O Meu Dever
Aquele foi um trabalho que eu tive que aceitar.
Normalmente, não saio investigando qualquer caso que
aparece. Mas, quando o seu trabalho lhe dá a chance de voltar a um lugar
querido, um lugar que você não visita desde pequeno, você não recusa.
Demorei a chegar ao lugar praticamente isolado do resto
do mundo. Peguei estradas e mais estradas em minha fiel montaria até chegar ao
meu destino. Uma vez lá, parei minha moto no topo do vale e, amargamente, olhei
para o céu recheado de nuvens cinzentas que apenas ameaçava chover.
Em questão de segundos, fui tomado pela raiva. Todas as
minhas doces e nostálgicas lembranças daquele vilarejo desvaneceram, reduzidas
ao pó e sopradas para longe.
O gramado verde era, agora, cinzento e coberto por uma
leve camada de névoa, destoando das árvores verdes além do vale. Não haviam
mais flores ou arbustos carregados de amoras. O rio límpido estava lamacento e,
até onde eu podia ver, não haviam mais peixes, apenas alguns poucos sapos que
coaxavam. Em compensação, dezenas de insetos voavam e impregnavam o ar com os
mais diversos zumbidos. Obviamente, eu não sentia vontade de respirar fundo e
sentir meus pulmões se enchendo com aquele ar fétido.
Trinta anos haviam se passado. Entretanto, algo me dizia
que não foi o tempo o responsável daquele desastre.
Ao entrar na vila, fiquei ainda mais desanimado.
As casas pareciam abandonadas com suas janelas quebradas,
pinturas desbotadas, paredes de madeira rachadas e, em alguns casos,
chamuscadas.
Os moradores de lá eram ainda mais deprimentes. Pareciam
zumbis se arrastando, cabisbaixos, de um lado para o outro. A maioria era
doentiamente pálida. Alguns eram magros, ossudos, com as roupas frouxas no
corpo. As olheiras escureciam ainda mais os olhos frios e sem brilho.
— Opa,
forasteiro... — Disse
um homem.
Eu olhei para o meu interlocutor. Era um senhor magro,
calvo e de pele escura que estava sentado com as costas na parede de uma casa.
Pela barba branca, diria que ele não a aparava a dias. Suas roupas eram
simples: uma camisa xadrez e calças jeans gastas. Seus pés estavam descalços. Sua
boca exibia dentes amarelos, bem como um cigarro de palha.
Aquele era o bom e velho Ferdinando. Eu o reconheceria em
qualquer. Afinal, mesmo depois de tantos anos, sua fisionomia não havia se alterado.
Ele, entretanto, não tinha como me reconhecer.
— Ei... — Murmurei. Julguei que não
seria necessário relembrá-lo de mim.
—
Faz tempo que não vemos ninguém de fora... —
Ferdinando contou. —
Ainda mais agora...
—
Percebo... — Limpei
minha garganta. — Então,
o que aconteceu exatamente?
—
Ora... — Ele deu uma
tragada no cigarro e soprou a fumaça para o lado. — Fomos amaldiçoados, jovem...
—
Uma maldição, hein? —
Aproximei-me mais dele, ficando de cócoras a sua frente. — Conte-me mais.
—
Ah... Você acredita em maldiçoes então?
— É
claro. Já vi muita coisa que, definitivamente, não era desse mundo.
—
Hm... — Ele coçou o
queixo, pensativo. —
Acho que posso acreditar em você... Hm... É... Não vejo por que não...
—
Poderia me contar os detalhes dessa maldição?
—
Claro, claro... — Ele
tossiu. — Bem, tudo
estava tranquilo, sossegado e devagar como sempre, sabe? Então, isso
aconteceu... Faz só uma semana...
—
Uma semana? — Ergui
uma sobrancelha. —
Toda essa devastação...?
—
É... Forte essa maldição. Coisa do próprio diabo...
—
Pouco provável... —
Murmurei.
—
O quê?
—
Nada, nada... Prossiga.
—
Então... Não sei como a maldição começou. Ninguém na vila sabe. Só sabemos
que...
O senhor Ferdinando parou de falar. O ar, repentinamente,
mudou, tornando-se mais denso, pesando sobre meus ombros e parecendo rarefeito.
Tive dificuldade para respirar durante uma fração de segundos, quase como se eu
estivesse sendo sufocado. De repente, uma corrente de ar frio atravessou a
vila. Os moradores gemeram, antecipando o sofrimento. Foi aí que a calmaria foi irrompida
abruptamente.
Um grito veio, soando como uma sirene, tremendo o chão e
cortando o ar. A mistura de dor e ódio veio nos sons, em forma de som,
açoitando tudo o que encontrava. Eu tentei tapar meus ouvidos. Em vão. O som mal
foi abafado. Os moradores, que pareciam já saber o que aconteceria, nem
tentavam se proteger do ataque. Entretanto, aquilo não queria dizer que eles
estavam a salvo. O sofrimento era nítido nos semblantes de cada um deles,
inclusive no do senhor Ferdinando.
O som parecia não parar, tornando-se mais agudo e
estrondoso a cada segundo. Ondas contínuas vinham e invadiam a minha cabeça,
ricocheteando como um projétil dentro de meu crânio. Eu comecei a tremer. Minha
visão ficou turva. Perdi o equilíbrio, saindo de minha posição de cócoras para
cair sentado no gramado. Levei minhas mãos a minha cabeça, inutilmente, sem
poder fazer nada contra a súbita enxaqueca, trincando os dentes, esperando que
tudo aquilo passasse o mais rápido possível.
