sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

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Duas coisas:
Primeiro: "Coração Negro" foi rebatizado de "Alma Negra". Mudei o nome porque preferi a sonoridade.
Segundo (e último): eu acabei de reescrever praticamente tudo, mas mantendo a mesma história. E acrescentando mais duas páginas. E melhorando tudo. Considerem isso como o remastered do capítulo. Então, né. Releiam. É bom reler.
Por hoje é isso.
Até mais!

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Alma Negra, Capítulo 1

Capítulo 1



O espetáculo estava prestes a começar.
Como de costume, o bar estava lotado. Dezenas de homens e mulheres, todos tão animados quanto barulhentos, compunham a plateia da noite. De suas bocas vinha o coro caótico de suas vozes que preenchia o ar. De suas canecas, a cerveja que caia e encharcava o chão. De seus bolsos, o dinheiro que se esgotava com as últimas apostas.
No centro da multidão, um espaço vazio onda todos evitavam pisar. Ali, desenhado com o que parecia ser tinta barata no chão de madeira, estava o grande círculo branco que delimitava a arena. O palco era para ser provisório, porém, ninguém reclamava dele. Aliás, parecia ser o contrário: a plateia curtia a emoção.
Urros e gritos logo saudariam a chegada dos gladiadores para o combate. Todos ansiavam por sangue, erguendo suas canecas, clamando pela luta. Havia somente uma exceção.
Whiskey era como o chamavam. Era o dono do bar. Carismático quando queria. Frio quando precisava. Eram essas duas qualidades em especial que pareciam ser o segredo de seu sucesso, mantendo seu adorado estabelecimento funcionando mesmo nos mais difíceis dos tempos, superando o que mais pareciam ser maldições em dados momentos. Era por essas e outras que aquele homem franzino se sentia invencível atrás do seu balcão, um orgulhoso soberano em seu castelo, um ser cuja autoconfiança era mais que invejável.
Mas não naquela noite.
Daquela vez, Whiskey estava diferente. Seu rosto carregava uma preocupação que não mais conseguia esconder. Suas mãos inquietas tateavam nervosamente a superfície de seu balcão, seus dedos batendo em teclas de piano que ali não estavam. Sua respiração pesada parecia incomodada com o próprio ar, quase como se fosse alérgico ao que respirava. Pequenos fios de suor escorriam por sua barba, descendo lentamente por entre os espessos fios grisalhos, chegando até seu queixo pontiagudo para então caírem as gotas sobre a madeira do chão.
E a cena se repetia em looping. Tudo isso devido a um mau pressentimento.
Era algo que fazia o homem se sentir enjoado. Um perigo iminente. Um medo irracional. Uma presença que havia entrado no bar há poucos minutos, misturando-se ao mar de pessoas, tirando sua paz em um mísero segundo, roubando-lhe a sanidade pouco a pouco.
Através das lentes dos óculos, os olhos de Whiskey procuravam por alguém. Exasperado, seu olhar quicava de um canto para o outro do bar numa busca que parecia infrutífera, afinal, não sabia por quem procurar. Nem mesmo sabia como era a pessoa. Não sabia se era homem ou mulher, alto ou baixo, gordo ou magro. Nem mesmo sabia se conhecia a pessoa. Poderia ser alguém do passado, algum inimigo que tinha feito anos atrás? Era bem possível. Mas quem? O dono de bar havia feito inimizades por sua vida. Poderia fazer uma lista. Mas não o faria. Não conseguia pensar direito naquele estado de agitação. Persistir em seu plano atual era a melhor coisa que poderia fazer.
Tal busca, porém, teria que fazer uma pausa brusca.
O coração de Whiskey disparou. Desarmônicas, dezenas de vozes gritaram exaltadas, estremecendo o bar, anunciando a chegada dos combatentes.
Ah é... O dono do bar soltou o riso nervoso.
Ele quase havia se esquecido do porquê da multidão ter se reunido em seu bar.
Whiskey queria ter se tranquilizado, ter entrado no clima para o espetáculo. Mas não o fez. Simplesmente não conseguia. A paranoia bagunçava sua mente, fazendo-o imaginar coisas que não queria. O pensamento de que algo poderia surgir a qualquer momento, arrombando a porta da frente ou quebrando o teto acima de sua cabeça, avançando com membros como tentáculos e dentes como lâminas, rindo enquanto rasgava sua pele, parecia não ser possível de ser afastado.
Mas Whiskey tentou mesmo assim. Com ajuda etílica, isso é. Ele agarrou a garrafa mais próxima de si, pegou um copo qualquer e se serviu. Então, engoliu o líquido tão rápido que nem sentiu o gosto. Apenas um leve ardor no fundo da garganta era a prova que havia álcool na bebida.
Ulrich! Um pequeno grupo começou a gritar com vigor. Cada sílaba era bem enunciada por vez conforme ensaiado. Ulrich! Ulrich! Outros se juntaram ao coro mesmo sem nem saber o porquê. Ulrich! Ulrich! Ulrich!
Em pouco tempo, mais da metade do bar torcia naturalmente pelo lutador.
Não é para menos... Whiskey murmurou para si, sem surpresa, enquanto lavava seu copo. Seus olhos estavam fixos em um lutador. Chegou a hora...
No centro da arena, um homem saudava sua torcida. Era mais alto que qualquer um lá. Mais forte também. Não vestia nada fora um par de calças jeans surrados. No peito nu, os pelos claros e músculos bem definidos estavam expostos para todos verem. Sua face carregava uma densa barba loira e dois olhos azuis frios, cheios de determinação.
O gigante desejava que a luta começasse o quanto antes. Ele queria se divertir.
 Aquele ele era Ulrich Pele-de-Aço, conhecido também como o Viking. Era o defensor do líder de seu clã, Ivar Pele-de-Aço, seu primo, visto com o cérebro da família. Sempre que podia, o autoproclamado guerreiro resolvia seus problemas com a brutalidade. Valendo-se de seus punhos como armas, raramente matava, mas sempre deixava clara uma mensagem clara para seus inimigos. Afinal, ossos quebrados e hemorragias internas eram bons lembretes para não se oporem ao seu clã.  
