já estava de volta à minha moto. Parada, intacta, do jeito que eu a deixei, como previsto. Naquele lugar pacífico, nada teria acontecido com ela.
Fui em direção à cidade que Ferdinando havia falado. Em um pouco mais de dez minutos fiz o percurso que deveria ter demorado vinte.
Agora, responderei algo que você talvez esteja se perguntando. Não, não direi o nome da cidade. Minha Ordem evita revelar informações assim. Manter a privacidade do local e de seus moradores, sabe? Atendemos, na maioria das vezes, cidades pequenas. Por isso, preferimos não perturbar a paz desses lugares posteriormente. Atrair curiosos acaba sendo ruim para essas vilas.
Entretanto, como deve ter percebido, nós acabamos revelando nomes de pessoas. Isso não estraga tanto a privacidade delas. Afinal, é um tanto quanto difícil encontrar uma pessoa apenas pelo nome, sem saber onde procurar. Muitas pessoas têm o nome, principalmente o primeiro, em comum no mundo. Porém, muito raramente revelamos sobrenomes.
A cidade era relativamente grande. Para alguém interiorano como o senhor Ferdinando, aquele lugar era um labirinto caótico. Para quem morasse numa metrópole, o lugar tinha poucas opções de lazer no fim de semana.
Parei minha moto num posto de gasolina. Enquanto eu reabastecia minha moto, decidi fazer o mesmo comigo. Um copo de café e um pão de queijo generoso eram o suficiente.
Antes de deixar o lugar, porém, tive que fazer uma ligação importante.
Como não pretendo revelar nomes desnecessários para a narrativa, vou resumir a conversa que tive com uma agente da Ordem: falei o nome da cidade, da vila onde eu estava e os três nomes que me foram dados. Assim, em questão de um ou dois minutos, consegui o endereço do tal Thiago.
Com mais uns quinze minutos, cheguei ao prédio dele. O edifício era grandioso. Com trinta andares e, pelo o que eu vi, apenas dois apartamentos por andar, Thiago possuía uma moradia invejável num ótimo bairro. E talvez ele tenha adquirido o imóvel recentemente. Afinal, há pouco tempo ele morava na vila com Annabel.
Dei o meu nome para o porteiro. Sabia que Thiago me deixaria subir até o apartamento dele. Afinal, como eu descobri com a minha ligação, nós havíamos nos conhecido. Coincidências acontecem aos montes nessa vida. Juro que foi apenas isso.
Entrei no elevador e subi até o vigésimo sétimo andar. A porta do apartamento de número 272 estava aberta. Thiago me esperava bem vestido e com um largo sorriso branco no rosto.
Agora, antes de continuar, informo que eu vou me referir a mim mesmo como Jack. Nenhum motivo especial para esse nome. Apenas acho que vou complicar desnecessariamente a narrativa sem poder citar o meu nome. Assim, um nome falso basta.
Jack... Thiago sorriu. Ainda não acredito que é você mesmo! Ele riu. Não esperaria isso nunca!
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele veio e me abraçou.
A vida é uma caixinha de surpresas, não? Sorri.
Nossa... Thiago ainda parecia maravilhado. Seu sorriso bobo era prova disso. Quantos anos se passaram desde a última vez que nos vimos?
Mais de vinte, se não me engano.
Nossa! Ele riu alegremente. Ainda me lembro das férias lá na vila...
Sim. Infelizmente, o lugar não está mais tão bem...
Sério? Thiago pareceu um pouco desconfortável. Seu sorriso havia desaparecido parcialmente. Você veio de lá?
Assenti.
E quão ruim as coisas estão lá...? Ele indagou.
Por que você não vê por você mesmo? Propus secamente.
Ah... Claro. Talvez eu consiga algum tempo em breve...
Que tal hoje?
Hm...? Hoje?
É... Agora seria bom.
Ah... Ele limpou a garganta. Assim tão em cima da hora...
Vai ser rápido. Se você cooperar.
Por que tanta pressa?
