terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Coração Negro, Capítulo 1 (Incompleto)

Capítulo 1


O espetáculo estava prestes a começar.
O bar estava lotado como de costume. Dezenas de homens e mulheres, todos nitidamente animados, compunham a plateia da noite. O caótico coro de suas vozes preenchia o ar. A cerveja que derramavam de suas canecas encharcava o chão. O dinheiro de seus bolsos havia quase se esgotado com as últimas apostas.
No centro da multidão, um espaço vazio onda todos evitavam pisar. Um grande círculo branco desenhado no piso de madeira delimitava a arena. Urros e gritos logo saudariam a chegada dos gladiadores para o combate.
Todos ansiavam por sangue, clamando pela luta. Havia, porém, uma exceção.
Whiskey era como o chamavam. Era o dono do bar. Carismático quando queria. Frio quando precisava. Eram essas duas qualidades em especial que pareciam ser o segredo de seu sucesso, mantendo seu adorado estabelecimento mesmo nos mais difíceis dos tempos, superando o que mais pareciam ser maldições. Sabendo-se disso, era fácil de entender porque aquele homem se sentia invencível atrás do balcão, um ser de confiança verdadeiramente invejável. Mas não naquela noite.
Seu rosto carregava uma preocupação que não mais conseguia esconder. Suas mãos inquietas tateavam nervosamente a superfície de madeira diante de si, seus dedos batendo em teclas de piano que ali não estavam. Sua respiração pesada parecia incomodada com o próprio ar da sala, como se tentasse não ser intoxicado a cada inspiração. Pequenos fios de suor escorriam por sua barba, descendo lentamente até seu queixo, por entre os densos fios grisalhos, até caírem gotas sobre o balcão.
Isso tudo devido a um mau pressentimento. Algo que o fazia se sentir enjoado. Um perigo iminente. Uma presença que havia entrado no bar há poucos minutos, misturando-se no meio do dar de pessoas.
Os olhos de Whiskey olhavam através das lentes de seus óculos. Exasperados, eles quicavam de um canto para o outro do bar à procura de quem quer que fosse. Não fazia ideia de como era o homem. Nem sabia se era um homem. Mas continuava a busca, acreditando poder reconhecer a ameaça em potencial e que, talvez, pudesse reagir a tempo.
Sua missão, porém, teve um fim forçado por uma explosão de sons.
O coração de Whiskey disparou. Dezenas de vozes exaltadas gritavam em desarmonia. Os combatentes haviam entrado na arena.
O dono do bar queria ter se tranquilizado, mas não o fez. Não conseguia. O pensamento de algo poderia surgir a qualquer momento, arrombando a porta da frente ou quebrando o teto acima de sua cabeça, o fazia ter certeza que estava paranoico.
Whiskey tentou afastar o pensamento. Agarrou a garrafa mais próxima de si, pegou um copo e se serviu. Engoliu o líquido tão rápido que nem sentiu o gosto. Apenas um leve ardor no fundo da garganta era a prova que havia álcool na bebida.
Ulrich! Alguém começou a gritar, enunciando cada sílaba separadamente, com força. Ulrich! Outros repetiram o nome, da mesma forma, com a mesma energia. Ulrich! Ulrich! Ulrich! Em pouco tempo, mais da metade do bar parecia torcer pelo mesmo combatente.
Não é para menos... Whiskey murmurou para si.
No centro da arena, um homem saudava sua torcida. Era mais alto que qualquer um lá. Mais forte também. Não vestia nada fora um par de calças jeans somente porque era obrigado a lutar de roupa. Seu peitoral alvo expunha os músculos bem definidos e os pelos claros. Sua face carregava uma espessa barba loira e dois olhos azuis frios, determinados. Ele desejava que a luta começasse o quanto antes. Queria se divertir.
 Aquele ele era Ulrich Pele-de-Aço, conhecido como o Viking. Era o defensor do líder de seu clã, Victor Pele-de-Aço, seu primo. Sempre que podia, o auto-proclamado guerreiro resolvia seus problemas com a brutalidade. Valendo-se de seus punhos como armas, raramente matava, mas sempre deixava clara uma mensagem clara para as vítimas: ossos quebrados e hemorragias internas, um lembrete para não entrarem no caminho dos Peles-de-Aço.  
Diante de Ulrich, estavam outros três homens. Era um bando de bandidos comuns, cobertos de tatuagens e mal encarados, notadamente fortes fisicamente, é claro, mas não eram lutadores de verdade. Eles teriam que se coordenar muito bem caso quisessem oferecer algum tipo de ameaça ao Viking.
Mas não foi o caso.