Diante de Ulrich, estavam outros três homens. Não pareciam intimidados pelo gigante diante deles. O da esquerda usava uma bandana preta na cabeça. O do meio tinha uma corrente dourada no pescoço. O da direita usava brinco cor de prata. Generalizando, eram todos bandidos comuns, todos mal encarados e cobertos de tatuagens. Eram notadamente fortes fisicamente, é claro, mas não passavam de um bando de brutamontes. Não brigavam com técnica. Não eram lutadores ao nível do Vinking.
Obviamente o trio não era uma ameaça aos olhos do gigante. Mas eles estavam certos de que o fariam mudar de ideia, fariam ele se arrepender de ter sido orgulhoso ao ponto de aceitar lutar sozinho naquela noite.
Uma buzina foi tocada. A luta se iniciou. O desafiante de corrente avançou. Afoito, o homem mais rápido do grupo tinha certeza que teria o primeiro acerto do combate. Um soco seu faria o oponente perder sua pose de invencível. Ele faria Ulrich sentir se ajoelhar.
O chute do Viking em seu peito, entretanto, trouxe o lutador de volta à realidade.
Atravessando os ares, o homem de corrente pôde se arrepender de sua investida impulsiva. Nem sabia ao certo quanto tempo havia se passado. Mas via os olhares da multidão vidrados em seu corpo, contemplando seu fracasso. Quando suas costas acertaram o chão, o público urrou com sua eliminação.
O homem nem reclamou da dor. Apenas permaneceu ali, imóvel, pensando no que fazer em seguida, imaginando se valeria a pena se levantar.
Aquela cena, porém, teve um impacto maior ainda em seus parceiros. A dupla engoliu em seco. Trocaram olhares nervosos então, tentando formar uma estratégia às pressas, sem que o oponente os escutasse.
Se vocês não vêm até mim... Ulrich começou a falar. Sua voz grave ecoava pelo bar, deixando os dois desafiantes ainda mais inquietos. Eu vou até vocês...
Com passos pesados, o Viking começou a avançar. Sua torcida vibrava com cada passo dado, continuando a entoar seu nome, fazendo com que o bar tremesse. Então, o nervosismo dos desafiantes chegou ao limite.
Cada um seguiu por um lado. O de bandana pela esquerda. O de brinco pela direita. Não estavam pensando. Não havia coordenação entre os dois. Contavam apenas com seus instintos. Iriam flanquear o adversário. Era isso. Torciam silenciosamente para que seus ataques funcionassem.
O lutador de brinco foi o mais rápido. Por questão de milésimos, seu soco foi desferido antes que o do companheiro. O Viking teve tempo de sobra para agir.
Com facilidade, ele bloqueou o ataque. Seu antebraço foi contra o do adversário, surpreendendo-o com sua velocidade, virando-se bem a tempo de segurar o punho do outro combatente com a mão livre.
Os olhos da dupla se arrepelaram. A multidão vibrou em resposta. O tempo, então, pareceu desacelerar para os desafiantes.
Com calma, os dois desgraçados puderem se arrepender de terem entrado na luta.
O braço direito de Ulrich avançou contra o abdômen do homem de bandana. Seu punho arrancou o ar dos pulmões do adversário, forçando-o a se curvar, tomado pela dor. O mesmo braço atacou para trás então. Rápido como um bote de uma cobra, seu cotovelo atingiu em cheio a face do lutador de brinco.
Atordoado pelo golpe no semblante, o combatente nem viu a mão do Viking afundando seu companheiro contra o chão duro. A próxima cena que viu foi Ulrich, com um sorriso no rosto, arrastando o lutador praticamente nocauteado pelo piso frio, erguendo-o para o alto pela cabeça.
A face do homem de brinco foi tomada pelo terror ao ver o amigo, no ar, sendo balançado como um porrete. Ele nem teve como reagir à cena. Permaneceu ali, petrificado, até o pé do amigo o acertar no queixo com a força de um martelo, derrubando-o sem esforço.
A torcida delirava. Até aqueles que torciam para o trio agora gritavam por Ulrich. Nem se importavam com o dinheiro perdido nas apostas. Pelo menos, não se lembravam daquele detalhe no momento de euforia. O show com o qual estavam sendo presenteados era tudo o que importava no momento.
Ulrich se livrou de sua arma, jogando o homem de bandana com força contra o chão. O baque surdo de suas costas contra o piso de madeira estremeceu a arena. Agora não mais se levantaria.
O Viking, então, andou até o desafiante remanescente.
Levante-se! Ele ordenou o homem de brinco, olhando para as dezenas de espectadores com deleite. Você ainda pode lutar... Ainda pode entreter essa multidão!
A plateia gritou animada. Suas vozes repetiram o nome de Ulrich quase como se estivessem hipnotizados. E o Viking adorava aquilo.
Porém, um urro veio para quebrar a harmonia.
Todos os olhares se voltaram para um homem. O infeliz correu para dentro da arena com uma cadeira em mãos. Com seu grito de guerra correndo para fora de seus pulmões, ele atacou Ulrich.
Foi uma tentativa patética, completamente em vão.
Ulrich segurou a cadeira com apenas uma mão, impedindo o golpe sem problemas. Ele, então, olhou fixamente para a corrente dourada em volta do pescoço do inimigo. Seus olhos arderam com ódio.
Você foi eliminado... Ulrich rosnou como um animal. Foi eliminado e você deveria ter aceitado a derrota com dignidade! Com um puxão brusco, ele arrancou a cadeira das mãos do adversário. Não deveria ter voltado para arena! Rugiu. E não deveria ter me atrapalhado!
Com um brado, o guerreiro atacou.
Instintivamente, o homem de corrente se defendeu. Levou as mãos para cima da cabeça e esperou aguentar a dor.
Mas aquilo de nada adiantou. A cadeira atingiu o combatente, destroçando-a com o impacto. Como fragmentos de uma granada, lascas de madeira foram lançadas para todos os lados.
E no fim, no centro da arena, um segundo desafiante caia desacordado perante uma multidão eufórica.
E agora, apenas um sobrava.
O desafiante remanescente levantou com certa dificuldade. Suas pernas estavam bambas, como se estivesse embriagado. Parte de si não queria nem ter se mexido, mas algo parecia ter forçado o homem a ficar de pé, encarando o Viking mesmo ofegante.
Não tem como você vencer... Ulrich afirmou num tom solene, cruzando os braços na frente do peito. Mas você ainda pode ser derrotado como um guerreiro... Perder a luta... Mas manter a honra... O que me diz? Ele estendeu as mãos na direção do oponente, convidando-o para chegar mais perto. Vai me enfrentar sem medo?
