Dr. Asmodeus
O jovem acordou com abruptamente.
Com um solavanco, ele levantou o tronco, sentando no chão
gelado.
Sua respiração estava ofegante e acelerada. Ele soava
como se tivesse quase morrido afogado, sendo salvo no último instante.
Suas memórias estavam turvas, fragmentadas. Seu corpo estremecia
de dor toda vez que ele inspirava ou expirava. O cheiro pútrido que pairava no
ar não melhorava a situação.
O rapaz olhou para frente. Uma porta de barras de ferro
bloqueava a passagem, mas permitia a entrada de um pouco de luz. Ele estava, aparentemente,
numa cela.
O jovem não fazia ideia de como havia chego ali.
—
Olha só quem acordou... —
Disse uma voz atrás dele.
Rapidamente, o jovem se voltou para trás. Ele, então, viu
sua interlocutora.
Uma mulher estava sentada no chão com as costas apoiadas
numa parede. Sob as sombras, ela permanecia como uma silhueta para o rapaz.
—
Já estava na dúvida se você estava vivo... —
Ela disse com a voz arrastada, claramente cansada.
—
Hm... — O jovem
limpou a garganta. —
Quem é você...? E onde estamos...?
—
Eu me chamo Marie... E estamos num show...
Pelo menos, de acordo com Asmodeus... —
A mulher bufou. —
Aquele desgraçado...
—
Ah... Certo... — Ele
levou uma mão à cabeça. —
E como eu cheguei aqui?
—
Se você não sabe, não tem como eu saber. Você estava apagado desde antes de vir
para cá?
—
Eu... Eu não sei.
—
Não se lembra de nada?
—
Não muito... — Ele
balançou a cabeça para os lados. Em seguida, ela começou a latejar. — Desculpa...
—
Hm...
Marie se levantou, andando calmamente até o rapaz.
Ele se espantou com a visão. Com seus olhos arregalados,
o rapaz viu detalhadamente Marie. Sob a luz fraca, suas roupas em frangalhos e manchadas
de sangue eram difíceis de não se notar. As bandagens, agora amareladas, cobriam
braços, pernas e até o topo esquerdo de sua cabeça. As poucas partes de sua
pele cor de caramelo que estavam visíveis eram marcadas por cicatrizes. Esse
era o caso de sua bochecha esquerda, por exemplo. A marca avermelhada seguia de
seus lábios até quase sua orelha esquerda.
Com seu único olho verde descoberto, ela fitava o rapaz
atentamente.
—
O que aconteceu com você...? —
O jovem indagou chocado.
—
O show de Asmodeus. —
Ela respondeu secamente. —
Foi isso o que aconteceu. Mas... —
Marie fez uma breve pausa. —
Quanta a você... Eu não sei dizer...
—
Como assim?
—
Olhe pra você mesmo.
Ele não questionou. Olhar de relance para seus braços foi
o suficiente para fazer seu coração disparar.
—
Mas o quê...? — Ele
arfou.
Toda a superfície de seu corpo estava coberta por faixas.
As suas, brancas, pareciam bem recentes.
Lentamente, o rapaz se levantou. Os músculos de suas pernas
pareciam queimar com a dor.
—
Isso pode ter acontecido depois que o Asmodeus brincou com você. —
Disse Marie sem entusiasmo. —
Ou, então, antes mesmo de você vir para cá. Enquanto sua memória estiver assim,
não temos como saber.
—
E esse tal de Asmodeus? —
Ele indagou. — O que
exatamente ele faz?
—
Basicamente, ele te tortura pelo entretenimento de uns merdas doentios.
—
Como assim...?
—
Ele te arrasta para alguma sala, digamos, privada. Lá, ele vai fazer o que as
pessoas pagam para ele fazer. Arrastar a lâmina de uma faca pelo seu corpo...
Cortar algumas partes... Queimar outras... Qualquer coisa que quiserem.
—
Hm... — O jovem
assustado. — E isso
aconteceu com você...?
—
É. — Ela apontou para
as bandagens no rosto. —
Ta vendo isso?
—
Sim...
—
Não ache que eu tenho um olho aqui m baixo, ok?
—
Ah... Ok...
—
Isso sem contar com o que ele fez pelo resto do meu corpo... Com a merda
daquela faca... —
Marie estremeceu. — O
desgraçado riu o tempo todo... Ele tinha a droga dum sorriso no rosto enquanto
passava a ponta daquela faca como se fosse a porra dum pincel, como se eu fosse
uma obra de arte dele... Isso porque alguém pedia aquilo. — Ela trincou os dentes. — Eu ouvia a voz de alguém vindo
por uma caixa de som. Algum pau no cu pervertido tava se divertindo vendo
aquilo de algum lugar, tenho certeza. A voz daquele bosta me dava essa
certeza... E imagino que ele deva ter pagado uma boa grana pra ver aquilo. — A mulher bufou. — E sabe a pior parte...?
O jovem não conseguia dizer nada. Praticamente
paralisado, ele apenas ouvia o que Marie dizia.
—
Enquanto eu chorava e gritava amordaçada, eu ouvia a voz daquele merda mandando
o Asmodeus levar a faca dele até... —
Ela cerrou os punhos. —
Até a minha...
—
Pare! — Pediu o
rapaz. — Eu... Eu já entendi...