Quando anunciaram o começo da luta, o desafiante que se encontrava no meio avançou. Afoito, talvez ele achasse que pudesse atacar mais rápido que Ulrich, que começaria a luta intimidando o adversário. O chute do Viking em seu peito o trouxe de volta à realidade.
O homem voou para além dos limites da arena. Alguns espectadores tiveram que correr para os lados, espremendo-se contra o resto do público, saindo às pressas do caminho do recém-eliminado combatente. E é claro que grande parte da plateia urrou animada.
Aquilo fez os outros dois combatentes engolirem em seco. Porém, também os fizeram trocar olhares, tentando formar silenciosamente alguma estratégia.
Se vocês não vêm até mim... Ulrich começou a falar. Sua voz grave ecoava pelo bar, deixando a dupla de desafiantes ainda mais nervosa. Eu vou até vocês...
Com passos pesados, o Viking começou a avançar. Sua torcida vibrava com cada passo, antecedendo a próxima ação do guerreiro. Os dois pseudo-lutadores, nervosos, não tinham outra opção: tinham que agir antes que o inimigo agisse.
Um avançou pela esquerda; o outro, pela direita. Já era algum plano. Talvez Ulrich não pudesse bloquear dois golpes ao mesmo tempo. Essa era a esperança deles.
Porém, mais uma vez, a falta de coordenação seria repreendida com dor.
O bandido da direita foi mais rápido. Seu soco veio antes que o de seu aliado. O Viking teve tempo de sobra para bloquear o ataque, batendo seu antebraço contra o do adversário, virando-se bem a tempo de segurar o punho do combatente que avançava pela sua esquerda.
A multidão vibrou. O tempo, então. pareceu correr mais devagar para que os dois desafiantes pudessem se arrepender de terem entrado para a luta.
O braço direito de Ulrich avançou contra o abdômen do homem da esquerda, seu punho arrancando o ar dos pulmões do adversário, forçando-o a se curvar de dor. Então, o mesmo braço atacou para trás, rápido como um bote de uma cobra, acertando seu cotovelo contra a face do combatente da direita.
Atordoado, o bandido nem viu a mão do Viking afundando seu companheiro contra o chão duro. A próxima cena que viu foi Ulrich levantando o homem quase nocauteado e balançando-o no ar como um porrete, fazendo seus membros se moverem como os de uma boneca de pano, até que um de seus pés acertasse o pseudo-lutador, derrubando-o com um chute involuntário.
A torcida delirava. Até aqueles que torciam contra Ulrich agora o apoiavam. Estavam apenas se divertindo com o espetáculo de selvageria, sem pensar no dinheiro da aposta que tinha perdido.
Ulrich se livrou de sua arma, jogando o homem com força contra o chão. O baque surdo de suas costas contra o piso de madeira pareceu estremecer o bar. Agora não mais como ele se levantar.
O Viking, então, andou até o desafiante remanescente.
Levante-se! Ele ordenou. Você ainda pode lutar... Ainda pode entreter essa multidão!
A plateia urrou animada. Suas vozes torciam agora, em uníssono, por Ulrich.
Mas um grito quebrou a harmonia.
Todos os olhares se voltaram para um homem. Ele correu para dentro da arena. Seu grito de guerra desesperado só cessou quando enfim atacou. Em mãos, uma cadeira de madeira. O alvo: Ulrich.
Aquele foi, sem dúvidas, um dos piores planos de ataque que o guerreiro já tinha visto.
O Viking segurou a cadeira com apenas uma mão, bloqueando o golpe sem problemas. Ele, então, encarou o agressor, o combatente que havia eliminado com um chute, mostrando seus dentes como se fossem presas.
Ser lançado para fora da arena é considerado como derrota. Ulrich grunhiu como um animal. E você deveria ter aceitado a derrota com dignidade... Com um puxão brusco, o Viking arrancou a cadeira das mãos do adversário. Não ter voltado e tentado me atacar pelas costas como um verme!
As últimas palavras de Ulrich soaram como um rugido para o desafiante. Isso somado ao olhar sanguinário do Viking foi muito mais que o suficiente para amedrontar o combatente.
Ulrich ergueu a cadeira para o alto. Seu oponente se encolheu. Seus braços cobriram sua cabeça como um escudo. O olhar do Viking demonstrava apenas nojo pela fraqueza do adversário.
Então, com um brado, o guerreiro atacou.
A tentativa de defesa foi em vão. A cadeira atingiu o bandido, quebrando-se com o impacto. Pedaços de madeira foram lançados para todos os lados como fragmentos de uma granada. No centro da arena, um segundo desafiante caia desacordado perante uma multidão eufórica.