O Viking nem precisou perguntar uma segunda vez. Seu desafiante esboçou um sorriso, respirou fundo e, então, virou de costas o mais rápido que pôde e correu.
E o sujeito teria escapado. Ele teria muito bem fugido pela porta da frente. Ele teria ignorado as vaias da multidão. Ele teria corrido com os próprios pés descalços até que não mais pudesse ser visto. Não se importava com a droga da honra que Ulrich havia falado. Só queria sair de lá inteiro. Mas não o deixaram.
Nenhum homem. Nenhuma mulher. Ninguém hesitou em segurar o fugitivo. Uma barreira humana logo se formou. A multidão já queria ouvir o som de ossos sendo quebrados antes. Agora, as sádicas bestas queriam também sentir o desespero do covarde que tentou fugir.
O combatente foi empurrado de volta para a arena por mais mãos do que conseguiria contar. Sem equilíbrio, ele cambaleou para trás. Não caiu apenas por ter sido segurado no último instante. Porém, já sabia que não poderia comemorar.
 Antes que pudesse reagir, um braço já o puxava por debaixo do queixo. Ulrich não pretendia pegar leve. E não iria. Sua força logo estava esmagando o pescoço de seu oponente. O Viking quase podia sentir o temor atacando o corpo de sua vítima. Debatendo-se inutilmente, o combatente sentiu o ar dos pulmões sendo roubado a cada instante, sabendo que não voltaria. Seu desespero aumentava à medida que sua visão ficava turva, à medida que a realidade se distanciava de si. Até que, finalmente, tudo se escureceu.
Quando o homem parou de se mover, Ulrich o soltou sem cerimônias.
No mesmo segundo que o corpo inerte atingiu o solo, a multidão vibrou mais do que nunca. A agitação só aumentou quando o Viking rugiu. Seu grito de vitória foi repetido pelos fãs, estremecendo ainda mais o bar.
E aquela cena, por mais caótica que fosse, agradou o velho Whiskey. Afinal, tudo estava como deveria estar.
A visão o fez soltar um suspiro de alívio. O mau pressentimento de antes foi só alguma paranoia sem fundamentos, algo que seria melhor ser deixado de lado. Ele deveria se acalmar e aproveitar o sucesso de seu evento.
Ao avistar o gigante nórdico atravessando calmamente a multidão, o dono do bar logo tratou de arrumar o que o campeão beberia. Rapidamente, abriu o freezer e alcançou, bem no fundo, uma garrafa de cerveja, cujo nome parecia impronunciável, e a colocou em cima do balcão. Sem caneca. Ulrich não ligava para elas. Nem mesmo se importava se a bebida estivesse gelada. Mas Whiskey gostava de agradar aqueles que o ajudavam nos negócios.
Grande luta hoje. Ele sorriu para o Viking. É sempre ótimo ter você por aqui, grandalhão. Animando o lugar, trazendo mais pagantes pra te ver... Nunca vou me cansar disso.
Eu é que tenho que te agradecer. Disse Ulrich num tom satisfeito, ainda cercado por seus fãs e amigos de clã. Agradecer pela arena... Ele pegou a garrafa. E agradecer pela bebida de graça!
Mas é claro... O dono do bar soava despreocupado. Sempre um prazer te servir...
Ulrich não esperou nem mais um segundo para levar a garrafa à boca. Ele sentiu o refrescante líquido dourado escorrer para dentro de seu corpo, extinguindo sem pressa o calor que havia trazido da luta. No fim do primeiro gole, a cerveja já havia acabado, deixando para trás apenas uma carcaça de vidro ainda gelada.
Ao bater o vidro vazio no balcão, mais urros e aplausos eufóricos vieram dos fãs. Tudo parecia impressionar a bêbada e eufórica plateia. O Viking, então, apenas sorriu e fez reverências para seus admiradores, agradecendo-os novamente pelo carinho.
Realmente, você é impressionante, Ulrich... Disse alguém próximo num óbvio tom de gozação.
A voz falou baixo. Muitos pareciam não ter a escutado inclusive. Mas o Viking a ouviu. E Whiskey também. E isso era tudo o que importava para o estranho.
Ambos os homens voltaram seus olhares para a mesma direção. Logo ali, sentado num banco de madeira em frente ao balcão, estava o desconhecido. Com sapatos, calças, camisa e sobretudo pretos como piche, seu ar sombrio era fortalecido. No rosto, um toque de mistério. Uma máscara prateada cobria a metade superior do semblante, deixando somente os frios olhos castanhos à mostra. Na metade inferior, várias cicatrizes podiam ser vistas na pele pálida. Certamente uma história para outra ocasião.
Mas não estou aqui para puxar seu saco, meu caro... O sujeito continuou, lançando um olhar desinteressado para as pessoas que rodeavam o Viking. Você já tem gente de sobra pra fazer isso...
Dessa vez mais pessoas ouviram.  Alguns protestos vieram do grupo de Ulrich, mas o guerreiro logo estendeu sua mão pedindo calma para os amigos. Ele não estava evitando um confronto, apenas julgando o quanto iria querer aquilo. Deixaria o homem falar mais um pouco.
Eu não conheço você... Falou o Viking, intrigado com o desconhecido, ainda considerando o momento certo de atacar. Qual seu nome?
Me chamam de Alma Negra. O sujeito se apresentou sem muita empolgação. Em seguida, tomou um gole do que parecia ser suco de limão. Ulrich observou curioso. Nem sabia que vendiam aquilo no bar. Teria ele trazido de fora?   Sou um velho conhecido do dono daqui, sabe?
Whiskey... O Viking soou curioso, erguendo uma sobrancelha. Você conhece esse...?
Quando seus olhos fitaram o rosto do amigo, Ulrich emudeceu.
Whiskey estava doentiamente pálido. Seus olhos pareciam sem vida, olhando fixamente para o fantasma do passado. Sua boca aberta tremia como se quisesse falar algo que não conseguia, como se não encontrasse forças para isso.
O que você fez com ele...? Ulrich perguntou secamente para o Alma Negra. Seu olhar estava preenchido pela ira. Responda!
Eu...? A voz do sujeito soou como se a pergunta não fosse para ele. Nada... Então olhou fixamente para o dono do bar. Acho que nosso amigo aqui só está tendo um pequeno flashback... Ele soltou um riso baixo. Ah... Doces memórias, não é mesmo, Whiskey...?