— Disse num tom
tristonho. — Não
precisa dizer mais nada...
Marie olhou diretamente para os olhos do jovem a sua
frente. Os dois orbes com íris cor de mel tinham um brilho que ela não via fazia
anos.
—
Seus olhos... — Marie
murmurou. — São
gentis...
—
Hm... — Ele pareceu
um pouco confuso. — E
o que isso...?
—
Não sei como você veio parar aqui. —
Ela disse rapidamente. —
Não faz sentido. Todos os que caem aqui são da escória da humanidade, sabe?
Pessoas cheias de inimigos ou que, então, se sumirem do mundo não vão fazer
falta. Você não faz ideia de quantos ladrões, prostitutas e assassinos estão
aqui... Pessoas que vivem cercadas de ódio e violência... — Marie balançou a cabeça
para os lados. — Não
sei como alguém inocente como você foi parar nesse inferno...
—
E eu muito menos... —
O rapaz bufou.
Sem dizer nada, Marie foi até um canto da sala. De lá,
ela voltou com um pedaço de pão e uma garrafa de água que estava pela metade.
—
Tome. — Ela ordenou. — Você vai precisar.
O rapaz pegou o pão e a água. Sua boca estava seca. Seu
estômago, roncando. Sem questionar Marie, ele deu uma mordida no pão seco e deu
um gole na garrafa em seguida.
—
Vamos ter que pegar mais depois. —
Ela disse.
—
Mais? — Ele indagou
enquanto mastigava um pedaço de pão. —
Onde?
—
Lá fora. — Marie
apontou para a porta da cela. —
No meio do caos.
—
Caos?
—
É. É lá onde a maioria dos capturados ronda.
—
Por quê?
—
Porque lá é onde todos são jogados para sobreviver como animais selvagens.
Também faz parte do show. Tem câmeras em todos os cantos. Nada transmitido para
emissoras de TV, sabe? Uma casta especial de merdas vê essa porra doentia como
se fosse um reality show. —
Ela bufou. — Nós só
estamos aqui dentro, seguros, porque eu peguei a chave para essa cela. Depois
conto esse rolo. Só saiba que, trancados aqui, podemos dormir com tranquilidade.
—
Você que me trouxe pra cá?
—
Sim. Depois que te achei jogado, inconsciente, aqui por perto.
—
Entendi... Bem... Obrigado.
—
Não agradeça ainda. —
Apesar do tom sério, ela esboçou um sorriso. —
Temos que sair daqui ainda. Vai ser útil ter alguém ao meu lado.
—
Eu posso ajudar. — O
jovem disse determinado. —
Mas... O que você quis dizer com sobreviver
lá fora? O tal de Asmodeus caça tantos de nós ao mesmo tempo?
—
Não. Mas, sabe, esse lugar não é bom pra sanidade. Muitos acabam surtando,
atacando uns aos outros... Comendo uns aos outros... E raramente da maneira
divertida.
—
Mas... — Ele engoliu
em seco, incrédulo. —
Você não disse que tem comida lá fora? Pão e água?
—
Sim. Até outras coisas. Até armas e remédios. Mas são poucos. Os Executores não
trazem o suficiente para todos. Isso, é claro, também faz parte do show.
—
Ah... Executores? Quem... Quem são esses?
—
Funcionários do Asmodeus. Não sei quantos são ao todo porque todos se parecem.
São uns monstros de mais de dois metros de altura. E eles também carregam
alguma arma exageradamente grande. —
Ela fez uma breve pausa. —
Eles fazem as entregas de suprimentos e matam qualquer um que fique no caminho
deles. Também levam as pessoas para as salas de tortura e as trazem para cá,
conosco, nesse inferno.
—
Então... Eles entram e saem desse lugar a bel prazer? — Ele tomou um grande gole de água.
—
Praticamente... —
Marie sorriu. — Acho
que você pensou na mesma coisa que eu.
—
Não parece muito prático lutar contra eles... Mas... Talvez... Possamos roubar
alguma chave, não? Deve ter uma porta em algum lugar para sair daqui.
—
Tem sim. Sei onde fica. Mas precisamos dessa chave. — Ela suspirou. —
Espero que você seja rápido e consiga me ajudar...
—
Hm... Também espero, mas... —
O rapaz olhou para a garrafa praticamente vazia em sua mão. — Vou precisar de mais
água.
—
Sem problema.
—
E algum analgésico cairia bem também.
—
Hm... Talvez achemos algum nos suprimentos. Mas eu nunca vi...
O rapaz andou até a porta da
cela. De lá, ele apenas podia ver a parede cinzenta do outro lado do corredor.
O cheiro pútrido do lugar já não o incomodava tanto mais. Calmamente, ele deu
mais uma mordida no pão
—
Ei... — Marie apoiou
uma mão no ombro dele. —
Vamos sair daqui vivos se seguirmos o plano. Não se desespere, ok?
—
Edgar... — Ele
murmurou.
—
Oi...?
—
Edgar. — Ele se
voltou para ela com um sorriso sincero por entre as ataduras. — Acho que esse é o meu nome...
—
Edgar... — Ela sorriu
de volta. — Gostei do
nome. Agora... — Ela
colocou uma chave na fechadura e destrancou a porta. — Vamos?
Edgar assentiu. A porta foi
aberta. Os dois saíram da segurança da sala e adentraram o princípio do caos.
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