Por um momento, eu achei que ia enlouquecer. Respirei
fundo, tentando manter minha sanidade, tentando evitar os pensamentos confusos
e violentos que vinham até mim.
Não sei dizer ao certo quanto tempo se passou. Pareceu
uma eternidade para mim. Porém, os gritos cessaram.
Minha cabeça parou de latejar no mesmo instante,
entretanto, eu sentia o meu corpo enfraquecido, como se parte de minha energia
tivesse sido drenada subitamente.
—
Todo santo dia... — O
senhor Ferdinando murmurou. —
Todo santo dia isso acontece... Todo santo dia desde sete dias atrás...
—
Ah... — Eu limpei a
garganta. — E... Suponho
que isso aconteça várias vezes ao dia.
—
Umas duas... Ou três. —
Respondeu sem ânimo.
Suponho que vocês não consigam fugir daqui.
—
É... — Ele bufou. — Parte da maldição. É como
se algo puxasse a gente de volta pra cá... —
Ferdinando olhou nos meus olhos. —
Se você continuar aqui por muito tempo, garoto... Você não vai conseguir se
salvar. Por isso...
—
Não vou sair daqui. —
Disse determinado. —
Não enquanto a maldição persistir.
—
Ora... — Ele esboçou
um sorriso. — E por
que isso?
—
Porque é o meu trabalho.
—
Acabar com maldições?
—
Fora outras coisas.
O senhor Ferdinando riu alegre. Até parecia que ele não
sofria.
—
É sempre bom quando jovens cheios de energia resolvem ajudar. — Disse ele. — Agradeço desde já.
—
Agradeça quando tudo estiver resolvido. Agora... O que você pode me dizer com
certeza sobre a maldição? Isso é, fora o que eu já senti na pele agora pouco...
—
Hm... — Ferdinando
coçou a careca. —
Acho que sei de onde vêm os gritos.
—
Sério? De onde?
—
Ah... — O senhor
apontou para uma colina quase no limite do vale. O único caminho aparente, com
isso me refiro aos humanamente possíveis, era uma trilha irregular que ascendia
até o local. — Ali.
—
Hm... — Sorri
confiante. — Nesse
caso, já volto.
—
Certo, meu jovem... Espero que essas armas te protejam.
—
Ah... — Sorri,
surpreso. Não sabia que ele havia percebido os revólveres nos coldres juntos à
minha cintura. No fim, o senhor era mais perspicaz do que aparentava. — Espero o mesmo.
Despedi-me rapidamente de Ferdinando e, sem muito ânimo,
segui em direção à trilha.
Não me entenda errado. Eu queria ajudar a cidade. Daria o
meu melhor para isso. Mas eu me sentia fraco. Aquela energia negra estava me
afetando. A assombração que empesteava o lugar era forte. Isso eu admito. Além
disso, eu estaria em uma grande desvantagem nesse confronto. E isso me
preocupava.
Segui a trilha rochosa, galgando e escalando rochas. Eu
sentia pequenas agulhadas pelo corpo a cada esforço meu. Passo a passo, eu
sentia o ar se tornar mais pesado e, meus movimentos, mais vagarosos.
Em questão de minutos eu estava em frente do que eu tinha
certeza ser o covil da criatura. A abertura irregular na colina sem vida
evidenciava a entrada da gruta. Com um mau pressentimento, eu adentrei o local.
A escuridão era praticamente absoluta. Eu mal conseguia
enxergar o chão em que eu pisava. Receoso, fui até a parede mais próxima.
Praticamente sem visão, resolvi confiar no meu tato.
A cada passo meu, eu tocava delicadamente a parede ao meu
lado, quase com medo de que eu pudesse quebrá-la. Meus nervos estavam à flor da
pele. A assombração poderia surgir a qualquer momento. Nesse momento, eu teria
que sacar minhas armas para tentar me defender.
Talvez não faça muito sentido para quem é, digamos, de fora, mas revólveres podem causar
danos a fantasmas. Óbvio que me refiro àqueles abençoados, próprios para serem
usados contra monstros de qualquer forma. O mero contato das balas de uma arma
contra uma assombração é capaz de feri-la. Isso se refere a qualquer outra
arma. Rifles, espadas e, até mesmo, crucifixos. Isso me lembra de um amigo meu.
Mas isso é estória pra outro dia.
Voltando ao assunto de se usar armas contra inimigos sem
corpo físico, admito que não é muito efetivo. Encantamentos são muito mais
eficazes. Porém, eles não são minha especialidade. Teria que me virar com os revólveres. Cada
bala era capaz de infligir uma sensação de dor aguda, como uma agulha em brasa,
contra um fantasma. Mas estava longe de ser letal. Mas era aí que vinha o real
plano.
Acabar com uma maldição pode, na verdade, ser feita, por
qualquer pessoa. Basta saber como se livrar do fantasma. Afinal, algo prende o
espírito nesse plano. Assuntos não resolvidos, sabe? Talvez, naquele covil, eu
achasse algo de útil.
Assim, eu senti meu coração acelerar ao pisar em algo no
chão. Era algo de metal. Pequeno também. Certamente, eu não o havia danificado.
Ou era o que eu esperava.
