sábado, 26 de maio de 2018

A Rainha Vermelha, Prólogo



O carro blindado avançou pela estrada de terra cinzenta. Um véu de poeira se levantava suavemente com o movimento de suas rodas. Um sopro de vento fresco indicava a mudança iminente do tempo. Nuvens escuras já cobriam o céu novamente. Mais chuva estava por vir.
Esse tempo anda cada vez pior, não...? Comentou o motorista, tentando quebrar o silêncio que dominava o interior do carro. Seus olhos se dirigiram ao retrovisor, avistando a quieta passageira de cabelos ruivos, cujo olhar parecia perdido. Não me lembro de chover tanto assim nos últimos anos... Ele continuou após alguns segundos de silêncio. Acha que com tudo que vem acontecendo, até o clima está mudando...?
É assustador. A Rainha Vermelha disse num tom seco.
Ah... O homem parecia confuso. O tempo está assustador, senhora...?
Não... Ela respondeu. Não o tempo... Aquelas paredes...
Foi aí que o motorista olhou para onde sua chefe olhava, para as muralhas da Capital.
As grandes paredes brancas pareciam feitas de marfim. Altas como torres, elas circundavam toda a área ao redor do planalto onde a cidade se situava, deixando a Capital ainda mais inatingível para os que foram deixados de fora dela. Um abismo social mais nítido não existia, dividindo artificialmente os limites de dois mundos tão antagônicos.
Você acha que essas paredes vão cair algum dia? O homem perguntou. Que gente como nós vai poder ver como é lá dentro?
Talvez... A Rainha respondeu pensativa, quase se esquecendo que poucos sabiam de suas origens. Mas talvez fosse melhor que elas continuassem de pé... Que nós continuássemos aqui. E eles continuassem lá.
Por quê? Ele soou intrigado.
Porque elas nos mantém seguros, de um certo jeito... Ela respondeu calmamente. Longe de um certo tipo de doença... Um tipo de vírus que só prolifera em lugares como aquele... Uma ignorância, uma arrogância que felizmente não vemos por aqui.
Ah... Entendo. O motorista pareceu segurar algo em sua garganta. Não falou por medo da reação que poderia vir. Não seria bom ofender sua chefe com alguma pergunta inapropriada, não é mesmo?. Mas lá dentro não pode ser tão ruim quanto aqui, não é? Disse após um pouco pensar. Com certeza não correm o mesmo risco de vida lá dentro, não...?
Hm... A Rainha ponderou por um breve instante. São maus diferentes, sabe? Diferentes maneiras de sofrer... Diferentes maneiras de morrer... De um jeito ou de outro as pessoas se ferram nesse mundo... Ela deu de ombros. Acho que é inevitável...
O homem apenas assentiu, sem muita vontade de continuar a conversa. Aceitaria o silêncio pelo resto da viagem.
Por sorte, não demoraram. Logo haviam chegado ao seu destino.
Sob a sombra das grandes paredes brancas, estava a pequena vila. Era um simples amontoado de casas humildes e comércios pequenos, um lugar calmo que parecia intocado pelo caos do mundo em que viviam.
Com o parar do carro, os olhares de curiosos logo rodearam o automóvel. Algumas crianças que brincavam na rua. Algumas senhoras que olhavam pela janela. Até mesmo alguns cachorros que corriam sem rumo certo. Todos observavam, mesmo que timidamente, o grande veículo blindado, ornado por diversas marcas de tiros (pequenas lembranças do último confronto). Aquela com certeza não era uma visão típica de um lugar pacato como aquele.
Tem certeza que esse é o lugar certo? O motorista perguntou, erguendo uma sobrancelha.
Meu pai me disse que sim... A rainha respondeu pensativa. Então, sim, tenho certeza que este é o lugar...
Ah, sim. Ele quase parecia envergonhado por ter perguntado. Claro...
Eu vou tentar não demorar lá dentro.
Certo, senhora.
