—
Ah... — Eu limpei a
garganta. — E... Suponho
que isso aconteça várias vezes ao dia.
—
Umas duas... Ou três. —
Respondeu sem ânimo.
Suponho que vocês não consigam fugir daqui.
—
É... — Ele bufou. — Parte da maldição. É como
se algo puxasse a gente de volta pra cá... —
Ferdinando olhou nos meus olhos. —
Se você continuar aqui por muito tempo, garoto... Você não vai conseguir se
salvar. Por isso...
—
Não vou sair daqui. —
Disse determinado. —
Não enquanto a maldição persistir.
—
Ora... — Ele esboçou
um sorriso. — E por
que isso?
—
Porque é o meu trabalho.
—
Acabar com maldições?
—
Fora outras coisas.
O senhor Ferdinando riu alegre. Até parecia que ele não
sofria.
—
É sempre bom quando jovens cheios de energia resolvem ajudar. — Disse ele. — Agradeço desde já.
—
Agradeça quando tudo estiver resolvido. Agora... O que você pode me dizer com
certeza sobre a maldição? Isso é, fora o que eu já senti na pele agora pouco...
—
Hm... — Ferdinando
coçou a careca. —
Acho que sei de onde vêm os gritos.
—
Sério? De onde?
—
Ah... — O senhor
apontou para uma colina quase no limite do vale. O único caminho aparente, com
isso me refiro aos humanamente possíveis, era uma trilha irregular que ascendia
até o local. — Ali.
—
Hm... — Sorri
confiante. — Nesse
caso, já volto.
—
Certo, meu jovem... Espero que essas armas te protejam.
—
Ah... — Sorri,
surpreso. Não sabia que ele havia percebido os revólveres nos coldres juntos à
minha cintura. No fim, o senhor era mais perspicaz do que aparentava. — Espero o mesmo.
Despedi-me rapidamente de Ferdinando e, sem muito ânimo,
segui em direção à trilha.
Não me entenda errado. Eu queria ajudar a cidade. Daria o
meu melhor para isso. Mas eu me sentia fraco. Aquela energia negra estava me
afetando. A assombração que empesteava o lugar era forte. Isso eu admito. Além
disso, eu estaria em uma grande desvantagem nesse confronto. E isso me
preocupava.
Segui a trilha rochosa, galgando e escalando rochas. Eu
sentia pequenas agulhadas pelo corpo a cada esforço meu. Passo a passo, eu
sentia o ar se tornar mais pesado e, meus movimentos, mais vagarosos.
Em questão de minutos eu estava em frente do que eu tinha
certeza ser o covil da criatura. A abertura irregular na colina sem vida evidenciava
a entrada da gruta. Com um mau pressentimento, eu adentrei o local.
A escuridão era praticamente absoluta. Eu mal conseguia
enxergar o chão em que eu pisava. Receoso, fui até a parede mais próxima.
Praticamente sem visão, resolvi confiar no meu tato.
A cada passo meu, eu tocava delicadamente a parede ao meu
lado, quase com medo de que eu pudesse quebrá-la. Meus nervos estavam à flor da
pele. A assombração poderia surgir a qualquer momento. Nesse momento, eu teria
que sacar minhas armas para tentar me defender.
Talvez não faça muito sentido para quem é, digamos, de fora, mas revólveres podem causar
danos a fantasmas. Óbvio que me refiro àqueles abençoados, próprios para serem
usados contra monstros de qualquer forma. O mero contato das balas de uma arma
contra uma assombração é capaz de feri-la. Isso se refere a qualquer outra
arma. Rifles, espadas e, até mesmo, crucifixos. Isso me lembra de um amigo meu.
Mas isso é estória pra outro dia.
Voltando ao assunto de se usar armas contra inimigos sem
corpo físico, admito que não é muito efetivo. Encantamentos são muito mais
eficazes. Porém, eles não são minha especialidade. Teria que me virar com os revólveres. Cada bala
era capaz de infligir uma sensação de dor aguda, como uma agulha em brasa,
contra um fantasma. Mas estava longe de ser letal. Mas era aí que vinha o real
plano.
Acabar com uma maldição pode, na verdade, ser feita, por
qualquer pessoa. Basta saber como se livrar do fantasma. Afinal, algo prende o
espírito nesse plano. Assuntos não resolvidos, sabe? Talvez, naquele covil, eu
achasse algo de útil.
Assim, eu senti meu coração acelerar ao pisar em algo no
chão. Era algo de metal. Pequeno também. Certamente, eu não o havia danificado.
Ou era o que eu esperava.
Enfim, eu soube que aquele objeto era importante pelo o
que aconteceu em seguida.
Um sopro de ar gélido adentrou a gruta. Estremeci. O
vento sibilava, parecendo tentar murmurar algo que eu não conseguiria entender.
A escuridão começou, de repente, a se mover, como milhares de serpentes se
arrastando por estalactites e estalagmites, unindo-se lentamente no centro da
caverna, dando origem a uma poça de líquido negro que borbulhava.
À medida que as sombras se reuniam a minha frente, o
ambiente à minha volta se tornava mais claro, como se a criatura que se
formaria perante meus olhos fosse a responsável por roubar a luz.
Um odor fétido era liberado constantemente da poça. Cobri
meu nariz com minha mão esquerda, mas aquilo pouco adiantou. Lentamente, a mistura
hedionda começou a tomar forma. Como se saísse de um portal, os braços longos e
com dedos que mais pareciam garras surgiram e agarraram o chão. Rapidamente, a
criatura se puxou para fora da poça, como se estivesse saindo da margem de um
rio.