Porque você tem que concertar seu erro... Pagar pelos seus pecados...
O que você acha...?
Annabel. Uma semana atrás. Isso te lembra alguma coisa?
O rosto de Thiago assumiu uma expressão sombria. Seus dentes trincaram e, seus punhos, cerraram-se.
Ora... Senti o desdém em sua voz. Fazendo o que da vida, Jack?
Segredo. Respondi. Isso é, até você ver o que eu posso fazer com seus próprios olhos.
É mesmo? Ele exibiu um sorriso amarelado. Que curioso...
Papai? A voz chamou de dentro do apartamento.
Thiago se voltou para trás. Uma garota, que não devia ter mais de cinco anos, apareceu timidamente. Com seus grandes olhos azuis e os cabelos loiros, ela parecia ter saído de algum conto de fadas. Tudo o que faltava era ela estar vestindo algum vestido cheio de glitter.
Filha... A expressão no rosto de Thiago mudou rapidamente. Agora, ele tinha olhos doces e uma voz suave, além do sorriso perolado de antes. O que aconteceu?
Não consigo achar o giz vermelho e.... De repente, a garota notou minha presença. Ah... Oi. Ela inclinou a cabeça pra esquerda. Quem é você?
Esse... Thiago começou a dizer. Esse é o tio Jack. Ele sorriu para mim. Ele resolveu fazer uma visitinha rápida.
A última vez que te vi, você era tão pequena, Agatha, sabia? Menti, obviamente, e sorri para ela. Você nem deve se lembrar de mim... Enfim, vim aqui ver seu pai, mas que bom que você está aqui!
É... Que bom... Thiago concordou claramente desconfortável. Seu sorriso parecia prestes a rachar. Rapidamente, voltou-se calmo para a filha. Agatha, querida, volte para o seu quarto, ok? Daqui a pouco já volto pra te ajudar.
Ok... A garota disse desanimada.
Enquanto ela voltava emburrada pro apartamento, Thiago se voltou para mim e, como esperado, seu olhar me desejava morto.
Ótimo ver que a garota está bem... Murmurei.
Como você sabe o nome dela? Ele me perguntou pausadamente. Cada palavra parecia uma ameaça de morte.
Um passarinho lá da vila me contou. Aliás, sabe o que seria uma boa ideia? Dar uma passada lá. Eu disse cada palavra com um sorriso irreverente no rosto. Tenho certeza que isso só serviu pra deixá-lo mais irritado.
Outro dia. Talvez...
Talvez eu devesse perguntar pra Annabel quando é um bom dia. Mas tenho o pressentimento que ela não vai responder.
Ah... Ele riu baixo. Ela anda meio fria? Quieta demais?
Fria? Sim. Quieta? Não. Ela anda gritando demais até...
Hm...? Ele ergueu uma sobrancelha. Como assim?
Eu te respondo assim que você me responder algo.
E o que seria?
Simples: por que você matou Annabel?
Ah... Thiago riu um pouco mais alto do que da última vez. Claro. O motivo... Você já esteve em uma situação que, para poder ver a pessoa que você mais ama, você tem que ver a que mais odeia?
Não. Não tão emocionalmente extrema, pelo menos...
Então você não sabe o que eu vinha sentindo há anos. Seu tom de voz se tornou mais agressivo. A vaca da Annabel me traiu, sabe? Mas, mesmo assim, o divórcio a favoreceu. Preferia que ela tivesse pegado toda a droga do meu dinheiro! Mas não... Aparentemente, a mãe tem algum tipo de preferência sobre a guarda da filha. Minha querida Agatha passava mais tempo com a vadia inescrupulosa da mãe do que comigo! E eu percebi que não demoraria pra minha filha se afastar cada vez mais de mim. Aquela serpente encheria a cabeça do meu tesouro com mentiras, jogaria o meu amor contra mim... Você acha que eu poderia viver assim?
E matar Annabel e se livrar do corpo dela em algum lugar calmo não levantaria suspeitas...