As mãos de Ulrich correram até a gola da camisa do Alma Negra. Ele nem teve reação. Quando percebeu, já estava sendo erguido no ar, sem conseguir tocar o chão, com uma multidão ruidosa como música de fundo.
Você não é normal... O Viking afirmou enquanto fuzilava o sujeito com seus olhos. Sua raiva só aumentava com a tranquilidade no olhar do desgraçado, completamente despreocupado com a situação que se encontrava. É mais um daqueles Malditos, não é!? Você é mais uma daquelas aberrações...!?
Não, e você? Falou como se fosse algo trivial, uma conversa que já fora repetida vezes demais É um deles?
Oi...? Após um momento de hesitação, foi apenas o que saiu dos lábios de Ulrich, ainda incerto das palavras que tinha acabado de ouvir. Repita o que você acabou de dizer...
Não... Bufou. Eu não sou um Maldito. O homem pendurado explicou suas palavras sem muita paciência. Não tenho nenhum poder especial. Nunca tive e duvido que eu vou ter. Nada de sobre humano em relação a minha pessoa... Com exceção do meu dom para a arte da comédia e do meu carisma inigualável, é claro... Um leve sorriso se abriu em seu rosto. E você...? O Alma Negra soou genuinamente intrigado. Você é um Maldito? Tem super força, super resistência...? Algo do gênero...? Ele tateou um dos antebraços musculosos do gigante. Porque parece ter, sabe...
Não... O Viking exibiu suas presas num sorriso. Alguns podem até me ver como um tipo de semideus, mas... Ele riu brevemente, sem perder seu ar ameaçador. Eu te garanto que sou completamente humano.
E eu achando que tinha que me aprimorar no campo da humildade... O sujeito murmurou. Mas sério...? Ele soou um tanto quanto surpreso. Sem super poderes? O nome Pele-de-Aço é armação? É só um nome legal pra panelinha de vocês?
Cuidado com essa língua... Ulrich ameaçou.
Isso é ótimo! O mascarado exclamou contente.
Agora foi a mão do Alma Negra que se moveu mais rápido que o inimigo. Para Ulrich, um borrão negro se movimentou no limite de seu campo de visão. Não conseguiu distinguir o que era. Só percebeu a gravidade da situação em que se encontrava ao sentir o toque gelado do metal em sua pele. Um calafrio veio em seguida.
Se você é só humano... O sujeito continuou. Uma bala é o suficiente...
Nem mais uma palavra. O Alma Negra puxou o gatilho de seu revólver. A bala voou, entrando logo atrás do queixo da vítima, cavando seu caminho para o alto até criar uma saída.
Fragmentos de ossos. Pedaços de pele. Farelos de massa cinzenta. Fios de cabelo. Uma borrifada de sangue. A miscelânea de ingredientes foi lançada para fora do crânio de Ulrich junto com a bala.
O bar se emudeceu. O corpo do Viking caiu sem vida. Seus olhos ainda arregalados estavam preenchidos pelo medo: marca do instante que percebeu que não era mais invencível.
Nem um segundo se passou, então, para que até os mais bêbados do bar reagissem ao ocorrido.
Muitos fugiram. É claro que fugiriam. Homens e mulheres dispararam para fora do bar como um rebanho de ovelhas fugindo de um lobo, gritando desesperados, descobrindo o quanto temiam a morte.
Porém, houve também uma reação completamente diferente da primeira. Haviam, afinal,  Peles-de-Aço no bar naquela noite. Amigos do recém falecido Ulrich foram ali assistir o espetáculo, beber algumas garrafas de cervejas e aproveitar a noite de folga.  Nenhum deles parecia feliz com o andamento da noite.
E assim, como num passe de mágica, um total de treze armas estavam apontadas para o Alma Negra.
Não se preocupem! O mascarado se apressou em dizer. Sei exatamente o que fazer numa situação dessas! Calmamente, ele colocou suas mãos atrás de sua cabeça e abriu um sorriso. Viram?
Mesmo com o relativo silêncio que se instaurou, não se podia dizer que o lugar havia morrido. A tensão no ar era palpável. Dedos tremiam em cima dos gatilhos, com receio do que o louco no centro do bar faria. As respirações pesadas e batimentos cardíacos acelerados eram os únicos sons ali feitos.
O nervosismo, porém, não afetava o Alma Negra. Ele o aproveitou o momento de paz para escanear a sala, fitando cada um dos treze atiradores e, principalmente, analisando friamente aquele que não empunhava uma arma.
Cabelos castanhos escuros. Pele clara. Porte físico forte. Terno cinza. Expressão séria no rosto. Sentado a uma mesa solitária, o homem contemplava a cena, tentando decidir o melhor momento para dar a ordem de execução.
Suponho que você seja o tal de Ivar... O Alma Negra disse com tranquilidade, ainda com suas mãos na nuca. Líder dos Peles-de-Aço e tal... Não é?
O próprio. Respondeu secamente.
Ótimo... O mascarado soou satisfeito. Então, eu achei quem procurava.
Outro momento de silêncio perturbador pareceu dominar o bar.
Muito bem... Ivar disse, após um momento de hesitação, mantendo o tom sério. E você precisava matar Ulrich para isso? Matar meu melhor homem... Sangue do meu sangue... Só para chamar minha atenção?
Precisar eu não precisava... O Alma Negra respondeu num tom casual. O plano A era perguntar pro grandão onde você estava, mas... Sabe como é... Botar uma bala na cabeça dele foi mais divertido na hora. Ele soltou uma breve risada nervosa. Desculpa, eu sou meio impulsivo de vez em quando...
Ah... O líder dos Peles-de-Aço cerrou os punhos. No momento, sua vontade era mandar seus homens abaixarem as armas para que ele mesmo pudesse vingar Ulrich, quebrando os ossos do desgraçado como o primo gostaria. Mas não podia. Pelo menos, não ainda. Não sabia se o sujeito tinha algum truque preparado ou, até, alguma utilidade vivo. Por fim, fez jus ao apelido de cérebro da família, mantendo a calma e continuando o diálogo. E por que isso? Por que matar tão sem motivo? Por que não seguir o tal plano A?
