Capítulo 1
O espetáculo estava prestes a começar.
O bar estava lotado como de costume. Dezenas de homens e
mulheres, todos nitidamente animados, compunham a plateia da noite. O caótico
coro de suas vozes preenchia o ar. A cerveja que derramavam de suas canecas
encharcava o chão. O dinheiro de seus bolsos havia quase se esgotado com as últimas
apostas.
No centro da multidão, um espaço vazio onda todos evitavam
pisar. Um grande círculo branco desenhado no piso de madeira delimitava a
arena. Urros e gritos logo saudariam a chegada dos gladiadores para o combate.
Todos ansiavam por sangue, clamando pela luta. Havia, porém,
uma exceção.
Whiskey era como o chamavam. Era o dono do bar. Carismático
quando queria. Frio quando precisava. Eram essas duas qualidades em especial que
pareciam ser o segredo de seu sucesso, mantendo seu adorado estabelecimento
mesmo nos mais difíceis dos tempos, superando o que mais pareciam ser
maldições. Sabendo-se disso, era fácil de entender porque aquele homem se
sentia invencível atrás do balcão, um ser de confiança verdadeiramente
invejável. Mas não naquela noite.
Seu rosto carregava uma preocupação que não mais conseguia
esconder. Suas mãos inquietas tateavam nervosamente a superfície de madeira
diante de si, seus dedos batendo em teclas de piano que ali não estavam. Sua
respiração pesada parecia incomodada com o próprio ar da sala, como se tentasse
não ser intoxicado a cada inspiração. Pequenos fios de suor escorriam por sua
barba, descendo lentamente até seu queixo, por entre os densos fios grisalhos,
até caírem gotas sobre o balcão.
Isso tudo devido a um mau pressentimento. Algo que o fazia
se sentir enjoado. Um perigo iminente. Uma presença que havia entrado no bar há
poucos minutos, misturando-se no meio do dar de pessoas.
Os olhos de Whiskey olhavam através das lentes de seus
óculos. Exasperados, eles quicavam de um canto para o outro do bar à procura de
quem quer que fosse. Não fazia ideia de como era o homem. Nem sabia se era um
homem. Mas continuava a busca, acreditando poder reconhecer a ameaça em
potencial e que, talvez, pudesse reagir a tempo.
Sua missão, porém, teve um fim forçado por uma explosão de
sons.
O coração de Whiskey disparou. Dezenas de vozes exaltadas
gritavam em desarmonia. Os combatentes haviam entrado na arena.
O dono do bar queria ter se tranquilizado, mas não o fez. Não
conseguia. O pensamento de algo poderia surgir a qualquer momento, arrombando a
porta da frente ou quebrando o teto acima de sua cabeça, o fazia ter certeza
que estava paranoico.
Whiskey tentou afastar o pensamento. Agarrou a garrafa mais
próxima de si, pegou um copo e se serviu. Engoliu o líquido tão rápido que nem
sentiu o gosto. Apenas um leve ardor no fundo da garganta era a prova que havia
álcool na bebida.
—
Ulrich! — Alguém
começou a gritar, enunciando cada sílaba separadamente, com força. — Ulrich! — Outros repetiram o nome, da
mesma forma, com a mesma energia. —
Ulrich! Ulrich! Ulrich! —
Em pouco tempo, mais da metade do bar parecia torcer pelo mesmo combatente.
—
Não é para menos... —
Whiskey murmurou para si.
No centro da arena, um homem saudava sua torcida. Era mais
alto que qualquer um lá. Mais forte também. Não vestia nada fora um par de
calças jeans somente porque era obrigado a lutar de roupa. Seu peitoral alvo
expunha os músculos bem definidos e os pelos claros. Sua face carregava uma
espessa barba loira e dois olhos azuis frios, determinados. Ele desejava que a
luta começasse o quanto antes. Queria se divertir.
Aquele ele era Ulrich
Pele-de-Aço, conhecido como o Viking. Era o defensor do líder de seu clã, Victor
Pele-de-Aço, seu primo. Sempre que podia, o auto-proclamado guerreiro resolvia
seus problemas com a brutalidade. Valendo-se de seus punhos como armas,
raramente matava, mas sempre deixava clara uma mensagem clara para as vítimas:
ossos quebrados e hemorragias internas, um lembrete para não entrarem no
caminho dos Peles-de-Aço.
Diante de Ulrich, estavam outros três homens. Era um bando
de bandidos comuns, cobertos de tatuagens e mal encarados, notadamente fortes
fisicamente, é claro, mas não eram lutadores de verdade. Eles teriam que se
coordenar muito bem caso quisessem oferecer algum tipo de ameaça ao Viking.
Mas não foi o caso.
