O piso era irregular,
quebradiço. O teto escuro segurava eventuais lâmpadas fracas de luz amarela. As
paredes cinzentas estavam cobertas de rachaduras e eventuais trepadeiras.
Murmúrios, grunhidos e alguns gritos eram ouvidos à distancia, mais claros agora
fora da cela.
—
Hm... — O jovem
olhava desconfortável para todos os cantos. —
O que é esse lugar exatamente...?
—
Isso... — Marie
trancou a porta atrás deles. —
É algum tipo de prisão. Ou era. Pelo menos, é o que eu acho. Deve ter sido
abandonado por algum motivo...
—
E o Asmodeus tomou o lugar?
—
Não sei como. Não sei por quanto. Mas... É. É o que eu acho. — Ela suspirou. — Mas tenho certeza que a
origem desse lugar é um mistério a parte nesse inferno...
—
Por quê?
—
Basicamente? Porque estamos debaixo da terra.
—
Como...?
—
Ou resolveram não fazer nenhuma janela. —
Marie cruzou os braços. —
Já devo ter cruzado esse labirinto inteiro. Pelo menos umas três vezes. Faz
tempo que não vejo o sol, ou sinto o vento no rosto... — Ela bufou. —
Sem contar que, às vezes, dá pra ouvir uns sons vindos de cima. Passos,
normalmente, descendo até aqui.
—
Os Executores e Asmodeus?
—
Isso. E também a Guardiã.
—
Guardiã?
—
Sim... — Marie fez
uma pausa, pensativa. —
Vamos andando enquanto eu explico, ok?
—
Ok...
Os dois começaram a andar. Seus
passos pareciam ecoar pelo corredor. As vozes pareciam se afastar e se
aproximar aleatoriamente. Edgar ficou tenso, estralando os dedos das mãos,
esperando que algo fosse pular de algum dos outros corredores. Marie, por outro
lado parecia tão calma que havia se perdido em seus pensamentos.
—
Ah... — O rapaz
limpou a garganta. —
Marie?
—
Hm... — Ela voltou o
olhar para seu interlocutor. —
Ah! — Arregalou os
olhos, espantada. —
Eu me distraí... Foi mal...
—
Sem problemas...
—
Então... A Guardiã... É assim que ela ficou conhecida. Ninguém daqui sabe o
nome dela. É o mesmo caso dos Executores. Só deram um nome, sabe? Enfim... Ela
está sempre junta do Asmodeus quando ele vem pra cá.
—
E ela é a mais forte que os Executores?
—
Em força bruta? Não... Não mesmo. Mas ela veste uma roupa blindada que mais
parece uma armadura e, é claro, um fuzil que eu já vi sendo usado.
—
Então mesmo que alguém tente atacar o Asmodeus à distância...
—
Ou mesmo em bando. —
Completou Marie. —
Não dá. Simplesmente não é possível. A não ser que muita gente se sacrificasse
de bom grado pra que outros fossem salvos...
—
O que não me parece muito provável...
—
Bem, é praticamente cada um por si aqui. É foda ficar em um grupo numa situação
como essa, sabe? Se a falta de confiança não te separa, algo vai acontecer pra
matar teu companheiro...
—
Experiência própria?
Marie parou de andar
abruptamente. Edgar fez o mesmo.
—
É... — Ela disse
baixo, cabisbaixa. —
Experiência própria...
—
Hm... — Edgar se
arrependeu de feito a pergunta. —
Ei... — Ele disse num
tom ainda mais gentil do que o de costume. —
Desculpa. Não precisa falar nada se te incomoda, ok? Eu só...
O rapaz não conseguiu terminar
de falar.
Quase como um animal selvagem,
uma pessoa pulou em suas costas, levando seus dedos ao pescoço de Edgar.
Assustado, o rapaz quase perdeu
o equilíbrio. Ele ficou sem saber o que fazer até sentir a respiração da pessoa
em seu pescoço. O bafo quente fez com que um calafrio percorresse sua espinha.
Edgar podia quase podia sentir os dentes de seu adversário se aproximando de
sua pele.
Seu corpo ficou agitado.
Rapidamente, o rapaz se jogou de costas contra a parede mais próxima. Seu
inimigo, entretanto, não caiu. Seus dedos afiados agarraram o pescoço de Edgar
firmemente.
Então, o rapaz viu algo passar
pelo lado de sua cabeça como um raio. O calcanhar de Marie acertou a face da
pessoa que estava nas costas de Edgar. O chute foi forte o suficiente para
derrubar o agressor e deixá-lo inconsciente.
—
Ah...! — O jovem
tentou gritar algo, porém, sua respiração arfante não o permitiu.
—
Pronto, pronto... —
Marie esboçou um sorriso. —
Já pode me agradecer.
—
Hm... — Edgar limpou
a garganta. — Bem...
Obrigado.
—
Não foi nada. Mas, sabe... Tente não surtar tanto da próxima vez...
—
Um pouco difícil manter a calma assim, não acha? Com alguém pulando nas suas
costas e tentando te morder?
—
Eu falei que tinham canibais e outras pessoas loucas aqui, não avisei?
—
Sim, mas... — Edgar
olhou na direção de seu agressor. —
Hm...
No chão, o rapaz viu claramente
a pessoa que havia o atacado.
