Thiago, entretanto, voltou para dentro do apartamento.
Ele disse que não poderia deixar a filha sozinha no apartamento. Desde que a
garota não fosse até a vila, eu não via problemas.
Porém, Thiago não poderia simplesmente entrar em seu
apartamento e não pegar uma faca. Grande e afiada, aquilo não poderia ser
simplesmente escondido na cintura, presa pelo cinto, debaixo da camisa. Ele, no
entanto, pensou que eu não perceberia. Eu só não sabia se ele pretendia usar a
arma contra mim ou contra Annabel.
Thiago foi com o carro dele, um esportivo que parecia não
pertencer às ruas daquela cidade. Agatha estava no banco de trás. Eu os segui
com a minha moto de volta ao vilarejo.
Chegamos lá rapidamente, sem problemas. Pensei que Thiago
tentaria fugir em algum momento. Felizmente, não tive que atirar contra o
carro.
Thiago se despediu de Agatha. A garota permaneceu no
carro cantando alguma musica que tocava no rádio. Parecia de algum desenho, não
sei ao certo.
—
Vamos? — Ele me
perguntou secamente.
Assenti.
Em questão de minutos, estávamos de volta, juntos, ao
vilarejo onde passamos tantos momentos alegres quando pequenos. Eu vi no rosto
de Thiago a expressão de tristeza ao ver um lugar tão querido. O brilho de seus
olhos havia desaparecido.
—
O que aconteceu exatamente? —
Ele perguntou tristonho. —
O lugar parecia normal uma semana atrás... Agora, nem mais vejo as pessoas
vivendo suas vidas alegremente... Tudo parece morto... É quase como se o lugar
estivesse... Bem... Amaldiçoado.
—
Hm... — Olhei
diretamente nos olhos de Thiago. —
Você acredita nesse tipo de coisa.
—
É claro. Nunca tive nenhuma experiência paranormal, mas acredito nessas coisas.
Você não?
—
Acredito. Mais do que ninguém, eu diria.
—
Então você também acha que isso é uma maldição?
—
Eu não acho. Eu sei que é.
—
Ah... — Ele pareceu
pensativo por um instante. —
E Annabel... Ela tem algo a ver com isso, não é? Ela... Não é mais a mesma de
antes, não é?
—
Você está disposto a ajudar? —
Perguntei rispidamente.
—
Ah... Eu...
—
Está?
—
Hm... — Ele engoliu
em seco. — Sim. Se
for para ajudar essa vila...
—
Ótimo. Então vamos continuar andando. Annabel tem assuntos pendentes com você.
Thiago assentiu embora hesitante. Ele parecia arrependido
agora, um pouco medroso e, uso dizer, bondoso. Era como se outra face ainda
dele houvesse sido revelada para mim.
Andamos sem falar muito até a colina. Eu sentia o ar se
tornando mais denso a cada instante. Sentia que algo ruim estava prestes a
acontecer como se uma tempestade estivesse prestes a irromper sob minha cabeça.
Olhei para o céu cinzento acima de mim. Senti uma pequena gota de água
atingindo minha face. Percebi que meu pressentimento poderia se tornar
realidade em questão de instantes.
Adentramos a gruta. Estava muito mais clara do que quando
eu entrei antes. Afinal, as sombras que compunham o novo corpo de Annabel
haviam desaparecido. Obviamente, aquilo era apenas temporário.
—
Então... — Thiago
limpou a garganta. —
Onde ela está? — Ele
perguntou baixo.
—
Chame-a. — Respondi. — Sem medo.
—
Hm... — Vi ele levar
uma mão à faca guardada. —
Certo...
Uma rajada de vento invadiu a gruta. O ar gelado era só
mais um dos maus sinais da minha lista.
Thiago, tremendo, respirou fundo, tentando se manter
calmo.
—
Annabel! — Ele gritou.
— Não se esconda,
querida!
Nesse momento, vi um sorriso sádico surgindo no rosto de
Thiago.
Em seguida, a gruta começou a tremer.
Todo o lugar parecia, de repente, mole, vibrando
constantemente como a pulsação de um coração. O teto, rapidamente, começou a
ceder, fazendo com que estalactites caíssem como adagas contra o piso. E então,
ao invés de um grito, veio algo que mais parecia um rugido.
Das rachaduras do teto, piso e paredes, uma fumaça negra
como piche foi surgindo e, rapidamente, aglomerando-se. Em questão de segundos,
um casulo de trevas havia se formado em minha frente. Thiago, paralisado de
medo, não conseguia fazer nada a não ser tremer.
Em um instante, o casulo se rompeu e, de dentro dele,
Annabel apareceu. Sua aparência, porém, estava um pouco diferente da última
vez. O vestido branco que ela usava estava em frangalhos. Partes dele estavam
cobertas de sangue e terra. Sua pele estava acinzentada e necrosada, com dentes
amarelos visíveis pelas feridas das bochechas.