Ora... Eu deveria reclamar se tudo conspirava ao meu favor nessa situação? Droga... Era praticamente um sinal divino para eu me livrar daquele monstro e voltar a ter a minha filha junto de mim... Eu fiz o que tinha que ser feito... Cravei uma faca nas costas de Annabel e a torci até que aquela cadela parasse de gritar.
Sente-se mais leve com a confissão?
Surpreendentemente, sim. Obrigado. Thiago sorriu por uma fração de segundos. Espero que esteja satisfeito com o que você ouviu. Agora... É a sua vez de me responder uma pergunta, não é mesmo?
Sinceramente, eu estava surpreso. Não creio que ele respondeu aquilo só para eu responder uma pergunta sua. Sinceramente, acho que Thiago tinha que confessar o que fez para alguém, mas, mesmo assim, a frieza com ele disse aquilo era espantosa. Pensei que ele tentaria desviar do assunto, porém, não foi o que aconteceu. Ele disse tudo sem ser medo das consequências. Era praticamente um assassino nato. Talvez fosse.
Claro. Respondi. Porém, não sei se você acreditaria.
Só... Fale... Ok?
Ok. Eu sou apenas um reles mensageiro. Sua esposa sobreviveu. Agora, ela quer se vingar de você. Quando ela se recuperar, ela vai vir atrás de você, tenha certeza disso. Isso é tudo o que ela diz. E toda a vila está atrás do lado dela. Se você não fizer nada, você vai ter uma centena de pessoas te caçando e, é claro, alguém que quer te ver agonizando até morrer. Essa é uma das mentiras mais bem contadas por mim. E, sinceramente, ela é a que eu mais me orgulho.
Ah... O rosto de Thiago estava doentiamente pálido. Como assim? Não... Isso não é possível...
Então como eu soube disso tudo? Hein?
Hm...
Eu fui até a vila pela simples nostalgia. Mas, ao ouvir essa estória, eu resolvi vir até aqui e ouvir você negando o acontecido ou, então, defendendo-se. Não esperava ouvir a sua versão dos fatos e que eles fossem tão... Sinceros.
Praticamente paralisado, Thiago permaneceu junto à entrada de seu apartamento. Eu não pude conter um sorriso. Adorava quando minhas mentiras tinham esses efeitos.
Então... Prossegui. Vamos até o vilarejo?
Claro... Ele respondeu.
Thiago, entretanto, voltou para dentro do apartamento. Ele disse que não poderia deixar a filha sozinha no apartamento. Desde que a garota não fosse até a vila, eu não via problemas.
Porém, Thiago não poderia simplesmente entrar em seu apartamento e não pegar uma faca. Grande e afiada, aquilo não poderia ser simplesmente escondido na cintura, presa pelo cinto, debaixo da camisa. Ele, no entanto, pensou que eu não perceberia. Eu só não sabia se ele pretendia usar a arma contra mim ou contra Annabel.
Thiago foi com o carro dele, um esportivo que parecia não pertencer às ruas daquela cidade. Agatha estava no banco de trás. Eu os segui com a minha moto de volta ao vilarejo.
Chegamos lá rapidamente, sem problemas. Pensei que Thiago tentaria fugir em algum momento. Felizmente, não tive que atirar contra o carro.
Thiago se despediu de Agatha. A garota permaneceu no carro cantando alguma musica que tocava no rádio. Parecia de algum desenho, não sei ao certo.
Vamos? Ele me perguntou secamente.
Assenti.
Em questão de minutos, estávamos de volta, juntos, ao vilarejo onde passamos tantos momentos alegres quando pequenos. Eu vi no rosto de Thiago a expressão de tristeza ao ver um lugar tão querido. O brilho de seus olhos havia desaparecido.
O que aconteceu exatamente? Ele perguntou tristonho. O lugar parecia normal uma semana atrás... Agora, nem mais vejo as pessoas vivendo suas vidas alegremente... Tudo parece morto... É quase como se o lugar estivesse... Bem... Amaldiçoado.