Enfim, eu soube que aquele objeto era importante pelo o
que aconteceu em seguida.
Um sopro de ar gélido adentrou a gruta. Estremeci. O
vento sibilava, parecendo tentar murmurar algo que eu não conseguiria entender.
A escuridão começou, de repente, a se mover, como milhares de serpentes se
arrastando por estalactites e estalagmites, unindo-se lentamente no centro da
caverna, dando origem a uma poça de líquido negro que borbulhava.
À medida que as sombras se reuniam a minha frente, o
ambiente à minha volta se tornava mais claro, como se a criatura que se
formaria perante meus olhos fosse a responsável por roubar a luz.
Um odor fétido era liberado constantemente da poça. Cobri
meu nariz com minha mão esquerda, mas aquilo pouco adiantou. Lentamente, a
mistura hedionda começou a tomar forma. Como se saísse de um portal, os braços
longos e com dedos que mais pareciam garras surgiram e agarraram o chão.
Rapidamente, a criatura se puxou para fora da poça, como se estivesse saindo da
margem de um rio.
Seu corpo estava coberto pelo líquido negro. Seus longos
cabelos que passavam do meio das costas, seu vestido esvoaçante, até mesmo suas
pernas que não tocavam o chão. Era como se fosse uma grande silhueta
tridimensional em minha frente. Da escuridão, só consegui distinguir os dentes
retorcidos em um sorriso malévolo e os olhos escarlates.
Sua boca se abriu. Antes que ela pudesse dizer qualquer
coisa, ou até mesmo gritar como antes, saquei um revólver com a mão direita e,
rapidamente, atirei contra ela. A bala atravessou seu ombro direito. Em
seguida, a aparição gritou. Mas não como antes. Agora, havia apenas dor em sua
voz.
Consegui tempo o suficiente para me abaixar e pegar o
objeto metálico. Era um relógio de corda feito de prata. Essa era toda a
análise que eu podia fazer no momento. Coloquei-o rapidamente num bolso.
A assombração parecia furiosa agora. Ela avançou em minha
direção rapidamente como se deslizasse por uma camada de gelo. Entretanto, duas
balas abençoadas contra seu tórax eram o suficiente para acalmá-la
temporariamente.
Tive tempo o suficiente de correr por ela. Sempre é uma
sensação estranha atravessar um fantasma. Você sente como se estivesse sendo
asfixiado e cegado ao mesmo tempo enquanto seu corpo gela. Porém, isso dura
apenas uma fração de segundos e, quando você percebe, você tem que continuar
correndo.
Cheguei até a entrada da gruta e, rapidamente, voltei-me
para trás. Dei apenas um tiro. O suficiente para impedir o espírito de tentar
vir atrás de mim. Como toda boa assombração, ela não deveria deixar o lugar com
qual tem um vínculo. Afinal, deveria haver mais naquela caverna. Restos
mortais, muito provavelmente.
Como esperado, consegui sair da gruta sem ser atacado. O
fantasma realmente não conseguiu deixar o local. Entretanto, também como
esperado, o grito da assombração veio em seguida, ecoando por todo o vale,
drenando mais uma vez as minhas forças.
Cai de joelhos no chão rochoso. Senti meus pulmões
doerem. Não consegui respirar pelo o que me pareceu uma eternidade. Meus
ouvidos zumbiam. Minha cabeça latejava novamente. Porém, desta vez, consegui me
levantar mais rapidamente, antes mesmo que o grito chegasse ao fim.
Os anos me deram uma grande vantagem. Ouso dizer que me
acostumei com esses monstros. Minha resistência ao seus ataques era
impressionante até mesmo entre os meus.
Entretanto, o mesmo não podia ser dito aos moradores da pequena cidade. Eles
deveriam estar sofrendo cada vez mais com os gritos, sem poder fugir ou se
defender. Por eles, eu não poderia diminuir meu rimo.
Não demorou muito para eu voltar para a vila e ser
cumprimentado pelo senhor Ferdinando.
—
Posso ter achado algo de útil. —
Informei.
—
Ah é? — Ele parecia
curioso. — Então,
vamos lá, mostre-me.
Tirei o relógio de prata do meu bolso e o mostrei para
Ferdinando.
—
E o que tem isso? —
Ele indagou.
Eu o abri. Dentro do relógio, havia uma foto. Havia um
homem, uma mulher e uma menina pequena no colo dela. Supostamente, uma família
feliz. Apesar de preta e branca, vi que,
pelas roupas, a imagem não era muito antiga.
—
Ah! — Ferdinando
exclamou.
—
Você os conhece?
—
Sim. São Thiago e Annabel. A pequena é a filha dos dois, Agatha. Faz um tempo
que eu não os vejo...
—
Eles são da cidade?
—
Sim. Annabel nasceu aqui e nunca se mudou. Thiago se apaixonou por ela e veio
se mudar aqui. Deixar a cidade grande e aproveitar o campo, sabe? Eles tiveram
a pequena Agatha e começaram a criar a filha aqui...
—
Porém...?
—
Hm... O amor acabou, acho. Eles começaram a discutir muito e, no fim, acabaram
se separando. Annabel ficou aqui. Thiago voltou pra cidade dele. A Agatha
passava a maior parte do tempo aqui. O pai vinha buscar a pequena de vez em
quando e passava uns dias só com ela.
—
Sinto que há mais sobre essa estória...
—
Bem... Nem eu, nem ninguém da vila, viu os três ultimamente.
