O Meu Dever
Aquele foi um trabalho que eu tive que aceitar.
Normalmente, não saio investigando qualquer caso que
aparece. Mas, quando o seu trabalho lhe dá a chance de voltar a um lugar
querido, um lugar que você não visita desde pequeno, você não recusa.
Demorei a chegar ao lugar praticamente isolado do resto
do mundo. Peguei estradas e mais estradas em minha fiel montaria até chegar ao meu
destino. Uma vez lá, parei minha moto no topo do vale e, amargamente, olhei para
o céu recheado de nuvens cinzentas que apenas ameaçava chover.
Em questão de segundos, fui tomado pela raiva. Todas as
minhas doces e nostálgicas lembranças daquele vilarejo desvaneceram, reduzidas
ao pó e sopradas para longe.
O gramado verde era, agora, cinzento e coberto por uma
leve camada de névoa, destoando das árvores verdes além do vale. Não haviam
mais flores ou arbustos carregados de amoras. O rio límpido estava lamacento e,
até onde eu podia ver, não haviam mais peixes, apenas alguns poucos sapos que
coaxavam. Em compensação, dezenas de insetos voavam e impregnavam o ar com os
mais diversos zumbidos. Obviamente, eu não sentia vontade de respirar fundo e
sentir meus pulmões se enchendo com aquele ar fétido.
Trinta anos haviam se passado. Entretanto, algo me dizia
que não foi o tempo o responsável daquele desastre.
Ao entrar na vila, fiquei ainda mais desanimado.
As casas pareciam abandonadas com suas janelas quebradas,
pinturas desbotadas, paredes de madeira rachadas e, em alguns casos,
chamuscadas.
Os moradores de lá eram ainda mais deprimentes. Pareciam zumbis
se arrastando, cabisbaixos, de um lado para o outro. A maioria era doentiamente
pálida. Alguns eram magros, ossudos, com as roupas frouxas no corpo. As
olheiras escureciam ainda mais os olhos frios e sem brilho.
— Opa,
forasteiro... — Disse
um homem.
Eu olhei para o meu interlocutor. Era um senhor magro,
calvo e de pele escura que estava sentado com as costas na parede de uma casa.
Pela barba branca, diria que ele não a aparava a dias. Suas roupas eram
simples: uma camisa xadrez e calças jeans gastas. Seus pés estavam descalços. Sua
boca exibia dentes amarelos, bem como um cigarro de palha.
Aquele era o bom e velho Ferdinando. Eu o reconheceria em
qualquer. Afinal, mesmo depois de tantos anos, sua fisionomia não havia se
alterado. Ele, entretanto, não tinha como me reconhecer.
— Ei... — Murmurei. Julguei que não
seria necessário relembrá-lo de mim.
—
Faz tempo que não vemos ninguém de fora... —
Ferdinando contou. —
Ainda mais agora...
—
Percebo... — Limpei
minha garganta. —
Então, o que aconteceu exatamente?
—
Ora... — Ele deu uma
tragada no cigarro e soprou a fumaça para o lado. — Fomos amaldiçoados, jovem...
—
Uma maldição, hein? —
Aproximei-me mais dele, ficando de cócoras a sua frente. — Conte-me mais.
—
Ah... Você acredita em maldiçoes então?
— É
claro. Já vi muita coisa que, definitivamente, não era desse mundo.
—
Hm... — Ele coçou o
queixo, pensativo. —
Acho que posso acreditar em você... Hm... É... Não vejo por que não...
—
Poderia me contar os detalhes dessa maldição?
—
Claro, claro... — Ele
tossiu. — Bem, tudo
estava tranquilo, sossegado e devagar como sempre, sabe? Então, isso
aconteceu... Faz só uma semana...
—
Uma semana? — Ergui
uma sobrancelha. —
Toda essa devastação...?
—
É... Forte essa maldição. Coisa do próprio diabo...
—
Pouco provável... —
Murmurei.
—
O quê?
—
Nada, nada... Prossiga.
—
Então... Não sei como a maldição começou. Ninguém na vila sabe. Só sabemos
que...
O senhor Ferdinando parou de falar. O ar, repentinamente,
mudou, tornando-se mais denso, pesando sobre meus ombros e parecendo rarefeito.
Tive dificuldade para respirar durante uma fração de segundos, quase como se eu
estivesse sendo sufocado. De repente, uma corrente de ar frio atravessou a
vila. Os moradores gemeram, antecipando o sofrimento. Foi aí que a calmaria foi irrompida
abruptamente.
Um grito veio, soando como uma sirene, tremendo o chão e
cortando o ar. A mistura de dor e ódio veio nos sons, em forma de som,
açoitando tudo o que encontrava. Eu tentei tapar meus ouvidos. Em vão. O som
mal foi abafado. Os moradores, que pareciam já saber o que aconteceria, nem
tentavam se proteger do ataque. Entretanto, aquilo não queria dizer que eles
estavam a salvo. O sofrimento era nítido nos semblantes de cada um deles, inclusive
no do senhor Ferdinando.
O som parecia não parar, tornando-se mais agudo e
estrondoso a cada segundo. Ondas contínuas vinham e invadiam a minha cabeça,
ricocheteando como um projétil dentro de meu crânio. Eu comecei a tremer. Minha
visão ficou turva. Perdi o equilíbrio, saindo de minha posição de cócoras para
cair sentado no gramado. Levei minhas mãos a minha cabeça, inutilmente, sem
poder fazer nada contra a súbita enxaqueca, trincando os dentes, esperando que
tudo aquilo passasse o mais rápido possível.
Por um momento, eu achei que ia enlouquecer. Respirei
fundo, tentando manter minha sanidade, tentando evitar os pensamentos confusos
e violentos que vinham até mim.
Não sei dizer ao certo quanto tempo se passou. Pareceu
uma eternidade para mim. Porém, os gritos cessaram.
Minha cabeça parou de latejar no mesmo instante,
entretanto, eu sentia o meu corpo enfraquecido, como se parte de minha energia
tivesse sido drenada subitamente.
—
Todo santo dia... — O
senhor Ferdinando murmurou. —
Todo santo dia isso acontece... Todo santo dia desde sete dias atrás...
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