Quando anunciaram o começo da luta, o desafiante que se
encontrava no meio avançou. Afoito, talvez ele achasse que pudesse atacar mais
rápido que Ulrich, que começaria a luta intimidando o adversário. O chute do
Viking em seu peito o trouxe de volta à realidade.
O homem voou para além dos limites da arena. Alguns
espectadores tiveram que correr para os lados, espremendo-se contra o resto do
público, saindo às pressas do caminho do recém-eliminado combatente. E é claro
que grande parte da plateia urrou animada.
Aquilo fez os outros dois combatentes engolirem em seco.
Porém, também os fizeram trocar olhares, tentando formar silenciosamente alguma
estratégia.
—
Se vocês não vêm até mim... —
Ulrich começou a falar. Sua voz grave ecoava pelo bar, deixando a dupla de
desafiantes ainda mais nervosa. —
Eu vou até vocês...
Com passos pesados, o Viking começou a avançar. Sua torcida
vibrava com cada passo, antecedendo a próxima ação do guerreiro. Os dois
pseudo-lutadores, nervosos, não tinham outra opção: tinham que agir antes que o
inimigo agisse.
Um avançou pela esquerda; o outro, pela direita. Já era algum
plano. Talvez Ulrich não pudesse bloquear dois golpes ao mesmo tempo. Essa era
a esperança deles.
Porém, mais uma vez, a falta de coordenação seria
repreendida com dor.
O bandido da direita foi mais rápido. Seu soco veio antes
que o de seu aliado. O Viking teve tempo de sobra para bloquear o ataque,
batendo seu antebraço contra o do adversário, virando-se bem a tempo de segurar
o punho do combatente que avançava pela sua esquerda.
A multidão vibrou. O tempo, então. pareceu correr mais
devagar para que os dois desafiantes pudessem se arrepender de terem entrado
para a luta.
O braço direito de Ulrich avançou contra o abdômen do homem
da esquerda, seu punho arrancando o ar dos pulmões do adversário, forçando-o a
se curvar de dor. Então, o mesmo braço atacou para trás, rápido como um bote de
uma cobra, acertando seu cotovelo contra a face do combatente da direita.
Atordoado, o bandido nem viu a mão do Viking afundando seu
companheiro contra o chão duro. A próxima cena que viu foi Ulrich levantando o
homem quase nocauteado e balançando-o no ar como um porrete, fazendo seus
membros se moverem como os de uma boneca de pano, até que um de seus pés
acertasse o pseudo-lutador, derrubando-o com um chute involuntário.
A torcida delirava. Até aqueles que torciam contra Ulrich
agora o apoiavam. Estavam apenas se divertindo com o espetáculo de selvageria,
sem pensar no dinheiro da aposta que tinha perdido.
Ulrich se livrou de sua arma, jogando o homem com força
contra o chão. O baque surdo de suas costas contra o piso de madeira pareceu
estremecer o bar. Agora não mais como ele se levantar.
O Viking, então, andou até o desafiante remanescente.
—
Levante-se! — Ele
ordenou. — Você ainda
pode lutar... Ainda pode entreter essa multidão!
A plateia urrou animada. Suas vozes torciam agora, em
uníssono, por Ulrich.
Mas um grito quebrou a harmonia.
Todos os olhares se voltaram para um homem. Ele correu para
dentro da arena. Seu grito de guerra desesperado só cessou quando enfim atacou.
Em mãos, uma cadeira de madeira. O alvo: Ulrich.
Aquele foi, sem dúvidas, um dos piores planos de ataque que
o guerreiro já tinha visto.
O Viking segurou a cadeira com apenas uma mão, bloqueando o
golpe sem problemas. Ele, então, encarou o agressor, o combatente que havia
eliminado com um chute, mostrando seus dentes como se fossem presas.
— Ser
lançado para fora da arena é considerado como derrota. — Ulrich grunhiu como um animal. — E você deveria ter
aceitado a derrota com dignidade... —
Com um puxão brusco, o Viking arrancou a cadeira das mãos do adversário. — Não ter voltado e tentado
me atacar pelas costas como um verme!
As últimas palavras de Ulrich soaram como um rugido para o
desafiante. Isso somado ao olhar sanguinário do Viking foi muito mais que o
suficiente para amedrontar o combatente.
Ulrich ergueu a cadeira para o alto. Seu oponente se
encolheu. Seus braços cobriram sua cabeça como um escudo. O olhar do Viking
demonstrava apenas nojo pela fraqueza do adversário.
Então, com um brado, o guerreiro atacou.
A tentativa de defesa foi em vão. A cadeira atingiu o
bandido, quebrando-se com o impacto. Pedaços de madeira foram lançados para
todos os lados como fragmentos de uma granada. No centro da arena, um segundo
desafiante caia desacordado perante uma multidão eufórica.
Apenas um sobrava.
