quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Conto 17 - Parte 1

O Meu Dever


Aquele foi um trabalho que eu tive que aceitar.
Normalmente, não saio investigando qualquer caso que aparece. Mas, quando o seu trabalho lhe dá a chance de voltar a um lugar querido, um lugar que você não visita desde pequeno, você não recusa.
Demorei a chegar ao lugar praticamente isolado do resto do mundo. Peguei estradas e mais estradas em minha fiel montaria até chegar ao meu destino. Uma vez lá, parei minha moto no topo do vale e, amargamente, olhei para o céu recheado de nuvens cinzentas que apenas ameaçava chover.
Em questão de segundos, fui tomado pela raiva. Todas as minhas doces e nostálgicas lembranças daquele vilarejo desvaneceram, reduzidas ao pó e sopradas para longe.
O gramado verde era, agora, cinzento e coberto por uma leve camada de névoa, destoando das árvores verdes além do vale. Não haviam mais flores ou arbustos carregados de amoras. O rio límpido estava lamacento e, até onde eu podia ver, não haviam mais peixes, apenas alguns poucos sapos que coaxavam. Em compensação, dezenas de insetos voavam e impregnavam o ar com os mais diversos zumbidos. Obviamente, eu não sentia vontade de respirar fundo e sentir meus pulmões se enchendo com aquele ar fétido.
Trinta anos haviam se passado. Entretanto, algo me dizia que não foi o tempo o responsável daquele desastre.
Ao entrar na vila, fiquei ainda mais desanimado.
As casas pareciam abandonadas com suas janelas quebradas, pinturas desbotadas, paredes de madeira rachadas e, em alguns casos, chamuscadas.
Os moradores de lá eram ainda mais deprimentes. Pareciam zumbis se arrastando, cabisbaixos, de um lado para o outro. A maioria era doentiamente pálida. Alguns eram magros, ossudos, com as roupas frouxas no corpo. As olheiras escureciam ainda mais os olhos frios e sem brilho.
Opa, forasteiro... Disse um homem.
Eu olhei para o meu interlocutor. Era um senhor magro, calvo e de pele escura que estava sentado com as costas na parede de uma casa. Pela barba branca, diria que ele não a aparava a dias. Suas roupas eram simples: uma camisa xadrez e calças jeans gastas. Seus pés estavam descalços. Sua boca exibia dentes amarelos, bem como um cigarro de palha.
Aquele era o bom e velho Ferdinando. Eu o reconheceria em qualquer. Afinal, mesmo depois de tantos anos, sua fisionomia não havia se alterado. Ele, entretanto, não tinha como me reconhecer.
  Ei... Murmurei. Julguei que não seria necessário relembrá-lo de mim.
Faz tempo que não vemos ninguém de fora... Ferdinando contou. Ainda mais agora...
Percebo... Limpei minha garganta. Então, o que aconteceu exatamente?
Ora... Ele deu uma tragada no cigarro e soprou a fumaça para o lado. Fomos amaldiçoados, jovem...
Uma maldição, hein? Aproximei-me mais dele, ficando de cócoras a sua frente. Conte-me mais.
Ah... Você acredita em maldiçoes então?
É claro. Já vi muita coisa que, definitivamente, não era desse mundo.
Hm... Ele coçou o queixo, pensativo. Acho que posso acreditar em você... Hm... É... Não vejo por que não...
Poderia me contar os detalhes dessa maldição?
Claro, claro... Ele tossiu. Bem, tudo estava tranquilo, sossegado e devagar como sempre, sabe? Então, isso aconteceu... Faz só uma semana...
Uma semana? Ergui uma sobrancelha. Toda essa devastação...?
É... Forte essa maldição. Coisa do próprio diabo...
Pouco provável... Murmurei.
O quê?
Nada, nada... Prossiga.
Então... Não sei como a maldição começou. Ninguém na vila sabe. Só sabemos que...
O senhor Ferdinando parou de falar. O ar, repentinamente, mudou, tornando-se mais denso, pesando sobre meus ombros e parecendo rarefeito. Tive dificuldade para respirar durante uma fração de segundos, quase como se eu estivesse sendo sufocado. De repente, uma corrente de ar frio atravessou a vila. Os moradores gemeram, antecipando o sofrimento.  Foi aí que a calmaria foi irrompida abruptamente.
Um grito veio, soando como uma sirene, tremendo o chão e cortando o ar. A mistura de dor e ódio veio nos sons, em forma de som, açoitando tudo o que encontrava. Eu tentei tapar meus ouvidos. Em vão. O som mal foi abafado. Os moradores, que pareciam já saber o que aconteceria, nem tentavam se proteger do ataque. Entretanto, aquilo não queria dizer que eles estavam a salvo. O sofrimento era nítido nos semblantes de cada um deles, inclusive no do senhor Ferdinando.
O som parecia não parar, tornando-se mais agudo e estrondoso a cada segundo. Ondas contínuas vinham e invadiam a minha cabeça, ricocheteando como um projétil dentro de meu crânio. Eu comecei a tremer. Minha visão ficou turva. Perdi o equilíbrio, saindo de minha posição de cócoras para cair sentado no gramado. Levei minhas mãos a minha cabeça, inutilmente, sem poder fazer nada contra a súbita enxaqueca, trincando os dentes, esperando que tudo aquilo passasse o mais rápido possível.
Por um momento, eu achei que ia enlouquecer. Respirei fundo, tentando manter minha sanidade, tentando evitar os pensamentos confusos e violentos que vinham até mim.
Não sei dizer ao certo quanto tempo se passou. Pareceu uma eternidade para mim. Porém, os gritos cessaram.
Minha cabeça parou de latejar no mesmo instante, entretanto, eu sentia o meu corpo enfraquecido, como se parte de minha energia tivesse sido drenada subitamente.
Todo santo dia... O senhor Ferdinando murmurou. Todo santo dia isso acontece... Todo santo dia desde sete dias atrás...  

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