Mas eu tinha um motivo... O Alma Negra continuava tranquilo. A ameaça das armas apontadas para ele parecia não surtir efeito. Eu tinha que provar que ele era grande um idiota. Assim... Sério? Ele não conteve um breve riso de deboche. Aquele imbecil realmente achava que aqueles músculos todos o fariam à prova dechumbo ou algo do gênero? Não passava de um moleque estúpido, se você me perguntar... Infelizmente, ele não está vivo pra aproveitar a lição ensinada... Mas não tem problema! Sorriu. Vocês podem aprender a lição por ele! E, também... A morte de Ulrich serviu para me levar até você no fim das contas. Então... Digamos que o plano B foi um sucesso. A morte dele não foi em vão...
Mais silêncio. Mesmo longe, o Alma Negra pôde sentir a raiva de Ivar. Era como se sua ira esquentasse o próprio ar que respiravam.
Ulrich... O Pele-de-Aço tentou soar calmo. Era um bom homem. Um verdadeiro guerreiro nesses tempos sombrios e sem honras... Mas, realmente... Ele bufou. Ele não era à prova de balas. E ele sabia disso. Ele sabia que a morte viria... Nunca pensou em fugir dela. Estava decidido a aceitar seu fim lutando até o último momento.   Seu olhar fuzilou o Alma Negra. O mesmo não pode ser dito sobre você, seu vermezinho inescrupuloso... Você...!
Eu nunca disse que era um guerreiro.  Ele o cortou num tom sério, preparado, como se já previsse a última fala e tivesse uma resposta pronta. Nem um bom homem por muitos padrões. Mas eu sei que não sou à prova de balas. Eu sei que um dia eu vou morrer. É inevitável afinal. Todos os grandes homens e mulheres da História morreram. Porém... Todos conseguiram deixar sua marca antes de sua partida.  Portanto... O Alma Negra sorriu. Eu não tenho que ser à prova de balas... Só tenho que desviar delas por tempo o suficiente... Só até eu deixar a minha marca. Aí... Eu posso morrer em paz.
Ah... Ivar gargalhou. É uma bela meta.. Mas é uma que você não vai atingir... Ou acha mesmo que vai sobreviver a essa noite?
Algo me diz que sim.
Nem mais uma palavra. Um assovio estridente partiu dos lábios do mascarado. Então, o teto se quebrou.
Um vulto mergulhou na direção do Alma Negra. Aquele foi o estopim para o caos. Apenas um dedo nervoso puxando o gatilho foi necessário. Os Peles-de-Aço não hesitaram em se juntar o amigo. Seus disparos logo se tornaram inúmeros. Dezenas de balas cortavam o ar. Uma tempestade de metal estava se formando. Os atiradores pareciam tomados por um frenesi.
Porém, logo se viram forçados a parar. Nenhuma arma havia sido descarregada, mas nenhum Pele-de-Aço conseguiu fazer mais um disparo. Paralisados pelo temor, eles contemplaram a cena diante de seus olhos.
Todas as balas atiradas, cada uma delas, pareciam flutuar em éter. Inofensivas, elas rodeavam as duas pessoas no centro do caos controlado. Sereno, o Alma Negra sorria ao lado da recém chegada: uma mulher de cabelos roxos e roupas escuras surradas.
Viu? O homem com a máscara de prata riu. Eu te disse! Não é preciso ser imune a balas... É só não ser atingido por elas! Ele se virou para o lado, exibindo uma feição alegre para a companheira. Não é, amor?
Ela concordou com um simples sorriso e nem uma palavra.
Os Peles-de-Aço nem conseguiram olhar direito para a recém chegada. Não notaram suas roupas amassadas, escolhidas às pressas de seu cabide por estar atrasada para o bar. Não perceberam também a cara de sono, nem as olheiras, muito menos os cabelos desarrumados. Porém, notaram sua mão erguida e, com certeza, notaram o simples gesto que fizera. Um movimento delicado dos dedos, com graça e leveza, fez as balas derem meia-volta, sendo apontadas para quem as havia atirado.
O Alma Negra sorriu ao ver o desespero nos rostos dos atiradores. Simplesmente não sabiam como reagir àquela situação. Estavam simplesmente petrificados.
Já se divertiu, Ethan? A mulher perguntou para o Alma Negra. Posso terminar o show da noite?
Já, sim... Ele respondeu simplesmente, com um sorriso no rosto. Pode acabar com eles, Anna.
A mulher assentiu. Com um simples estralar de dedos, fez o que tinha que fazer.
As balas voaram. Ainda mais rápidas de que quando deixaram as armas. Os alvos nem ofereceram resistência. Sabiam que o fim era iminente. Lutar contra isso seria inútil. Fugir idem. Não tinham como enfrentar uma Maldita como aquela.
Em uma fração de segundos, treze corpos foram fuzilados. Todos caíram sem vida sobre o chão frio.
Bom trabalho, linda. O Alma Negra a elogiou, contente com o espetáculo. Agora... Para o prato principal...
Seus olhos correram pelo bar até chegar até Ivar. Quando chegaram até o Pele-de-Aço, o homem já havia começado a correr desesperado.
Que decepção... Foi tudo o que saiu dos lábios do mascarado.
O líder dos Peles-de-Aço, entretanto, não conseguiu ir muito longe. Outro gesto da mão de Anna bastou. Com isso, as pernas do fugitivo foram presas, prensadas uma contra a outra. Seu corpo, então, caiu para frente. Indefeso, sua face se chocou diretamente contra o piso de madeira.
Fácil demais... Anna murmurou, parecendo quase entediada.
O homem, em seguida, começou a ser puxado. Ele não sabia pelo quê. Mas nem parava para pensar nisso. Tudo o que fazia era gritar e se debater em vão, arranhando o chão com suas unhas sem conseguir se agarrar.
E assim, Ivar foi arrastado pelo chão encharcado de cerveja e sangue de seus subordinados mortos, sem pressa, quase como um pano esfarrapado para limpar o bar
Eu deixo a sua vida muito fácil... A mulher disse para o companheiro e, em seguida, bocejou. Não é, amor?
Não tenho motivos para reclamar. O Alma Negra admitiu soltando um breve riso. Melhor que isso só se eu tivesse telecinese...
Mas isso não vai acontecer... Ela retrucou num tom doce.
É... Ele bufou. Já me conformei...
Quando o corpo de Ivar chegou aos seus pés, o Alma Negra puxou o homem de terno para perto, forçando-o a se ajoelhar diante de si. Então, seus olhos frios encararam os do Pele-de-Aço, penetrando sua alma, rindo do pavor estampado em seu semblante.