—
De quanto tempo estamos falando?
—
Hm... — Ferdinando
coçou o queixo, pensativo. —
Umas duas semanas... Acho.
—
Certo... — Olhei para
o topo do vale, onde eu havia deixado minha moto. — E onde é exatamente a cidade desse tal de
Thiago?
—
Uns vinte minutos seguindo a estrada. Pra lá. —
Ele apontou, indicando a direção. —
São Alguma Coisa o nome da cidade.
Não sei direito o quê. Também não sei pra que tanto nome de santo pra cidade...
—
Eu muito menos. —
Apoiei uma mão no ombro do senhor. —
Eu já volto.
—
Não precisa ter pressa, garoto.
Ferdinando sorriu. Eu sorri de volta. Porém, eu sabia que
precisava correr. O presente daquela vila já era trágico o suficiente. O futuro
não precisava ser também.
Entretanto, o destino de todos deles dependiam de pessoas
que eu nem sabia se estavam vivas ou mortas.
Sair do vale se mostrou ser uma tarefa bem fácil.
Eu sentia um peso a mais sobre meus ombros, uma força me
puxando pela nuca de volta para a vila, deixando-me em um estado de leve
torpor. Aquilo deveria ser torturante para os moradores do vilarejo, fazendo-os
desistir em segundos. Mais uma vez, minha experiência e resistência contra
maldições se mostraram úteis.
Em questão de minutos, eu já estava de volta à minha
moto. Parada, intacta, do jeito que eu a deixei, como previsto. Naquele lugar
pacífico, nada teria acontecido com ela.
Fui em direção à cidade que Ferdinando havia falado. Em
um pouco mais de dez minutos fiz o percurso que deveria ter demorado vinte.
Agora, responderei algo que você talvez esteja se
perguntando. Não, não direi o nome da cidade. Minha Ordem evita revelar
informações assim. Manter a privacidade do local e de seus moradores, sabe?
Atendemos, na maioria das vezes, cidades pequenas. Por isso, preferimos não
perturbar a paz desses lugares posteriormente. Atrair curiosos acaba sendo ruim
para essas vilas.
Entretanto, como deve ter percebido, nós acabamos
revelando nomes de pessoas. Isso não estraga tanto a privacidade delas. Afinal,
é um tanto quanto difícil encontrar uma pessoa apenas pelo nome, sem saber onde
procurar. Muitas pessoas têm o nome, principalmente o primeiro, em comum no
mundo. Porém, muito raramente revelamos sobrenomes.
A cidade era relativamente grande. Para alguém
interiorano como o senhor Ferdinando, aquele lugar era um labirinto caótico.
Para quem morasse numa metrópole, o lugar tinha poucas opções de lazer no fim
de semana.
Parei minha moto num posto de gasolina. Enquanto eu
reabastecia minha moto, decidi fazer o mesmo comigo. Um copo de café e um pão
de queijo generoso eram o suficiente.
Antes de deixar o lugar, porém, tive que fazer uma
ligação importante.
Como não pretendo revelar nomes desnecessários para a
narrativa, vou resumir a conversa que tive com uma agente da Ordem: falei o
nome da cidade, da vila onde eu estava e os três nomes que me foram dados.
Assim, em questão de um ou dois minutos, consegui o endereço do tal Thiago.
Com mais uns quinze minutos, cheguei ao prédio dele. O
edifício era grandioso. Com trinta andares e, pelo o que eu vi, apenas dois
apartamentos por andar, Thiago possuía uma moradia invejável num ótimo bairro.
E talvez ele tenha adquirido o imóvel recentemente. Afinal, há pouco tempo ele
morava na vila com Annabel.
Dei o meu nome para o porteiro. Sabia que Thiago me
deixaria subir até o apartamento dele. Afinal, como eu descobri com a minha
ligação, nós havíamos nos conhecido. Coincidências acontecem aos montes nessa
vida. Juro que foi apenas isso.
Entrei no elevador e subi até o vigésimo sétimo andar. A porta
do apartamento de número 272 estava aberta. Thiago me esperava bem vestido e
com um largo sorriso branco no rosto.
Agora, antes de continuar, informo que eu vou me referir
a mim mesmo como Jack. Nenhum motivo
especial para esse nome. Apenas acho que vou complicar desnecessariamente a
narrativa sem poder citar o meu nome. Assim, um nome falso basta.
—
Jack... — Thiago
sorriu. — Ainda não
acredito que é você mesmo! —
Ele riu. — Não
esperaria isso nunca!
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele veio e me
abraçou.
—
A vida é uma caixinha de surpresas, não? —
Sorri.
—
Nossa... — Thiago
ainda parecia maravilhado. Seu sorriso bobo era prova disso. — Quantos anos se passaram
desde a última vez que nos vimos?
—
Mais de vinte, se não me engano.
—
Nossa! — Ele riu
alegremente. — Ainda
me lembro das férias lá na vila...
—
Sim. Infelizmente, o lugar não está mais tão bem...
—
Sério? — Thiago
pareceu um pouco desconfortável. Seu sorriso havia desaparecido parcialmente. — Você veio de lá?
Assenti.
—
E quão ruim as coisas estão lá...? —
Ele indagou.
—
Por que você não vê por você mesmo? —
Propus secamente.
—
Ah... Claro. Talvez eu consiga algum tempo em breve...
—
Que tal hoje?