Hm... Olhei diretamente nos olhos de Thiago. Você acredita nesse tipo de coisa.
É claro. Nunca tive nenhuma experiência paranormal, mas acredito nessas coisas. Você não?
Acredito. Mais do que ninguém, eu diria.
Então você também acha que isso é uma maldição?
Eu não acho. Eu sei que é.
Ah... Ele pareceu pensativo por um instante. E Annabel... Ela tem algo a ver com isso, não é? Ela... Não é mais a mesma de antes, não é?
Você está disposto a ajudar? Perguntei rispidamente.
Ah... Eu...
Está?
Hm... Ele engoliu em seco. Sim. Se for para ajudar essa vila...
Ótimo. Então vamos continuar andando. Annabel tem assuntos pendentes com você.
Thiago assentiu embora hesitante. Ele parecia arrependido agora, um pouco medroso e, uso dizer, bondoso. Era como se outra face ainda dele houvesse sido revelada para mim.
Andamos sem falar muito até a colina. Eu sentia o ar se tornando mais denso a cada instante. Sentia que algo ruim estava prestes a acontecer como se uma tempestade estivesse prestes a irromper sob minha cabeça. Olhei para o céu cinzento acima de mim. Senti uma pequena gota de água atingindo minha face. Percebi que meu pressentimento poderia se tornar realidade em questão de instantes.
Adentramos a gruta. Estava muito mais clara do que quando eu entrei antes. Afinal, as sombras que compunham o novo corpo de Annabel haviam desaparecido. Obviamente, aquilo era apenas temporário.
Então... Thiago limpou a garganta. Onde ela está? Ele perguntou baixo.
Chame-a. Respondi. Sem medo.
Hm... Vi ele levar uma mão à faca guardada. Certo...
Uma rajada de vento invadiu a gruta. O ar gelado era só mais um dos maus sinais da minha lista.
Thiago, tremendo, respirou fundo, tentando se manter calmo.
Annabel! Ele gritou. Não se esconda, querida!
Nesse momento, vi um sorriso sádico surgindo no rosto de Thiago.
Em seguida, a gruta começou a tremer.
Todo o lugar parecia, de repente, mole, vibrando constantemente como a pulsação de um coração. O teto, rapidamente, começou a ceder, fazendo com que estalactites caíssem como adagas contra o piso. E então, ao invés de um grito, veio algo que mais parecia um rugido.
Das rachaduras do teto, piso e paredes, uma fumaça negra como piche foi surgindo e, rapidamente, aglomerando-se. Em questão de segundos, um casulo de trevas havia se formado em minha frente. Thiago, paralisado de medo, não conseguia fazer nada a não ser tremer.
Em um instante, o casulo se rompeu e, de dentro dele, Annabel apareceu. Sua aparência, porém, estava um pouco diferente da última vez. O vestido branco que ela usava estava em frangalhos. Partes dele estavam cobertas de sangue e terra. Sua pele estava acinzentada e necrosada, com dentes amarelos visíveis pelas feridas das bochechas.  Os cabelos negros foram reduzidos a apenas alguns fios que não cobriam o topo da cabeça por completo. Os olhos, entretanto, continuavam escarlates como antes e, também como em nosso último encontro, seus pés não tocavam o chão.
Eu cobri o nariz. Em vão. O cheiro pútrido do cadáver a minha frente tomava conta de toda a gruta.
Levei minhas mãos aos revólveres. Com um corpo físico, aquela assombração seria mais fácil de derrotar. Porém, algo já me dizia que não seria tão simples.
Thiago... Disse a assombração. Sua voz, arrastada e distorcida, soava como talheres arranhando a superfície límpida de um prato de porcelana. Você voltou...
O homem tremia, sem conseguir dizer nada. Ele tentava, inutilmente, alcançar a faca escondida. Sua mão, tremendo, parecia não obedecer aos seus comandos.
Desgraçado... Annabel murmurou. Você irá pagar pelo que fez...
Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, o espírito saiu pela boca do cadáver de Annabel.