E... Ela olhou o homem diretamente nos olhos. Nicolas... Chamou o motorista pelo seu nome.
Senhora...?
Muito obrigada. A rainha sorriu, genuinamente grata. Pela carona. E principalmente pela companhia. Sinto que eu precisava disso.
Bem... Nicolas sorriu sem jeito, um pouco surpreso, inclusive. Estou feliz em ajudar, minha Rainha.
Com mais uma troca de sorrisos, os dois se despediram pelo momento.
Uma vez fora do carro, a Rainha observou a casa bem em sua frente. Fitou as paredes amarelas, a porta de madeira simples, as flores em vasos dispostos sobre o parapeito da janela. Sentiu um aroma familiar, incrivelmente nostálgico, vindo de dentro do lugar. Ela logo se sentiu confortável, com um calor ameno que vinha de dentro de si.
Então, com passos tranquilos, andou sobre o caminho de pedras brancas até a porta e tocou a campainha. Um único, longo toque soou. Poucos instantes depois, a maçaneta rodou, e a porta se abriu.
Vestido florido simples. Postura meio curvada. Óculos de lentes grossas. Olhos quase opacos. Cabelos brancos arrumados num coque. Pele cheia de rugas. Um sorriso caloroso.
Boa tarde! A senhora saudou, arrumando os óculos em seguida. Seus olhos se arregalaram ao perceber quem era a visitante. Sophia... Falou o nome com doçura. É você mesma...?
Ela não pôde dizer nem mais uma palavra. A Rainha se atirou, abraçando forte Agnes Ambrose, sua avó.
Eu estava te devendo essa visita fazia muito tempo. Disse a neta, após mais alguns instantes de um abraço apertado. Me desculpe por essa demora toda... Eu...
Esteve ocupada. A senhora completou a fala. Eu sei... Seu pai andou me contando...
Um silêncio, então, pareceu dominar o local, quase roubando a cor da cena.
Martin... Agnes falou quase como se sussurrasse. Ele...?
Uma lágrima escorreu pelo rosto da Rainha Vermelha.
Se foi... Mas não em vão. A senhora concluiu. Morreu em combate, como tantos Ambroses antes de nós?
Sim. A neta assentiu, enxugando a lágrima do rosto em seguida. Se não fosse por ele, não estaria aqui... Não estaria viva...
Eu sei... Agnes disse num tom calmo. Eu... Senti que conversei com ele, sabe? Com o espírito de meu filho... Pareceu tão real... Ela hesitou por um momento. Seu olhar parecia se perder no horizonte. Acho que eu não estava louca afinal de contas. Sorriu por um breve instante. Já chorei todas as lágrimas que tinha pra chorar... Mas meu coração ainda dói...
Vó...
A Rainha interrompeu o abraço que estava prestes a dar.
Ela se sentiu observada por alguém que não havia notado antes. Sua mão, instintivamente, pousou sobre o cabo da arma em sua cintura.
Seu olhar correu para dentro da casa. Por um instante, viu uma figura parada no fundo do cômodo. Tinha formato humano, tinha certeza. Mas sobre os detalhes não podia dizer. Foi quase como se aquilo, simplesmente, desaparecesse em pleno ar, como se nunca estivesse lá.
Estaria o vulto lá esse tempo todo, apenas observando? Ou teria entrado na casa naquele instante e, ao ser detectado, fugiu? Como alguém poderia aparecer e desaparecer daquele jeito? Ela não sabia dizer. Sua única certeza era que alguém estava lá. E sentia que ainda estava.
Sophia...? Agnes parecia confusa, observando o olhar fixo da neta para o nada.
Tem mais alguém na casa com você, vó? Ela perguntou rapidamente, quase como um reflexo.
Ah... Para falar a verdade... Tem sim. A senhora confirmou sorrindo. Clara, o nome dela... A senhora fez uma pausa, olhando para trás em seguida, encontrando ninguém. Você a viu passando?
Não... Foi apenas pressentimento. Respondeu, afastando a mão da arma, sem se acalmar ainda entretanto. Essa Clara... Quem é essa?
Uma jovenzinha que anda me ajudando por aqui. Agnes soou bem feliz. Você tem que conhecer-la, Sophia! Vou chamar-la agora!