Seu corpo estava coberto pelo líquido negro. Seus longos
cabelos que passavam do meio das costas, seu vestido esvoaçante, até mesmo suas
pernas que não tocavam o chão. Era como se fosse uma grande silhueta
tridimensional em minha frente. Da escuridão, só consegui distinguir os dentes
retorcidos em um sorriso malévolo e os olhos escarlates.
Sua boca se abriu. Antes que ela pudesse dizer qualquer
coisa, ou até mesmo gritar como antes, saquei um revólver com a mão direita e,
rapidamente, atirei contra ela. A bala atravessou seu ombro direito. Em
seguida, a aparição gritou. Mas não como antes. Agora, havia apenas dor em sua
voz.
Consegui tempo o suficiente para me abaixar e pegar o
objeto metálico. Era um relógio de corda feito de prata. Essa era toda a
análise que eu podia fazer no momento. Coloquei-o rapidamente num bolso.
A assombração parecia furiosa agora. Ela avançou em minha
direção rapidamente como se deslizasse por uma camada de gelo. Entretanto, duas
balas abençoadas contra seu tórax eram o suficiente para acalmá-la
temporariamente.
Tive tempo o suficiente de correr por ela. Sempre é uma
sensação estranha atravessar um fantasma. Você sente como se estivesse sendo
asfixiado e cegado ao mesmo tempo enquanto seu corpo gela. Porém, isso dura
apenas uma fração de segundos e, quando você percebe, você tem que continuar
correndo.
Cheguei até a entrada da gruta e, rapidamente, voltei-me
para trás. Dei apenas um tiro. O suficiente para impedir o espírito de tentar
vir atrás de mim. Como toda boa assombração, ela não deveria deixar o lugar com
qual tem um vínculo. Afinal, deveria haver mais naquela caverna. Restos
mortais, muito provavelmente.
Como esperado, consegui sair da gruta sem ser atacado. O
fantasma realmente não conseguiu deixar o local. Entretanto, também como
esperado, o grito da assombração veio em seguida, ecoando por todo o vale, drenando
mais uma vez as minhas forças.
Cai de joelhos no chão rochoso. Senti meus pulmões
doerem. Não consegui respirar pelo o que me pareceu uma eternidade. Meus
ouvidos zumbiam. Minha cabeça latejava novamente. Porém, desta vez, consegui me
levantar mais rapidamente, antes mesmo que o grito chegasse ao fim.
Os anos me deram uma grande vantagem. Ouso dizer que me
acostumei com esses monstros. Minha resistência ao seus ataques era
impressionante até mesmo entre os meus.
Entretanto, o mesmo não podia ser dito aos moradores da pequena cidade. Eles
deveriam estar sofrendo cada vez mais com os gritos, sem poder fugir ou se
defender. Por eles, eu não poderia diminuir meu rimo.
Não demorou muito para eu voltar para a vila e ser
cumprimentado pelo senhor Ferdinando.
—
Posso ter achado algo de útil. —
Informei.
—
Ah é? — Ele parecia
curioso. — Então,
vamos lá, mostre-me.
Tirei o relógio de prata do meu bolso e o mostrei para
Ferdinando.
—
E o que tem isso? —
Ele indagou.
Eu o abri. Dentro do relógio, havia uma foto. Havia um
homem, uma mulher e uma menina pequena no colo dela. Supostamente, uma família
feliz. Apesar de preta e branca, vi que,
pelas roupas, a imagem não era muito antiga.
—
Ah! — Ferdinando
exclamou.
—
Você os conhece?
—
Sim. São Thiago e Annabel. A pequena é a filha dos dois, Agatha. Faz um tempo
que eu não os vejo...
—
Eles são da cidade?
—
Sim. Annabel nasceu aqui e nunca se mudou. Thiago se apaixonou por ela e veio
se mudar aqui. Deixar a cidade grande e aproveitar o campo, sabe? Eles tiveram
a pequena Agatha e começaram a criar a filha aqui...
—
Porém...?
—
Hm... O amor acabou, acho. Eles começaram a discutir muito e, no fim, acabaram
se separando. Annabel ficou aqui. Thiago voltou pra cidade dele. A Agatha
passava a maior parte do tempo aqui. O pai vinha buscar a pequena de vez em
quando e passava uns dias só com ela.
—
Sinto que há mais sobre essa estória...
—
Bem... Nem eu, nem ninguém da vila, viu os três ultimamente.
—
De quanto tempo estamos falando?
—
Hm... — Ferdinando
coçou o queixo, pensativo. —
Umas duas semanas... Acho.
—
Certo... — Olhei para
o topo do vale, onde eu havia deixado minha moto. — E onde é exatamente a cidade desse tal de
Thiago?
—
Uns vinte minutos seguindo a estrada. Pra lá. —
Ele apontou, indicando a direção. —
São Alguma Coisa o nome da cidade.
Não sei direito o quê. Também não sei pra que tanto nome de santo pra cidade...
—
Eu muito menos. —
Apoiei uma mão no ombro do senhor. —
Eu já volto.
—
Não precisa ter pressa, garoto.
Ferdinando sorriu. Eu sorri de volta. Porém, eu sabia que
precisava correr. O presente daquela vila já era trágico o suficiente. O futuro
não precisava ser também.
Entretanto, o destino de todos deles dependiam de pessoas
que eu nem sabia se estavam vivas ou mortas.
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