Os cabelos negros foram reduzidos a apenas alguns fios que não cobriam o
topo da cabeça por completo. Os olhos, entretanto, continuavam escarlates como
antes e, também como em nosso último encontro, seus pés não tocavam o chão.
Eu cobri o nariz. Em vão. O cheiro pútrido do cadáver a
minha frente tomava conta de toda a gruta.
Levei minhas mãos aos revólveres. Com um corpo físico,
aquela assombração seria mais fácil de derrotar. Porém, algo já me dizia que
não seria tão simples.
—
Thiago... — Disse a
assombração. Sua voz, arrastada e distorcida, soava como talheres arranhando a
superfície límpida de um prato de porcelana. —
Você voltou...
O homem tremia, sem conseguir dizer nada. Ele tentava,
inutilmente, alcançar a faca escondida. Sua mão, tremendo, parecia não obedecer
aos seus comandos.
—
Desgraçado... —
Annabel murmurou. —
Você irá pagar pelo que fez...
Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, o espírito saiu
pela boca do cadáver de Annabel.
Usar os revólveres agora não era viável. Interromper
aquilo poderia acabar causando danos aos dois.
O espírito, uma aura negra e densa, entrou rapidamente
por entre os lábios trêmulos de Thiago. Com o corpo contorcendo, o homem
parecia estar tendo uma convulsão. Porém, em um segundo, seu corpo estava
fisicamente de volta ao normal. Isso é, com a óbvia exceção de seus olhos,
agora, escarlates.
Eu já havia sacado as armas. Se fosse preciso, atiraria
contra Thiago. Se precisasse matá-lo, eu o faria.
Com um sorriso sinistro no rosto, o corpo possuído levou
sua mão direita por debaixo da camisa e, prontamente, sacou sua faca.
—
Não me faça fazer isso... —
Pedi.
Thiago riu. Sua risada estava, agora, distorcida como a
de Annabel.
—
Não pretendo fazer mal ao seu corpo... —
Ele afirmou com a voz arrastada. —
Porém... Não posso dizer o mesmo sobre esse...
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Thiago levou a
faca ao próprio pescoço.
Eu fiquei sem reação. Com um sorriso malicioso no rosto,
ele cravou a faca da garganta e, rindo, esculpiu uma nova boca sobre sua
clavícula.
O sangue jorrava escorria sem parar. As roupas, mãos e a
própria faca de Thiago estavam cobertas pelo líquido vermelho escuro.
Após mais alguns instantes rindo, o corpo do homem caiu
sem vida do chão.
Gargalhando, o espírito de Annabel emergiu do novo
cadáver.
—
Espero que esteja satisfeita... —
Murmurei.
—
Hm... — Annabel
direcionou seu olhar para mim. —
Você... Você é o homem de antes... O homem que atirou contra mim...
—
Sim.
—
Desgraçado... — Ela
ergueu uma de suas garras contra mim. —
Você, também, merece ser punido...
—
E você também.
—
Eu fui vingada! —
Exclamou. — E pelas
minhas próprias mãos! Eu mereci isso! Eu fui abençoada após a morte! Abençoada
por mim mesma!
—Claro...
Só há um problema...
—
Que seria...?
—
O motivo pelo qual Thiago não era tão ruim quanto você.
—Ah...
— Ela grunhiu. Se
pudesse ter cuspido no chão como espírito, teria o feito. — Aquele verme era melhor
do que eu!? Ridículo!
—
Pelo menos ele não se importava apenas com ele mesmo...
—
Aquele verme se importava apenas com o próprio umbigo! Nunca se importou com a
esposa! Nunca se sentiu mal por me deixar de lado! Muito menos hesitou em me
matar!
—
Verdade. Porém, aquele desgraçado se importava com uma pessoa acima de todos,
até dele mesmo.
—
E quem seria essa pessoa.
—
Agatha.
Ao ouvir aquele nome, a expressão de raiva na face de
Annabel havia sumido. De fato, ela parecia estar em estado de choque.
—
A filha dele. —
Continuei. — A também
sua filha.
—
Agatha... — Ela
murmurou. Sua voz era calma e tristonha agora.
—
Você acaba de tirar o pai dela do mundo. Parabéns.
—
Não... Eu... Eu ainda posso ajudá-la...
—
Não. Você não pode. —Olhei
diretamente nos olhos dela. —
Você não pode nem mesmo sair dessa caverna. Você não tem salvação. E... — Olhei para o corpo do
Thiago. Sua face estava contra o solo, praticamente boiando no próprio sangue. — Ele talvez possa ajudar
Agatha. Não fisicamente, é claro. Mas talvez ele possa estar lá, protegendo ela
enquanto dorme, desejando o melhor para a filha amada. Você, no entanto... — Bufei. — Você se deixou ser
corrompida. Você traçou o seu destino. Você se apegou às suas mágoas e decidiu
que os outros tinham que sofrer como você sofreu. E você não se conteve com
Thiago. Não... Você fez mal para toda essa vila, para centenas de inocente.