O desafiante remanescente levantou tonto. Parte dele não
queria nem ter se mexido, mas algo dentro de si praticamente o forçou a ficar
de pé.
—
Não tem como você vencer... —
Ulrich afirmou num tom solene. —
Mas você ainda pode ser derrotado como um guerreiro... Perder a luta... Mas
manter a honra... O que acha? —
Ele abriu os braços num gesto quase acolhedor. —
Vai me enfrentar sem medo?
O Viking nem precisou perguntar uma segunda vez. Seu
desafiante virou de costas o mais rápido que pode e correu.
O sujeito teria escapado. Ele teria fugido pela porta da
frente. Ele teria ignorado as vaias. Ele teria corrido com os próprios pés
descalços até que o perdessem de vista. Ele sairia inteiro daquela luta. Mas
não o deixaram.
Ouvir o som de ossos sendo quebrados. Ver sangue sendo
jorrado. Sentir o desespero do fugitivo. A multidão queria isso e mais. Não
hesitaram em formar uma parede humana. Sem esforço, bloquearam a rota de fuga
do covarde e, com satisfação, empurraram-no de volta pro centro da arena.
Sem equilíbrio, cambaleou para trás. Não caiu apenas por o
segurarem. Porém, sabia que não tinha como agradecer. Antes que pudesse reagir,
um braço de Ulrich já entrelaçava seu pescoço. Dor o atingiu graças à pressão
que esmagava seu pescoço. Temor o atacou quando sua visão começou a se tornar
turva. Pânico o assolou quando sentiu o ar fugindo dos pulmões para não mais
retornarem. E seus últimos momentos conscientes da noite se foram engolidos por
um mar de agonia.
Quando o corpo inerte bateu atingiu o solo, a multidão vibrou
mais que nunca. O entusiasmo da plateia só aumentou após o rugido vitorioso do
Viking que estremeceu o bar. E aquela cena agradou Whiskey.
A visão fez ele soltar um suspiro aliviado. Tudo estava como
deveria estar. O mau pressentimento foi só alguma paranoia sem fundamentos.
Talvez ele devesse deixar aquilo de lado.
Quando Whiskey viu Ulrich se aproximando pela multidão,
tratou logo de se preparar. Pegou prontamente uma garrafa do freezer. Um litro
de cerveja de qualidade para o campeão. Então, colocou-a em cima da bancada e a
abriu.
—
Grande luta hoje. —
Whiskey sorriu. —
Você é sempre ótimo pros negócios, grandalhão.
—
Eu que tenho que te agradecer. —
Disse o Viking cercado pelos fãs. —
Agradecer pela arena... —
Ele pegou a garrafa. —
E pela cerveja de graça!
—
Mas é claro... — O
dono do bar soava contente. —
Sempre um prazer te servir...
Ulrich, então, apontou a garrafa para Whiskey como se
oferecesse um brinde simbólico para o amigo. Em seguida, levou a garrafa à sua
boca e só terminou de beber quando não havia mais cerveja no vidro.
Ao bater a base da garrafa vazia no balcão, mais urros
entusiasmados vieram das pessoas à sua volta. Novamente estavam entoando o nome
do campeão e o aplaudindo. Ulrich não podia fazer nada a não ser sorrir para
seus fãs.
—
Realmente, você é impressionante, Ulrich... —
Disse alguém.
Muitos pareciam não ter ouvido a voz. Mas o Viking ouviu. E
Whiskey também.
Ambos voltaram seus olhares para a mesma direção. Logo ali,
num banco de madeira em frente ao balcão, estava uma figura, no mínimo,
curiosa. Parecia não pertencer ao lugar onde estava. Seu ar sombrio era
justificado com as roupas completamente pretas, incluindo o sobretudo. Quanto
ao rosto, misterioso podia ser um
adjetivo apropriado, afinal, ninguém conseguia vê-lo. Coberto por uma máscara
branca, apenas seus olhos castanhos eram visíveis.
—
Mas não estou aqui para puxar seu saco... —
O sujeito continuou, lançando um olhar desinteressado para as pessoas que
rodeavam o Viking. —
Você já tem gente de sobra pra fazer isso...
Alguns protestos vieram do grupo de Ulrich, mas o guerreiro logo
estendeu sua mão pedindo o silêncio deles. Ele foi obedecido.
—
Whiskey... — O Viking
começou. — Você
conhece esse...?
Quando seu olhar fitou o rosto do amigo, Ulrich parou de
falar.
O semblante de Whiskey estava pálido, quase sem cor. Seus
olhos pareciam sem vida, olhando para o nada. Sua boca aberta tremia como se
quisesse falar algo que não conseguia. Era como se sua voz tivesse sido
roubada.
—
O que você fez com ele!? —
Ulrich perguntou com um rugido. —
Responda!
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