Ivar, meu caro... O mascarado praticamente cantava as palavras de tanta felicidade. Temos muito o que conversar, bonitão...
E esse aqui, amor? Perguntou Anna com raiva em sua voz.
O Alma Negra se voltou na direção dela. No ar, Whiskey estava suspenso, ainda mais assustado do que antes. A cena fez o mascarado abrir um sorriso ainda mais largo.
Ah... O Alma Negra riu. Whiskey... Meu caro... O sujeito parecia pensar nas palavras certas. Não queria estragar o momento com a escolha errada. Acho que você já sofreu o bastante por essa noite. E também acho que vai ser mais divertido deixar você viver com medo... Com medo de que nós possamos voltar pra te atormentar quando nos quisermos, quando você menos esperar... Assim, talvez... Só talvez... você sofra que nem você nos fez sofrer... Ele passou um dedo lentamente sobre as cicatrizes do rosto, lembrando-se exatamente de como as conseguiu. Após alguns instantes nostálgicos, seu riso voltou a soar. Ai, ai... A morte seria um fim muito misericordioso para você, meu caro...
Acabou? Perguntou Anna. Sua companheira soava inquieta, para dizer o mínimo. Posso soltar-lo?
É... O Alma Negra considerou por um instante. Acabei. Pode soltar o traste.
Com a permissão, Anna moveu sua mão para baixo. Com isso, o corpo de Whiskey foi arremessado contra o chão, batendo a cabeça do homem contra o balcão de madeira. Ele não voltaria a se mover tão cedo.
Espero que você não tenha matado o desgraçado... O mascarado reclamou, mas mantendo um tom descontraído. Se não, praticamente tudo o que eu disse agora foi só um desperdício de saliva. E também... Ele parou. Seus olhos focaram em algo intocado em cima do balcão. Anna, meu amor?
Sim...? Ela ergueu uma sobrancelha.
Ali em cima... Ele apontou para um copo de vidro com um líquido verde claro. Minha bebida.. .Pode pegar pra mim? Por favor?
Claro, docinho... Anna não conseguiu conter um leve riso. Prontamente, ela apontou para o copo que logo começou a flutuar, guiando-o lentamente pelo ar até a mão do companheiro. Mais um uso super necessário dos meus super poderes...
Se eu tivesse telecinese, eu faria isso eu mesmo. O Alma Negra pegou o copo. Mas como não tenho... Ele deu um longo gole até beber o resto do suco. Eu me contento em te pedir com jeitinho e te agradecer no final, minha linda. Em seguida, jogou o vidro vazio para longe, deixando-o quebrar contra o chão de madeira. Não sou eu quem vai limpar mesmo... Murmurou num tom brincalhão e, então, apontou o revólver para a cabeça de Ivar. Por um momento, quase se esqueceu do Pele-de-Aço. Eu gostei de como você ficou quietinho agora, mas... Agora é hora de falar... Tudo bem, querido?
E... e o que você quer saber...? Ele indagou trêmulo. O que quer de mim...?
É bem simples... O mascarado sorriu. Eu preciso que você me devolva uma pessoa...

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Coração Negro, Capítulo 1 (Incompleto)

Capítulo 1


O espetáculo estava prestes a começar.
O bar estava lotado como de costume. Dezenas de homens e mulheres, todos nitidamente animados, compunham a plateia da noite. O caótico coro de suas vozes preenchia o ar. A cerveja que derramavam de suas canecas encharcava o chão. O dinheiro de seus bolsos havia quase se esgotado com as últimas apostas.
No centro da multidão, um espaço vazio onda todos evitavam pisar. Um grande círculo branco desenhado no piso de madeira delimitava a arena. Urros e gritos logo saudariam a chegada dos gladiadores para o combate.
Todos ansiavam por sangue, clamando pela luta. Havia, porém, uma exceção.
Whiskey era como o chamavam. Era o dono do bar. Carismático quando queria. Frio quando precisava. Eram essas duas qualidades em especial que pareciam ser o segredo de seu sucesso, mantendo seu adorado estabelecimento mesmo nos mais difíceis dos tempos, superando o que mais pareciam ser maldições. Sabendo-se disso, era fácil de entender porque aquele homem se sentia invencível atrás do balcão, um ser de confiança verdadeiramente invejável. Mas não naquela noite.
Seu rosto carregava uma preocupação que não mais conseguia esconder. Suas mãos inquietas tateavam nervosamente a superfície de madeira diante de si, seus dedos batendo em teclas de piano que ali não estavam. Sua respiração pesada parecia incomodada com o próprio ar da sala, como se tentasse não ser intoxicado a cada inspiração. Pequenos fios de suor escorriam por sua barba, descendo lentamente até seu queixo, por entre os densos fios grisalhos, até caírem gotas sobre o balcão.
Isso tudo devido a um mau pressentimento. Algo que o fazia se sentir enjoado. Um perigo iminente. Uma presença que havia entrado no bar há poucos minutos, misturando-se no meio do dar de pessoas.
Os olhos de Whiskey olhavam através das lentes de seus óculos. Exasperados, eles quicavam de um canto para o outro do bar à procura de quem quer que fosse. Não fazia ideia de como era o homem. Nem sabia se era um homem. Mas continuava a busca, acreditando poder reconhecer a ameaça em potencial e que, talvez, pudesse reagir a tempo.
Sua missão, porém, teve um fim forçado por uma explosão de sons.
O coração de Whiskey disparou. Dezenas de vozes exaltadas gritavam em desarmonia. Os combatentes haviam entrado na arena.
O dono do bar queria ter se tranquilizado, mas não o fez. Não conseguia. O pensamento de algo poderia surgir a qualquer momento, arrombando a porta da frente ou quebrando o teto acima de sua cabeça, o fazia ter certeza que estava paranoico.
Whiskey tentou afastar o pensamento. Agarrou a garrafa mais próxima de si, pegou um copo e se serviu. Engoliu o líquido tão rápido que nem sentiu o gosto. Apenas um leve ardor no fundo da garganta era a prova que havia álcool na bebida.
Ulrich! Alguém começou a gritar, enunciando cada sílaba separadamente, com força. Ulrich! Outros repetiram o nome, da mesma forma, com a mesma energia. Ulrich! Ulrich! Ulrich! Em pouco tempo, mais da metade do bar parecia torcer pelo mesmo combatente.
Não é para menos... Whiskey murmurou para si.