Você... Você escolheu a própria ruína...
Annabel não sabia como reagir. Irritada, ela queria me
atacar, mas sabia que nada aquilo resolveria. Triste, ela queria chocar, mas
não conseguia naquela forma. Arrependida por seus atos, por fim, ela se desfez
perante os meus olhos.
Um espírito formado pelo rancor, uma vez arrependido, não
tinha mais forças para viver.
Uma vez fora da gruta, e também do caos de lá, percebi
que realmente havia começado a chover. O que seria ruim foi, no final, bom para
mim. Depois de tudo o que eu passei, uma chuvinha foi mais refrescante do que
eu imaginava.
Quando eu retornei à vila, encontrei o cenário que
esperava. O lugar, praticamente deserto, contava apenas com duas presenças: a
minha e a do senhor Ferdinando.
—
Então... Você realmente cumpriu o que você disse, hein? — Ele sorriu.
—
Eu falei que ia, não falei? —
Retribuí o sorriso.
—
Você não precisava...
—
Na verdade, precisava sim.
—
Só porque é seu trabalho?
—
Não. Não poderia deixar que um lugar querido simplesmente sofresse assim.
—
Ora... — Ele parecia
surpreso. — Era uma
das crianças que vinham aqui durante as férias?
—
Sim. Cerca de vinte anos atrás.
—
Ah... Era a melhor época dessa vila... —
Ele riu. Seu riso alegre era marcado por certo saudosismo. — A melhor, sem dúvida...
—
E então... —
Suspirei. — E o que
vai ser de você agora, Ferdinando?
—
Hm... Boa pergunta. —
Ele olhou para ao seu redor, agora, vazia. —
Tenho alguns anos de vida ainda. Pelo menos, eu acho. — Riu baixo. —
Vou tentar fazer alguma coisa com eles. Só sei que, aqui, eu não fico mais.
—
Memórias demais?
—
É. E também não acho que a vila vai voltar a ter algum tipo de movimento. Não
tão cedo, pelo menos... —
Ferdinando suspirou. —
Bem... Pelo menos agora que os espíritos dos meus amigos podem descansar em
paz, eu posso viver em paz... —
Uma lágrima escorreu de seu olho direito. —
Por isso... Eu agradeço.
—
Disponha. — Sorri
alegremente. — Além
de estar sendo pago, consegui ajudar tantas pessoas... Mais de uma centena só
nesse dia. É...
Eu parei de falar abruptamente. Afinal, percebi que havia
mais uma pessoa que eu tinha que ajudar.
—
Bem, meu trabalho ainda não acabou. —
Disse de maneira meio arrastada.
—
Certo. — Ferdinando
sorriu.
—
Talvez nos encontremos ainda.
—
Seria bom, garoto.
Com um aperto de mão firme, nos despedimos. Com um
trabalho como o meu, encontrar alguém sem rumo como ele não era improvável.
Fiz mais uma ligação para Ordem. Fiz o relatório da
missão e esperei a chegada de uma agente.
Foi o tempo de eu voltar à minha moto e, talvez, mais uns
vinte minutos. O que eu faria agora não era o meu dever. Mas eu tinha que
fazê-lo.
Um carro preto, completamente blindado, parou do meu
lado. A porta se abriu e ela saiu.
—
Não é sempre que você faz algo assim. —
Disse a recém chegada agente, amiga minha de longa data. — Algo que não estava na descrição
do trabalho.
—
É, mas, da última vez que chequei, eu ainda não era um monstro sem coração. — Esbocei um sorriso. — Além do mais... — Olhei para o carro de
Thiago, onde Agatha dormia docemente. —
Talvez ela ache um lugar na Ordem.
—
Uma criança prodígio, como você?
—
Quem sabe? Só sei que não posso abandoná-la. A criança já perdeu o pai e a mãe.
E tenho certeza que não sabe disso...
—
Tão preocupado... Você ainda será um ótimo pai, sabia? — Ela riu.
—
Duvido. — Disse
secamente. — Mas... — Sorri para ela. — Obrigado pelo voto de boa
fé.
—
Disponha. — Ela
sorriu. — Então...
Vamos indo?
Assenti.
Montado em minha moto, acompanhei o carro preto. Agatha
estava em boa companhia agora. A minha amiga protegeria a pequena como se fosse
sua cria. Com certeza ela acharia um lugar bom para a garota na Ordem. Eu não
tinha motivos para me preocupar.
Naquela época, não tinha como eu saber que eu acabaria me
tornando um pai para aquela garotinha. No final, aquilo realmente não era meu
dever, mas sim, algo que eu queria fazer.
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