Apenas um sobrava.
O desafiante remanescente levantou tonto. Parte dele não queria nem ter se mexido, mas algo dentro de si praticamente o forçou a ficar de pé.
Não tem como você vencer... Ulrich afirmou num tom solene. Mas você ainda pode ser derrotado como um guerreiro... Perder a luta... Mas manter a honra... O que acha? Ele abriu os braços num gesto quase acolhedor. Vai me enfrentar sem medo?
O Viking nem precisou perguntar uma segunda vez. Seu desafiante virou de costas o mais rápido que pode e correu.
O sujeito teria escapado. Ele teria fugido pela porta da frente. Ele teria ignorado as vaias. Ele teria corrido com os próprios pés descalços até que o perdessem de vista. Ele sairia inteiro daquela luta. Mas não o deixaram.
Ouvir o som de ossos sendo quebrados. Ver sangue sendo jorrado. Sentir o desespero do fugitivo. A multidão queria isso e mais. Não hesitaram em formar uma parede humana. Sem esforço, bloquearam a rota de fuga do covarde e, com satisfação, empurraram-no de volta pro centro da arena.
Sem equilíbrio, cambaleou para trás. Não caiu apenas por o segurarem. Porém, sabia que não tinha como agradecer. Antes que pudesse reagir, um braço de Ulrich já entrelaçava seu pescoço. Dor o atingiu graças à pressão que esmagava seu pescoço. Temor o atacou quando sua visão começou a se tornar turva. Pânico o assolou quando sentiu o ar fugindo dos pulmões para não mais retornarem. E seus últimos momentos conscientes da noite se foram engolidos por um mar de agonia.
Quando o corpo inerte bateu atingiu o solo, a multidão vibrou mais que nunca. O entusiasmo da plateia só aumentou após o rugido vitorioso do Viking que estremeceu o bar. E aquela cena agradou Whiskey.
A visão fez ele soltar um suspiro aliviado. Tudo estava como deveria estar. O mau pressentimento foi só alguma paranoia sem fundamentos. Talvez ele devesse deixar aquilo de lado.
Quando Whiskey viu Ulrich se aproximando pela multidão, tratou logo de se preparar. Pegou prontamente uma garrafa do freezer. Um litro de cerveja de qualidade para o campeão. Então, colocou-a em cima da bancada e a abriu.
Grande luta hoje. Whiskey sorriu. Você é sempre ótimo pros negócios, grandalhão.
Eu que tenho que te agradecer. Disse o Viking cercado pelos fãs. Agradecer pela arena... Ele pegou a garrafa. E pela cerveja de graça!
Mas é claro... O dono do bar soava contente. Sempre um prazer te servir...
Ulrich, então, apontou a garrafa para Whiskey como se oferecesse um brinde simbólico para o amigo. Em seguida, levou a garrafa à sua boca e só terminou de beber quando não havia mais cerveja no vidro.
Ao bater a base da garrafa vazia no balcão, mais urros entusiasmados vieram das pessoas à sua volta. Novamente estavam entoando o nome do campeão e o aplaudindo. Ulrich não podia fazer nada a não ser sorrir para seus fãs.
Realmente, você é impressionante, Ulrich... Disse alguém.
Muitos pareciam não ter ouvido a voz. Mas o Viking ouviu. E Whiskey também.
Ambos voltaram seus olhares para a mesma direção. Logo ali, num banco de madeira em frente ao balcão, estava uma figura, no mínimo, curiosa. Parecia não pertencer ao lugar onde estava. Seu ar sombrio era justificado com as roupas completamente pretas, incluindo o sobretudo. Quanto ao rosto, misterioso podia ser um adjetivo apropriado, afinal, ninguém conseguia vê-lo. Coberto por uma máscara branca, apenas seus olhos castanhos eram visíveis.
Mas não estou aqui para puxar seu saco... O sujeito continuou, lançando um olhar desinteressado para as pessoas que rodeavam o Viking. Você já tem gente de sobra pra fazer isso...
Alguns protestos vieram do grupo de Ulrich, mas o guerreiro logo estendeu sua mão pedindo o silêncio deles. Ele foi obedecido.
Whiskey... O Viking começou. Você conhece esse...?
Quando seu olhar fitou o rosto do amigo, Ulrich parou de falar.
O semblante de Whiskey estava pálido, quase sem cor. Seus olhos pareciam sem vida, olhando para o nada. Sua boca aberta tremia como se quisesse falar algo que não conseguia. Era como se sua voz tivesse sido roubada.

O que você fez com ele!? Ulrich perguntou com um rugido. Responda!

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