No centro da arena, um homem saudava sua torcida. Era mais alto que qualquer um lá. Mais forte também. Não vestia nada fora um par de calças jeans somente porque era obrigado a lutar de roupa. Seu peitoral alvo expunha os músculos bem definidos e os pelos claros. Sua face carregava uma espessa barba loira e dois olhos azuis frios, determinados. Ele desejava que a luta começasse o quanto antes. Queria se divertir.
 Aquele ele era Ulrich Pele-de-Aço, conhecido como o Viking. Era o defensor do líder de seu clã, Victor Pele-de-Aço, seu primo. Sempre que podia, o auto-proclamado guerreiro resolvia seus problemas com a brutalidade. Valendo-se de seus punhos como armas, raramente matava, mas sempre deixava clara uma mensagem clara para as vítimas: ossos quebrados e hemorragias internas, um lembrete para não entrarem no caminho dos Peles-de-Aço.  
Diante de Ulrich, estavam outros três homens. Era um bando de bandidos comuns, cobertos de tatuagens e mal encarados, notadamente fortes fisicamente, é claro, mas não eram lutadores de verdade. Eles teriam que se coordenar muito bem caso quisessem oferecer algum tipo de ameaça ao Viking.
Mas não foi o caso.
Quando anunciaram o começo da luta, o desafiante que se encontrava no meio avançou. Afoito, talvez ele achasse que pudesse atacar mais rápido que Ulrich, que começaria a luta intimidando o adversário. O chute do Viking em seu peito o trouxe de volta à realidade.
O homem voou para além dos limites da arena. Alguns espectadores tiveram que correr para os lados, espremendo-se contra o resto do público, saindo às pressas do caminho do recém-eliminado combatente. E é claro que grande parte da plateia urrou animada.
Aquilo fez os outros dois combatentes engolirem em seco. Porém, também os fizeram trocar olhares, tentando formar silenciosamente alguma estratégia.
Se vocês não vêm até mim... Ulrich começou a falar. Sua voz grave ecoava pelo bar, deixando a dupla de desafiantes ainda mais nervosa. Eu vou até vocês...
Com passos pesados, o Viking começou a avançar. Sua torcida vibrava com cada passo, antecedendo a próxima ação do guerreiro. Os dois pseudo-lutadores, nervosos, não tinham outra opção: tinham que agir antes que o inimigo agisse.
Um avançou pela esquerda; o outro, pela direita. Já era algum plano. Talvez Ulrich não pudesse bloquear dois golpes ao mesmo tempo. Essa era a esperança deles.
Porém, mais uma vez, a falta de coordenação seria repreendida com dor.
O bandido da direita foi mais rápido. Seu soco veio antes que o de seu aliado. O Viking teve tempo de sobra para bloquear o ataque, batendo seu antebraço contra o do adversário, virando-se bem a tempo de segurar o punho do combatente que avançava pela sua esquerda.
A multidão vibrou. O tempo, então. pareceu correr mais devagar para que os dois desafiantes pudessem se arrepender de terem entrado para a luta.
O braço direito de Ulrich avançou contra o abdômen do homem da esquerda, seu punho arrancando o ar dos pulmões do adversário, forçando-o a se curvar de dor. Então, o mesmo braço atacou para trás, rápido como um bote de uma cobra, acertando seu cotovelo contra a face do combatente da direita.
Atordoado, o bandido nem viu a mão do Viking afundando seu companheiro contra o chão duro. A próxima cena que viu foi Ulrich levantando o homem quase nocauteado e balançando-o no ar como um porrete, fazendo seus membros se moverem como os de uma boneca de pano, até que um de seus pés acertasse o pseudo-lutador, derrubando-o com um chute involuntário.
A torcida delirava. Até aqueles que torciam contra Ulrich agora o apoiavam. Estavam apenas se divertindo com o espetáculo de selvageria, sem pensar no dinheiro da aposta que tinha perdido.
Ulrich se livrou de sua arma, jogando o homem com força contra o chão. O baque surdo de suas costas contra o piso de madeira pareceu estremecer o bar. Agora não mais como ele se levantar.
O Viking, então, andou até o desafiante remanescente.
Levante-se! Ele ordenou. Você ainda pode lutar... Ainda pode entreter essa multidão!
A plateia urrou animada. Suas vozes torciam agora, em uníssono, por Ulrich.
Mas um grito quebrou a harmonia.
Todos os olhares se voltaram para um homem. Ele correu para dentro da arena. Seu grito de guerra desesperado só cessou quando enfim atacou. Em mãos, uma cadeira de madeira. O alvo: Ulrich.
Aquele foi, sem dúvidas, um dos piores planos de ataque que o guerreiro já tinha visto.
O Viking segurou a cadeira com apenas uma mão, bloqueando o golpe sem problemas. Ele, então, encarou o agressor, o combatente que havia eliminado com um chute, mostrando seus dentes como se fossem presas.
Ser lançado para fora da arena é considerado como derrota. Ulrich grunhiu como um animal. E você deveria ter aceitado a derrota com dignidade... Com um puxão brusco, o Viking arrancou a cadeira das mãos do adversário. Não ter voltado e tentado me atacar pelas costas como um verme!
As últimas palavras de Ulrich soaram como um rugido para o desafiante. Isso somado ao olhar sanguinário do Viking foi muito mais que o suficiente para amedrontar o combatente.
Ulrich ergueu a cadeira para o alto. Seu oponente se encolheu. Seus braços cobriram sua cabeça como um escudo. O olhar do Viking demonstrava apenas nojo pela fraqueza do adversário.
Então, com um brado, o guerreiro atacou.
A tentativa de defesa foi em vão. A cadeira atingiu o bandido, quebrando-se com o impacto. Pedaços de madeira foram lançados para todos os lados como fragmentos de uma granada. No centro da arena, um segundo desafiante caia desacordado perante uma multidão eufórica.
Apenas um sobrava.
O desafiante remanescente levantou tonto. Parte dele não queria nem ter se mexido, mas algo dentro de si praticamente o forçou a ficar de pé.
Não tem como você vencer... Ulrich afirmou num tom solene. Mas você ainda pode ser derrotado como um guerreiro... Perder a luta... Mas manter a honra... O que acha? Ele abriu os braços num gesto quase acolhedor. Vai me enfrentar sem medo?
O Viking nem precisou perguntar uma segunda vez. Seu desafiante virou de costas o mais rápido que pode e correu.