Usar os revólveres agora não era viável. Interromper aquilo poderia acabar causando danos aos dois.
O espírito, uma aura negra e densa, entrou rapidamente por entre os lábios trêmulos de Thiago. Com o corpo contorcendo, o homem parecia estar tendo uma convulsão. Porém, em um segundo, seu corpo estava fisicamente de volta ao normal. Isso é, com a óbvia exceção de seus olhos, agora, escarlates.
Eu já havia sacado as armas. Se fosse preciso, atiraria contra Thiago. Se precisasse matá-lo, eu o faria.
Com um sorriso sinistro no rosto, o corpo possuído levou sua mão direita por debaixo da camisa e, prontamente, sacou sua faca.
Não me faça fazer isso... Pedi.
Thiago riu. Sua risada estava, agora, distorcida como a de Annabel.
Não pretendo fazer mal ao seu corpo... Ele afirmou com a voz arrastada. Porém... Não posso dizer o mesmo sobre esse...
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Thiago levou a faca ao próprio pescoço.
Eu fiquei sem reação. Com um sorriso malicioso no rosto, ele cravou a faca da garganta e, rindo, esculpiu uma nova boca sobre sua clavícula.
O sangue jorrava escorria sem parar. As roupas, mãos e a própria faca de Thiago estavam cobertas pelo líquido vermelho escuro.
Após mais alguns instantes rindo, o corpo do homem caiu sem vida do chão.
Gargalhando, o espírito de Annabel emergiu do novo cadáver.
Espero que esteja satisfeita... Murmurei.
Hm... Annabel direcionou seu olhar para mim. Você... Você é o homem de antes... O homem que atirou contra mim...
Sim.
Desgraçado... Ela ergueu uma de suas garras contra mim. Você, também, merece ser punido...
E você também.
Eu fui vingada! Exclamou. E pelas minhas próprias mãos! Eu mereci isso! Eu fui abençoada após a morte! Abençoada por mim mesma!
Claro... Só há um problema...
Que seria...?
O motivo pelo qual Thiago não era tão ruim quanto você.
Ah... Ela grunhiu. Se pudesse ter cuspido no chão como espírito, teria o feito. Aquele verme era melhor do que eu!? Ridículo!
Pelo menos ele não se importava apenas com ele mesmo...
Aquele verme se importava apenas com o próprio umbigo! Nunca se importou com a esposa! Nunca se sentiu mal por me deixar de lado! Muito menos hesitou em me matar!
Verdade. Porém, aquele desgraçado se importava com uma pessoa acima de todos, até dele mesmo.
E quem seria essa pessoa.
Agatha.
Ao ouvir aquele nome, a expressão de raiva na face de Annabel havia sumido. De fato, ela parecia estar em estado de choque.
A filha dele. Continuei. A também sua filha.
Agatha... Ela murmurou. Sua voz era calma e tristonha agora.
Você acaba de tirar o pai dela do mundo. Parabéns.
Não... Eu... Eu ainda posso ajudá-la...
Não. Você não pode. Olhei diretamente nos olhos dela. Você não pode nem mesmo sair dessa caverna. Você não tem salvação. E... Olhei para o corpo do Thiago. Sua face estava contra o solo, praticamente boiando no próprio sangue. Ele talvez possa ajudar Agatha. Não fisicamente, é claro. Mas talvez ele possa estar lá, protegendo ela enquanto dorme, desejando o melhor para a filha amada. Você, no entanto... Bufei. Você se deixou ser corrompida. Você traçou o seu destino. Você se apegou às suas mágoas e decidiu que os outros tinham que sofrer como você sofreu. E você não se conteve com Thiago. Não... Você fez mal para toda essa vila, para centenas de inocente. Você... Você escolheu a própria ruína...
Annabel não sabia como reagir. Irritada, ela queria me atacar, mas sabia que nada aquilo resolveria. Triste, ela queria chocar, mas não conseguia naquela forma. Arrependida por seus atos, por fim, ela se desfez perante os meus olhos.