Não passava de um garoto. Não
devia ter mais de catorze anos. Suas roupas também estavam em frangalhos. Seu
corpo era magro, ossudo. Sua pele, doentiamente pálida, estava coberta por
cicatrizes e ferimentos que pareciam mais recentes e avermelhados. Uma
expressão pacífica estava em seu rosto agora, como se fosse a primeira vez que
dormisse bem em muito tempo.
—
Não sabia que traziam crianças pra cá... —
Murmurou Edgar.
—
Mas trazem. — Marie
disse secamente. —
São raras as vezes, mas já cheguei a ver outras. Umas até menores. E garotas
não escapam dessa regra. —
Ela bufou e olhou melancolicamente para o garoto. — Eu não queria machucá-lo, mas era a solução
mais rápida. Espero que ele volte a si quando acordar...
—
E você acha que dá pra deixar ele aqui? Acha que vão deixar ele vivo?
—
Eu já tenho gente o suficiente pra manter viva, ok? Não quero que o garoto
morra, mas não quero ficar zanzando por aí arrastando um moleque apagado. Isso
vai nos atrasar. Além de nos deixar vulneráveis. Até mesmo voltar pra minha
cela agora, com o pirralho... Bem, talvez não voltemos.
—
Então... — Edgar
hesitou um pouco. —
Deveríamos deixar ele vivo?
—
Hm...? — Ela ergueu
uma sobrancelha. —
Você quer matá-lo?
—
Se for para ele ter um fim pacífico... Acho melhor...
Marie não disse mais nada. Ela
simplesmente puxou uma faca que deixava guardada no bolso de trás da calça e
apontou para Edgar.
—
Vamos. Pegue. — Ela
girou a lâmina entre os dedos, apontando agora o cabo da arma para o rapaz. — Se quiser matar, mate. Eu
não faço esse tipo de coisa.
—
Hm... — Edgar pegou a
faca após hesitar por um instante. —
Então... Você nunca matou ninguém?
—
Nunca. Nem aqui, nem lá fora. Não me importo de bater, esfaquear ou atirar em
alguém. Você quebra uns ossos, deixa umas cicatrizes e faz algum filho da puta
pensar duas vezes antes de mexer contigo. Mas eu nunca tirei uma vida. E
pretendo continuar assim.
—
Entendo. — Edgar
disse calmamente. —
Mas... Isso deve ter te dado problemas, não? Aqui em baixo, pelo menos...
—
É... Foi essa a experiência própria
que eu falei.
—
O que aconteceu?
—
De maneira resumida... —
Ela bufou. — Eu não
tive coragem de ir pra cima do Asmodeus.
—
Você tinha uma plano de ataque contra o Asmodeus!?
—
Eu não. Minha amiga tinha. Eva era o nome dela. Aquela idiota... — Marie suspirou. — Nunca vi ninguém tão
determinada. Ela e o Hector, o último membro do nosso trio feliz, resolveram
atacar Asmodeus e a Guardiã de surpresa. E a pior parte? Quase deu certo...
—
Mas você não foi junto com eles...
—
Talvez nem todos tivessem sobrevivido, sabe? Talvez só um de nós saísse vivo e
os dois estariam mortos agora. Sem Asmodeus, esse inferno teria acabado.
—
Mas você não conseguiria matá-lo.
—
Talvez eu pudesse ter rendido aquele merda. Talvez Eva ou Hector pudesse ter
dado o último ataque, sabe? Se eles quisessem matar, ótimo. Mas eu que não
pretendia manchar minhas mãos de sangue. Mas... Mas... — Ela engoliu em seco. — O olhar de Asmodeus para mim no momento do
ataque... Merda... Eu não consegui fazer nada. Fiquei lá, tremendo, paralisada
de medo enquanto meus amigos morriam. Aí o que eu faço? Fujo... Pra bem longe
dali... Longe de Asmodeus... E longe da vergonha... — Marie olhou determinada para Edgar. — Mas... Tenha certeza que
isso não vai acontecer de novo. Da próxima vez que eu ver aquele psicopata de
merda zanzando por esses corredores... Ele não vai sair vivo. Nem que eu morra
junto.
Edgar olhou para a faca em sua
mão. Em seguida, para o garoto no chão e, finalmente, para Marie.
—
Sabe... — Ele abaixou
a arma, ainda a segurando com a mão esquerda. —
Não vou matar ninguém também. A não ser que minha vida ou a sua esteja em
risco. Acho que eu devia ser assim lá fora, antes de perder a memória... — O rapaz sorriu. — Então, vou evitar manchar
as mãos de sangue também.
—
Hm... — Ela sorriu. — Tudo bem. Vamos em
frente. Já ficamos parados tempo demais.
—
Certo. Temos um Executor para achar.
Marie assentiu.
Porém, antes de eles voltarem a
andar, passos soaram próximos da dupla.
Os dois ficaram atentos.
Não sabiam quantos estavam
vindo. Talvez três ou quatro, mas não era certo. A única certeza era de que um
deles tinha passos pesados que ecoavam nos corredores.
Marie tinha um olhar
determinado no rosto. Edgar segurava o punho da faca com firmeza.
—
Se corrermos... — Ela
disse para o rapaz. —
Vamos atrair atenção demais. Evite correr sempre que possível, ok?
Edgar assentiu. Suas mãos
começavam a suar. Seu coração palpitava. Sua respiração acelerava.
Então, de um corredor, o
quarteto surgiu como se saíssem das sombras.
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