—
Hm...? Hoje?
—
É... Agora seria bom.
—
Ah... — Ele limpou a
garganta. — Assim tão
em cima da hora...
—
Vai ser rápido. Se você cooperar.
—
Por que tanta pressa?
—
Porque você tem que concertar seu erro... Pagar pelos seus pecados...
—
O que você acha...?
—
Annabel. Uma semana atrás. Isso te lembra alguma coisa?
O rosto de Thiago assumiu uma expressão sombria. Seus
dentes trincaram e, seus punhos, cerraram-se.
—
Ora... — Senti o
desdém em sua voz. —
Fazendo o que da vida, Jack?
—
Segredo. — Respondi. — Isso é, até você ver o
que eu posso fazer com seus próprios olhos.
—
É mesmo? — Ele exibiu
um sorriso amarelado. —
Que curioso...
—
Papai? — A voz chamou
de dentro do apartamento.
Thiago se voltou para trás. Uma garota, que não devia ter
mais de cinco anos, apareceu timidamente. Com seus grandes olhos azuis e os
cabelos loiros, ela parecia ter saído de algum conto de fadas. Tudo o que
faltava era ela estar vestindo algum vestido cheio de glitter.
—
Filha... — A expressão
no rosto de Thiago mudou rapidamente. Agora, ele tinha olhos doces e uma voz
suave, além do sorriso perolado de antes. —
O que aconteceu?
—
Não consigo achar o giz vermelho e.... —
De repente, a garota notou minha presença. —
Ah... Oi. —Ela
inclinou a cabeça pra esquerda. —
Quem é você?
—
Esse... — Thiago
começou a dizer. —
Esse é o tio Jack. —
Ele sorriu para mim. —
Ele resolveu fazer uma visitinha rápida.
—
A última vez que te vi, você era tão pequena, Agatha, sabia? — Menti, obviamente, e
sorri para ela. —
Você nem deve se lembrar de mim... Enfim, vim aqui ver seu pai, mas que bom que
você está aqui!
—
É... Que bom... —
Thiago concordou claramente desconfortável. Seu sorriso parecia prestes a
rachar. Rapidamente, voltou-se calmo para a filha. — Agatha, querida, volte para o seu quarto,
ok? Daqui a pouco já volto pra te ajudar.
—
Ok... — A garota
disse desanimada.
Enquanto ela voltava emburrada pro apartamento, Thiago se
voltou para mim e, como esperado, seu olhar me desejava morto.
—
Ótimo ver que a garota está bem... —
Murmurei.
—
Como você sabe o nome dela? —
Ele me perguntou pausadamente. Cada palavra parecia uma ameaça de morte.
—
Um passarinho lá da vila me contou. Aliás, sabe o que seria uma boa ideia? Dar
uma passada lá. — Eu
disse cada palavra com um sorriso irreverente no rosto. Tenho certeza que isso
só serviu pra deixá-lo mais irritado.
—
Outro dia. Talvez...
—
Talvez eu devesse perguntar pra Annabel quando é um bom dia. Mas tenho o
pressentimento que ela não vai responder.
—
Ah... — Ele riu
baixo. — Ela anda
meio fria? Quieta demais?
—
Fria? Sim. Quieta? Não. Ela anda gritando demais até...
—
Hm...? — Ele ergueu
uma sobrancelha. —
Como assim?
—
Eu te respondo assim que você me responder algo.
—
E o que seria?
—
Simples: por que você matou Annabel?
—
Ah... — Thiago riu um
pouco mais alto do que da última vez. —
Claro. O motivo... Você já esteve em uma situação que, para poder ver a pessoa
que você mais ama, você tem que ver a que mais odeia?
—
Não. Não tão emocionalmente extrema, pelo menos...
—
Então você não sabe o que eu vinha sentindo há anos. —Seu tom de voz se tornou mais agressivo. — A vaca da Annabel me
traiu, sabe? Mas, mesmo assim, o divórcio a favoreceu. Preferia que ela tivesse
pegado toda a droga do meu dinheiro! Mas não... Aparentemente, a mãe tem algum
tipo de preferência sobre a guarda da filha. Minha querida Agatha passava mais
tempo com a vadia inescrupulosa da mãe do que comigo! E eu percebi que não
demoraria pra minha filha se afastar cada vez mais de mim. Aquela serpente encheria
a cabeça do meu tesouro com mentiras, jogaria o meu amor contra mim... Você
acha que eu poderia viver assim?
—
E matar Annabel e se livrar do corpo dela em algum lugar calmo não levantaria
suspeitas...
—
Ora... Eu deveria reclamar se tudo conspirava ao meu favor nessa situação?
Droga... Era praticamente um sinal divino para eu me livrar daquele monstro e
voltar a ter a minha filha junto de mim... Eu fiz o que tinha que ser feito...
Cravei uma faca nas costas de Annabel e a torci até que aquela cadela parasse
de gritar.
—
Sente-se mais leve com a confissão?
—
Surpreendentemente, sim. Obrigado. —
Thiago sorriu por uma fração de segundos. —
Espero que esteja satisfeito com o que você ouviu. Agora... É a sua vez de me
responder uma pergunta, não é mesmo?
Sinceramente, eu estava surpreso. Não creio que ele
respondeu aquilo só para eu responder uma pergunta sua. Sinceramente, acho que
Thiago tinha que confessar o que fez para alguém, mas, mesmo assim, a frieza
com ele disse aquilo era espantosa. Pensei que ele tentaria desviar do assunto,
porém, não foi o que aconteceu. Ele disse tudo sem ser medo das consequências.