Tudo...
Clara! A senhora praticamente berrou, nem deixando a neta terminar de falar. Venha aqui, garota! Tem uma pessoa aqui que quero que você conheça!
Poucos instantes depois, a jovem apareceu. Com passos vagarosos, ela andou em direção à senhora e sua convidada, desviando o olhar como se fugisse do julgamento da desconhecida.
Não seja tímida! Agnes apressou-a. Venha, venha!
Com os últimos dos passos receosos, Clara chegou até a porta, junto das duas.
Olá... A jovem disse sem muito entusiasmo, ainda evitando contato visual.
A Rainha a fitou, sem nada dizer, observando cada detalhe da garota. As roupas simples. A pele clara. O corpo magro. Os olhos azuis. O cabelo loiro ondulado. O jeito inseguro. Claramente estava incomodada com o olhar da desconhecida sobre si. Parecia uma adolescente normal, ao que tudo indicava. Pelo menos, superficialmente. Entretanto, havia algo diferente nela. Uma aura que Sophia conhecia bem, mas que não sabia muito bem o que era ainda.
Clara. A senhora sorriu, animada, decidindo apresentar-las direito. Está é minha filha, Sophia!
Muito prazer... A garota disse, quase falando para dentro, mal olhando para a desconhecida.
O prazer é meu. A Rainha sorriu, ainda intrigada com a jovem. Porém, seus olhos logo se voltaram para Agnes. Vó, tenho que falar sobre algo com você...
Pode falar, minha neta. Ela pediu.
Não vim aqui apenas para falar sobre meu pai... Explicou. Eu também estou para me mudar. Para um lugar maior. Para um lugar mais bonito inclusive... Então... Eu gostaria de te convidar para vir morar junto comigo... E com o resto de minha família. Seus olhos passaram de relance por Clara. Você pode levar a garota também, é claro.
Olha só... A senhora sorriu. É uma bela proposta. Bem inesperada também, devo dizer. Ela soltou um breve riso. Essa pressa de me falar isso tem a ver com problemas do seu trabalho?
Pode-se dizer que sim... A Rainha sorriu, feliz de não ter que explicar toda a situação naquele exato instante.
Eu entendo... Agnes, então, olhou para a jovem. Se eu for com minha neta, você vem junto?
A jovem hesitou. Seu olhar se dirigiu à Rainha por um breve instante e, então, voltou para a senhora, assentindo por fim. Podia não estar muito feliz com a ideia, principalmente por ela ser tão repentina, mas era o melhor a se fazer. Pensou, pelo menos, que seria a opção mais segura. Pouco a garota sabia...
Então está tudo certo. A avó sorriu para a neta. Nós iremos.
Ótimo. A Rainha soou contente. Mas temos que ir agora. Nos preocupamos com a mudança depois, tudo bem?
Mas é claro... Não podemos nos arriscar afinal...
Arriscar? Clara soou um pouco nervosa. Nos arriscar por quê? Seu olhar soltou para Sophia. Para o que você está nos arrastando?
Olha... A Rainha Vermelha bufou, soltando um breve riso em seguida. Eu te explico no caminho, garota. Agora temos que correr. Vamos!

domingo, 6 de maio de 2018

Poema - Cegueira


Você adora quebrar a verdade
Reduzir-la a meros cacos
Forjando uma nova realidade
Perante seus olhos opacos

Porque é sempre assim com você
A dualidade do certo e errado
Na qual o correto é o que você crê
Enquanto o resto é enterrado

Derrotas certas nunca a admitir
Com seu orgulho eu me irrito
A falta da razão não vai te impedir
Você vai querer ganhar no grito

Pois por de trás da língua dum cego
Tão venenosa quanto é ágil
Está o seu sempre evidente ego
Tão grandioso quanto é frágil

E você sabe que não vai aguentar
A frieza dum mundo que não escolheu
Como vidro você vai se despedaçar
Se viver num delírio que não é seu

Então queime o que não querer
Despeça-se da centelha derradeira
Pois nas trevas escolheu viver
Quando optou pela própria cegueira