O sujeito teria escapado. Ele teria fugido pela porta da frente. Ele teria ignorado as vaias. Ele teria corrido com os próprios pés descalços até que o perdessem de vista. Ele sairia inteiro daquela luta. Mas não o deixaram.
Ouvir o som de ossos sendo quebrados. Ver sangue sendo jorrado. Sentir o desespero do fugitivo. A multidão queria isso e mais. Não hesitaram em formar uma parede humana. Sem esforço, bloquearam a rota de fuga do covarde e, com satisfação, empurraram-no de volta pro centro da arena.
Sem equilíbrio, cambaleou para trás. Não caiu apenas por o segurarem. Porém, sabia que não tinha como agradecer. Antes que pudesse reagir, um braço de Ulrich já entrelaçava seu pescoço. Dor o atingiu graças à pressão que esmagava seu pescoço. Temor o atacou quando sua visão começou a se tornar turva. Pânico o assolou quando sentiu o ar fugindo dos pulmões para não mais retornarem. E seus últimos momentos conscientes da noite se foram engolidos por um mar de agonia.
Quando o corpo inerte bateu atingiu o solo, a multidão vibrou mais que nunca. O entusiasmo da plateia só aumentou após o rugido vitorioso do Viking que estremeceu o bar. E aquela cena agradou Whiskey.
A visão fez ele soltar um suspiro aliviado. Tudo estava como deveria estar. O mau pressentimento foi só alguma paranoia sem fundamentos. Talvez ele devesse deixar aquilo de lado.
Quando Whiskey viu Ulrich se aproximando pela multidão, tratou logo de se preparar. Pegou prontamente uma garrafa do freezer. Um litro de cerveja de qualidade para o campeão. Então, colocou-a em cima da bancada e a abriu.
Grande luta hoje. Whiskey sorriu. Você é sempre ótimo pros negócios, grandalhão.
Eu que tenho que te agradecer. Disse o Viking cercado pelos fãs. Agradecer pela arena... Ele pegou a garrafa. E pela cerveja de graça!
Mas é claro... O dono do bar soava contente. Sempre um prazer te servir...
Ulrich, então, apontou a garrafa para Whiskey como se oferecesse um brinde simbólico para o amigo. Em seguida, levou a garrafa à sua boca e só terminou de beber quando não havia mais cerveja no vidro.
Ao bater a base da garrafa vazia no balcão, mais urros entusiasmados vieram das pessoas à sua volta. Novamente estavam entoando o nome do campeão e o aplaudindo. Ulrich não podia fazer nada a não ser sorrir para seus fãs.
Realmente, você é impressionante, Ulrich... Disse alguém.
Muitos pareciam não ter ouvido a voz. Mas o Viking ouviu. E Whiskey também.
Ambos voltaram seus olhares para a mesma direção. Logo ali, num banco de madeira em frente ao balcão, estava uma figura, no mínimo, curiosa. Parecia não pertencer ao lugar onde estava. Seu ar sombrio era justificado com as roupas completamente pretas, incluindo o sobretudo. Quanto ao rosto, misterioso podia ser um adjetivo apropriado, afinal, ninguém conseguia vê-lo. Coberto por uma máscara branca, apenas seus olhos castanhos eram visíveis.
Mas não estou aqui para puxar seu saco... O sujeito continuou, lançando um olhar desinteressado para as pessoas que rodeavam o Viking. Você já tem gente de sobra pra fazer isso...
Alguns protestos vieram do grupo de Ulrich, mas o guerreiro logo estendeu sua mão pedindo o silêncio deles. Ele foi obedecido.
Whiskey... O Viking começou. Você conhece esse...?
Quando seu olhar fitou o rosto do amigo, Ulrich parou de falar.
O semblante de Whiskey estava pálido, quase sem cor. Seus olhos pareciam sem vida, olhando para o nada. Sua boca aberta tremia como se quisesse falar algo que não conseguia. Era como se sua voz tivesse sido roubada.

O que você fez com ele!? Ulrich perguntou com um rugido. Responda!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Coração Negro, Capítulo 1 (Teaser)

Capítulo 1


O espetáculo estava prestes a começar.
O bar estava lotado como de costume. Dezenas de homens e mulheres, todos nitidamente animados, compunham a plateia da noite. O caótico coro de suas vozes preenchia o ar. A cerveja que derramavam de suas canecas encharcava o chão. O dinheiro de seus bolsos havia quase se esgotado com as últimas apostas.
No centro da multidão, um espaço vazio onda todos evitavam pisar. Um grande círculo branco desenhado no piso de madeira delimitava a arena. Urros e gritos logo saudariam a chegada dos gladiadores para o combate.
Todos ansiavam por sangue. Todos menos um homem.
Whiskey era como o chamavam. Era o dono do bar. Carismático quando queria. Frio quando precisava. Eram essas qualidades que pareciam ser o segredo do sucesso de seu estabelecimento. De fato, ele geralmente se sentia indestrutível no lugar. Nada poderia dar errado. Porém, aquela parecia ser uma noite atípica.
Seu rosto carregava uma preocupação que deixava transparecer. Suas mãos inquietas tateavam nervosamente a superfície de madeira diante de si, seus dedos batendo em teclas de piano que ali não estavam. Sua respiração pesada parecia incomodada com o próprio ar da sala, como se tentasse não ser intoxicado a cada inspiração. Pequenos fios de suor escorriam por sua barba, descendo lentamente até o queixo, por entre os fios grisalhos, até caírem gotas sobre o balcão.
Isso tudo devido a um mau pressentimento.
Seus olhos ligeiros olhavam através de seus óculos. Seu olhar quicava de um canto para o outro do bar. Tinha que ser alguém que estava causando aquilo, certo? Uma pessoa cuja presença fazia uma paranoia nunca antes vista em si gritar, alguém que fazia sua mente sentir uma faca apontando para sua garganta. Era mesmo apenas uma pessoa?

Então, uma explosão de som se espalhou pelo bar.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Anúncio 45

Acho que já sei quem será o protagonista da próxima história do universo da Rainha Vermelha.
Tentarei ter algo pronto para semana que vem.
Preparem-se.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Anúncio 44

Mais uma época conturbada pra mim. Escrever vai ser difícil até o dia 17. Porém, depois disso prometo compensar meus leitores. Novos contos estão por vir.
Até mais!