Era praticamente um assassino nato. Talvez fosse.
— Claro.
— Respondi. — Porém, não sei se você
acreditaria.
—
Só... Fale... Ok?
—
Ok. Eu sou apenas um reles mensageiro. Sua esposa sobreviveu. Agora, ela quer
se vingar de você. Quando ela se recuperar, ela vai vir atrás de você, tenha
certeza disso. Isso é tudo o que ela diz. E toda a vila está atrás do lado
dela. Se você não fizer nada, você vai ter uma centena de pessoas te caçando e,
é claro, alguém que quer te ver agonizando até morrer. — Essa é uma das mentiras mais bem contadas
por mim. E, sinceramente, ela é a que eu mais me orgulho.
—
Ah... — O rosto de
Thiago estava doentiamente pálido. —
Como assim? Não... Isso não é possível...
—
Então como eu soube disso tudo? Hein?
—
Hm...
—
Eu fui até a vila pela simples nostalgia. Mas, ao ouvir essa estória, eu
resolvi vir até aqui e ouvir você negando o acontecido ou, então,
defendendo-se. Não esperava ouvir a sua versão dos fatos e que eles fossem
tão... Sinceros.
Praticamente paralisado, Thiago permaneceu junto à
entrada de seu apartamento. Eu não pude conter um sorriso. Adorava quando
minhas mentiras tinham esses efeitos.
—
Então... — Prossegui.
— Vamos até o
vilarejo?
—
Claro... — Ele
respondeu.
Thiago, entretanto, voltou para dentro do apartamento.
Ele disse que não poderia deixar a filha sozinha no apartamento. Desde que a
garota não fosse até a vila, eu não via problemas.
Porém, Thiago não poderia simplesmente entrar em seu
apartamento e não pegar uma faca. Grande e afiada, aquilo não poderia ser
simplesmente escondido na cintura, presa pelo cinto, debaixo da camisa. Ele, no
entanto, pensou que eu não perceberia. Eu só não sabia se ele pretendia usar a
arma contra mim ou contra Annabel.
Thiago foi com o carro dele, um esportivo que parecia não
pertencer às ruas daquela cidade. Agatha estava no banco de trás. Eu os segui
com a minha moto de volta ao vilarejo.
Chegamos lá rapidamente, sem problemas. Pensei que Thiago
tentaria fugir em algum momento. Felizmente, não tive que atirar contra o
carro.
Thiago se despediu de Agatha. A garota permaneceu no
carro cantando alguma musica que tocava no rádio. Parecia de algum desenho, não
sei ao certo.
—
Vamos? — Ele me
perguntou secamente.
Assenti.
Em questão de minutos, estávamos de volta, juntos, ao
vilarejo onde passamos tantos momentos alegres quando pequenos. Eu vi no rosto
de Thiago a expressão de tristeza ao ver um lugar tão querido. O brilho de seus
olhos havia desaparecido.
—
O que aconteceu exatamente? —
Ele perguntou tristonho. —
O lugar parecia normal uma semana atrás... Agora, nem mais vejo as pessoas
vivendo suas vidas alegremente... Tudo parece morto... É quase como se o lugar
estivesse... Bem... Amaldiçoado.
—
Hm... — Olhei
diretamente nos olhos de Thiago. —
Você acredita nesse tipo de coisa.
—
É claro. Nunca tive nenhuma experiência paranormal, mas acredito nessas coisas.
Você não?
—
Acredito. Mais do que ninguém, eu diria.
—
Então você também acha que isso é uma maldição?
—
Eu não acho. Eu sei que é.
—
Ah... — Ele pareceu
pensativo por um instante. —
E Annabel... Ela tem algo a ver com isso, não é? Ela... Não é mais a mesma de
antes, não é?
—
Você está disposto a ajudar? —
Perguntei rispidamente.
—
Ah... Eu...
—
Está?
—
Hm... — Ele engoliu
em seco. — Sim. Se
for para ajudar essa vila...
—
Ótimo. Então vamos continuar andando. Annabel tem assuntos pendentes com você.
Thiago assentiu embora hesitante. Ele parecia arrependido
agora, um pouco medroso e, uso dizer, bondoso. Era como se outra face ainda
dele houvesse sido revelada para mim.
Andamos sem falar muito até a colina. Eu sentia o ar se
tornando mais denso a cada instante. Sentia que algo ruim estava prestes a
acontecer como se uma tempestade estivesse prestes a irromper sob minha cabeça.
Olhei para o céu cinzento acima de mim. Senti uma pequena gota de água
atingindo minha face. Percebi que meu pressentimento poderia se tornar
realidade em questão de instantes.
Adentramos a gruta. Estava muito mais clara do que quando
eu entrei antes. Afinal, as sombras que compunham o novo corpo de Annabel
haviam desaparecido. Obviamente, aquilo era apenas temporário.
—
Então... — Thiago
limpou a garganta. —
Onde ela está? — Ele
perguntou baixo.
—
Chame-a. — Respondi. — Sem medo.
—
Hm... — Vi ele levar
uma mão à faca guardada. —
Certo...
Uma rajada de vento invadiu a gruta. O ar gelado era só
mais um dos maus sinais da minha lista.