Um espírito formado pelo rancor, uma vez arrependido, não tinha mais forças para viver.
Uma vez fora da gruta, e também do caos de lá, percebi que realmente havia começado a chover. O que seria ruim foi, no final, bom para mim. Depois de tudo o que eu passei, uma chuvinha foi mais refrescante do que eu imaginava.
Quando eu retornei à vila, encontrei o cenário que esperava. O lugar, praticamente deserto, contava apenas com duas presenças: a minha e a do senhor Ferdinando.
Então... Você realmente cumpriu o que você disse, hein? Ele sorriu.
Eu falei que ia, não falei? Retribuí o sorriso.
Você não precisava...
Na verdade, precisava sim.
Só porque é seu trabalho?
Não. Não poderia deixar que um lugar querido simplesmente sofresse assim.
Ora... Ele parecia surpreso. Era uma das crianças que vinham aqui durante as férias?
Sim. Cerca de vinte anos atrás.
Ah... Era a melhor época dessa vila... Ele riu. Seu riso alegre era marcado por certo saudosismo. A melhor, sem dúvida...
E então... Suspirei. E o que vai ser de você agora, Ferdinando?
Hm... Boa pergunta. Ele olhou para ao seu redor, agora, vazia. Tenho alguns anos de vida ainda. Pelo menos, eu acho. Riu baixo. Vou tentar fazer alguma coisa com eles. Só sei que, aqui, eu não fico mais.
Memórias demais?
É. E também não acho que a vila vai voltar a ter algum tipo de movimento. Não tão cedo, pelo menos... Ferdinando suspirou. Bem... Pelo menos agora que os espíritos dos meus amigos podem descansar em paz, eu posso viver em paz... Uma lágrima escorreu de seu olho direito. Por isso... Eu agradeço.
Disponha. Sorri alegremente. Além de estar sendo pago, consegui ajudar tantas pessoas... Mais de uma centena só nesse dia. É...
Eu parei de falar abruptamente. Afinal, percebi que havia mais uma pessoa que eu tinha que ajudar.
Bem, meu trabalho ainda não acabou. Disse de maneira meio arrastada.
Certo. Ferdinando sorriu.
Talvez nos encontremos ainda.
Seria bom, garoto.
Com um aperto de mão firme, nos despedimos. Com um trabalho como o meu, encontrar alguém sem rumo como ele não era improvável.
Fiz mais uma ligação para Ordem. Fiz o relatório da missão e esperei a chegada de uma agente.
Foi o tempo de eu voltar à minha moto e, talvez, mais uns vinte minutos. O que eu faria agora não era o meu dever. Mas eu tinha que fazê-lo.
Um carro preto, completamente blindado, parou do meu lado. A porta se abriu e ela saiu.
Não é sempre que você faz algo assim. Disse a recém chegada agente, amiga minha de longa data. Algo que não estava na descrição do trabalho.
É, mas, da última vez que chequei, eu ainda não era um monstro sem coração. Esbocei um sorriso. Além do mais... Olhei para o carro de Thiago, onde Agatha dormia docemente. Talvez ela ache um lugar na Ordem.
Uma criança prodígio, como você?
Quem sabe? Só sei que não posso abandoná-la. A criança já perdeu o pai e a mãe. E tenho certeza que não sabe disso...
Tão preocupado... Você ainda será um ótimo pai, sabia? Ela riu.
Duvido. Disse secamente. Mas... Sorri para ela. Obrigado pelo voto de boa fé.
Disponha. Ela sorriu. Então... Vamos indo?
Assenti.
Montado em minha moto, acompanhei o carro preto. Agatha estava em boa companhia agora. A minha amiga protegeria a pequena como se fosse sua cria. Com certeza ela acharia um lugar bom para a garota na Ordem. Eu não tinha motivos para me preocupar.
Naquela época, não tinha como eu saber que eu acabaria me tornando um pai para aquela garotinha. No final, aquilo realmente não era meu dever, mas sim, algo que eu queria fazer.