Thiago, tremendo, respirou fundo, tentando se manter
calmo.
—
Annabel! — Ele gritou.
— Não se esconda,
querida!
Nesse momento, vi um sorriso sádico surgindo no rosto de
Thiago.
Em seguida, a gruta começou a tremer.
Todo o lugar parecia, de repente, mole, vibrando
constantemente como a pulsação de um coração. O teto, rapidamente, começou a
ceder, fazendo com que estalactites caíssem como adagas contra o piso. E então,
ao invés de um grito, veio algo que mais parecia um rugido.
Das rachaduras do teto, piso e paredes, uma fumaça negra
como piche foi surgindo e, rapidamente, aglomerando-se. Em questão de segundos,
um casulo de trevas havia se formado em minha frente. Thiago, paralisado de
medo, não conseguia fazer nada a não ser tremer.
Em um instante, o casulo se rompeu e, de dentro dele,
Annabel apareceu. Sua aparência, porém, estava um pouco diferente da última
vez. O vestido branco que ela usava estava em frangalhos. Partes dele estavam
cobertas de sangue e terra. Sua pele estava acinzentada e necrosada, com dentes
amarelos visíveis pelas feridas das bochechas.
Os cabelos negros foram reduzidos a apenas alguns fios que não cobriam o
topo da cabeça por completo. Os olhos, entretanto, continuavam escarlates como
antes e, também como em nosso último encontro, seus pés não tocavam o chão.
Eu cobri o nariz. Em vão. O cheiro pútrido do cadáver a
minha frente tomava conta de toda a gruta.
Levei minhas mãos aos revólveres. Com um corpo físico,
aquela assombração seria mais fácil de derrotar. Porém, algo já me dizia que
não seria tão simples.
—
Thiago... — Disse a
assombração. Sua voz, arrastada e distorcida, soava como talheres arranhando a
superfície límpida de um prato de porcelana. —
Você voltou...
O homem tremia, sem conseguir dizer nada. Ele tentava,
inutilmente, alcançar a faca escondida. Sua mão, tremendo, parecia não obedecer
aos seus comandos.
—
Desgraçado... —
Annabel murmurou. —
Você irá pagar pelo que fez...
Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, o espírito saiu
pela boca do cadáver de Annabel.
Usar os revólveres agora não era viável. Interromper
aquilo poderia acabar causando danos aos dois.
O espírito, uma aura negra e densa, entrou rapidamente
por entre os lábios trêmulos de Thiago. Com o corpo contorcendo, o homem
parecia estar tendo uma convulsão. Porém, em um segundo, seu corpo estava
fisicamente de volta ao normal. Isso é, com a óbvia exceção de seus olhos,
agora, escarlates.
Eu já havia sacado as armas. Se fosse preciso, atiraria
contra Thiago. Se precisasse matá-lo, eu o faria.
Com um sorriso sinistro no rosto, o corpo possuído levou
sua mão direita por debaixo da camisa e, prontamente, sacou sua faca.
—
Não me faça fazer isso... —
Pedi.
Thiago riu. Sua risada estava, agora, distorcida como a
de Annabel.
—
Não pretendo fazer mal ao seu corpo... —
Ele afirmou com a voz arrastada. —
Porém... Não posso dizer o mesmo sobre esse...
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Thiago levou a
faca ao próprio pescoço.
Eu fiquei sem reação. Com um sorriso malicioso no rosto,
ele cravou a faca da garganta e, rindo, esculpiu uma nova boca sobre sua
clavícula.
O sangue jorrava escorria sem parar. As roupas, mãos e a
própria faca de Thiago estavam cobertas pelo líquido vermelho escuro.
Após mais alguns instantes rindo, o corpo do homem caiu
sem vida do chão.
Gargalhando, o espírito de Annabel emergiu do novo
cadáver.
—
Espero que esteja satisfeita... —
Murmurei.
—
Hm... — Annabel
direcionou seu olhar para mim. —
Você... Você é o homem de antes... O homem que atirou contra mim...
—
Sim.
—
Desgraçado... — Ela
ergueu uma de suas garras contra mim. —
Você, também, merece ser punido...
—
E você também.
—
Eu fui vingada! —
Exclamou. — E pelas
minhas próprias mãos! Eu mereci isso! Eu fui abençoada após a morte! Abençoada
por mim mesma!
—Claro...
Só há um problema...
—
Que seria...?
—
O motivo pelo qual Thiago não era tão ruim quanto você.
—Ah...
— Ela grunhiu. Se
pudesse ter cuspido no chão como espírito, teria o feito. — Aquele verme era melhor
do que eu!? Ridículo!
—
Pelo menos ele não se importava apenas com ele mesmo...
—
Aquele verme se importava apenas com o próprio umbigo! Nunca se importou com a
esposa! Nunca se sentiu mal por me deixar de lado! Muito menos hesitou em me
matar!
—
Verdade. Porém, aquele desgraçado se importava com uma pessoa acima de todos,
até dele mesmo.
—
E quem seria essa pessoa.
—
Agatha.
Ao ouvir aquele nome, a expressão de raiva na face de
Annabel havia sumido. De fato, ela parecia estar em estado de choque.
—
A filha dele. —
Continuei. — A também
sua filha.
—
Agatha... — Ela
murmurou. Sua voz era calma e tristonha agora.
—
Você acaba de tirar o pai dela do mundo. Parabéns.
—
Não... Eu... Eu ainda posso ajudá-la...
—
Não. Você não pode. —Olhei
diretamente nos olhos dela. —
Você não pode nem mesmo sair dessa caverna. Você não tem salvação. E... — Olhei para o corpo do
Thiago. Sua face estava contra o solo, praticamente boiando no próprio sangue. — Ele talvez possa ajudar
Agatha. Não fisicamente, é claro. Mas talvez ele possa estar lá, protegendo ela
enquanto dorme, desejando o melhor para a filha amada. Você, no entanto... — Bufei. — Você se deixou ser
corrompida. Você traçou o seu destino. Você se apegou às suas mágoas e decidiu
que os outros tinham que sofrer como você sofreu. E você não se conteve com
Thiago. Não... Você fez mal para toda essa vila, para centenas de inocente.
Você... Você escolheu a própria ruína...
Annabel não sabia como reagir. Irritada, ela queria me
atacar, mas sabia que nada aquilo resolveria. Triste, ela queria chocar, mas
não conseguia naquela forma. Arrependida por seus atos, por fim, ela se desfez
perante os meus olhos.
Um espírito formado pelo rancor, uma vez arrependido, não
tinha mais forças para viver.
Uma vez fora da gruta, e também do caos de lá, percebi
que realmente havia começado a chover. O que seria ruim foi, no final, bom para
mim. Depois de tudo o que eu passei, uma chuvinha foi mais refrescante do que
eu imaginava.
Quando eu retornei à vila, encontrei o cenário que
esperava. O lugar, praticamente deserto, contava apenas com duas presenças: a
minha e a do senhor Ferdinando.
—
Então... Você realmente cumpriu o que você disse, hein? — Ele sorriu.
—
Eu falei que ia, não falei? —
Retribuí o sorriso.
—
Você não precisava...
—
Na verdade, precisava sim.
—
Só porque é seu trabalho?
—
Não. Não poderia deixar que um lugar querido simplesmente sofresse assim.
—
Ora... — Ele parecia
surpreso. — Era uma
das crianças que vinham aqui durante as férias?
—
Sim. Cerca de vinte anos atrás.
—
Ah... Era a melhor época dessa vila... —
Ele riu. Seu riso alegre era marcado por certo saudosismo. — A melhor, sem dúvida...
—
E então... —
Suspirei. — E o que
vai ser de você agora, Ferdinando?
—
Hm... Boa pergunta. —
Ele olhou para ao seu redor, agora, vazia. —
Tenho alguns anos de vida ainda. Pelo menos, eu acho. — Riu baixo. —
Vou tentar fazer alguma coisa com eles. Só sei que, aqui, eu não fico mais.
—
Memórias demais?
—
É. E também não acho que a vila vai voltar a ter algum tipo de movimento. Não
tão cedo, pelo menos... —
Ferdinando suspirou. —
Bem... Pelo menos agora que os espíritos dos meus amigos podem descansar em
paz, eu posso viver em paz... —
Uma lágrima escorreu de seu olho direito. —
Por isso... Eu agradeço.
—
Disponha. — Sorri
alegremente. — Além
de estar sendo pago, consegui ajudar tantas pessoas... Mais de uma centena só
nesse dia. É...
Eu parei de falar abruptamente. Afinal, percebi que havia
mais uma pessoa que eu tinha que ajudar.
—
Bem, meu trabalho ainda não acabou. —
Disse de maneira meio arrastada.
—
Certo. — Ferdinando
sorriu.
—
Talvez nos encontremos ainda.
—
Seria bom, garoto.
Com um aperto de mão firme, nos despedimos. Com um
trabalho como o meu, encontrar alguém sem rumo como ele não era improvável.
Fiz mais uma ligação para Ordem. Fiz o relatório da
missão e esperei a chegada de uma agente.
Foi o tempo de eu voltar à minha moto e, talvez, mais uns
vinte minutos. O que eu faria agora não era o meu dever. Mas eu tinha que
fazê-lo.
Um carro preto, completamente blindado, parou do meu
lado. A porta se abriu e ela saiu.
—
Não é sempre que você faz algo assim. —
Disse a recém chegada agente, amiga minha de longa data. — Algo que não estava na descrição
do trabalho.
—
É, mas, da última vez que chequei, eu ainda não era um monstro sem coração. — Esbocei um sorriso. — Além do mais... — Olhei para o carro de
Thiago, onde Agatha dormia docemente. —
Talvez ela ache um lugar na Ordem.
—
Uma criança prodígio, como você?
—
Quem sabe? Só sei que não posso abandoná-la. A criança já perdeu o pai e a mãe.
E tenho certeza que não sabe disso...
—
Tão preocupado... Você ainda será um ótimo pai, sabia? — Ela riu.
—
Duvido. — Disse
secamente. — Mas... — Sorri para ela. — Obrigado pelo voto de boa
fé.
—
Disponha. — Ela
sorriu. — Então...
Vamos indo?
Assenti.
Montado em minha moto, acompanhei o carro preto. Agatha
estava em boa companhia agora. A minha amiga protegeria a pequena como se fosse
sua cria. Com certeza ela acharia um lugar bom para a garota na Ordem. Eu não
tinha motivos para me preocupar.
Naquela época, não tinha como eu saber que eu acabaria me
tornando um pai para aquela garotinha. No final, aquilo realmente não era meu
dever, mas sim, algo que eu queria fazer.