Sair do vale se mostrou ser uma tarefa bem fácil.
Eu sentia um peso a mais sobre meus ombros, uma força me
puxando pela nuca de volta para a vila, deixando-me em um estado de leve
torpor. Aquilo deveria ser torturante para os moradores do vilarejo, fazendo-os
desistir em segundos. Mais uma vez, minha experiência e resistência contra
maldições se mostraram úteis.
Em questão de minutos, eu já estava de volta à minha
moto. Parada, intacta, do jeito que eu a deixei, como previsto. Naquele lugar
pacífico, nada teria acontecido com ela.
Fui em direção à cidade que Ferdinando havia falado. Em
um pouco mais de dez minutos fiz o percurso que deveria ter demorado vinte.
Agora, responderei algo que você talvez esteja se
perguntando. Não, não direi o nome da cidade. Minha Ordem evita revelar
informações assim. Manter a privacidade do local e de seus moradores, sabe?
Atendemos, na maioria das vezes, cidades pequenas. Por isso, preferimos não
perturbar a paz desses lugares posteriormente. Atrair curiosos acaba sendo ruim
para essas vilas.
Entretanto, como deve ter percebido, nós acabamos
revelando nomes de pessoas. Isso não estraga tanto a privacidade delas. Afinal,
é um tanto quanto difícil encontrar uma pessoa apenas pelo nome, sem saber onde
procurar. Muitas pessoas têm o nome, principalmente o primeiro, em comum no
mundo. Porém, muito raramente revelamos sobrenomes.
A cidade era relativamente grande. Para alguém
interiorano como o senhor Ferdinando, aquele lugar era um labirinto caótico.
Para quem morasse numa metrópole, o lugar tinha poucas opções de lazer no fim
de semana.
Parei minha moto num posto de gasolina. Enquanto eu
reabastecia minha moto, decidi fazer o mesmo comigo. Um copo de café e um pão
de queijo generoso eram o suficiente.
Antes de deixar o lugar, porém, tive que fazer uma
ligação importante.
Como não pretendo revelar nomes desnecessários para a
narrativa, vou resumir a conversa que tive com uma agente da Ordem: falei o
nome da cidade, da vila onde eu estava e os três nomes que me foram dados.
Assim, em questão de um ou dois minutos, consegui o endereço do tal Thiago.
Com mais uns quinze minutos, cheguei ao prédio dele. O
edifício era grandioso. Com trinta andares e, pelo o que eu vi, apenas dois apartamentos
por andar, Thiago possuía uma moradia invejável num ótimo bairro. E talvez ele
tenha adquirido o imóvel recentemente. Afinal, há pouco tempo ele morava na
vila com Annabel.
Dei o meu nome para o porteiro. Sabia que Thiago me
deixaria subir até o apartamento dele. Afinal, como eu descobri com a minha
ligação, nós havíamos nos conhecido. Coincidências acontecem aos montes nessa
vida. Juro que foi apenas isso.
Entrei no elevador e subi até o vigésimo sétimo andar. A porta
do apartamento de número 272 estava aberta. Thiago me esperava bem vestido e
com um largo sorriso branco no rosto.
Agora, antes de continuar, informo que eu vou me referir
a mim mesmo como Jack. Nenhum motivo
especial para esse nome. Apenas acho que vou complicar desnecessariamente a
narrativa sem poder citar o meu nome. Assim, um nome falso basta.
—
Jack... — Thiago
sorriu. — Ainda não
acredito que é você mesmo! —
Ele riu. — Não
esperaria isso nunca!
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele veio e me
abraçou.
—
A vida é uma caixinha de surpresas, não? —
Sorri.
—
Nossa... — Thiago
ainda parecia maravilhado. Seu sorriso bobo era prova disso. — Quantos anos se passaram
desde a última vez que nos vimos?
—
Mais de vinte, se não me engano.
—
Nossa! — Ele riu
alegremente. — Ainda
me lembro das férias lá na vila...
—
Sim. Infelizmente, o lugar não está mais tão bem...
—
Sério? — Thiago
pareceu um pouco desconfortável. Seu sorriso havia desaparecido parcialmente. — Você veio de lá?
Assenti.
—
E quão ruim as coisas estão lá...? —
Ele indagou.
—
Por que você não vê por você mesmo? —
Propus secamente.
—
Ah... Claro. Talvez eu consiga algum tempo em breve...
—
Que tal hoje?
—
Hm...? Hoje?
—
É... Agora seria bom.
—
Ah... — Ele limpou a
garganta. — Assim tão
em cima da hora...
—
Vai ser rápido. Se você cooperar.
—
Por que tanta pressa?
—
Porque você tem que concertar seu erro... Pagar pelos seus pecados...
—
O que você acha...?
—
Annabel. Uma semana atrás. Isso te lembra alguma coisa?
O rosto de Thiago assumiu uma expressão sombria. Seus
dentes trincaram e, seus punhos, cerraram-se.
—
Ora... — Senti o
desdém em sua voz. —
Fazendo o que da vida, Jack?
—
Segredo. — Respondi. — Isso é, até você ver o
que eu posso fazer com seus próprios olhos.
—
É mesmo? — Ele exibiu
um sorriso amarelado. —
Que curioso...
—
Papai? — A voz chamou
de dentro do apartamento.
Thiago se voltou para trás. Uma garota, que não devia ter
mais de cinco anos, apareceu timidamente. Com seus grandes olhos azuis e os
cabelos loiros, ela parecia ter saído de algum conto de fadas. Tudo o que
faltava era ela estar vestindo algum vestido cheio de glitter.
—
Filha... — A
expressão no rosto de Thiago mudou rapidamente. Agora, ele tinha olhos doces e
uma voz suave, além do sorriso perolado de antes. — O que aconteceu?
—
Não consigo achar o giz vermelho e.... —
De repente, a garota notou minha presença. —
Ah... Oi. —Ela
inclinou a cabeça pra esquerda. —
Quem é você?
—
Esse... — Thiago
começou a dizer. —
Esse é o tio Jack. —
Ele sorriu para mim. —
Ele resolveu fazer uma visitinha rápida.
—
A última vez que te vi, você era tão pequena, Agatha, sabia? — Menti, obviamente, e sorri
para ela. — Você nem
deve se lembrar de mim... Enfim, vim aqui ver seu pai, mas que bom que você
está aqui!
—
É... Que bom... —
Thiago concordou claramente desconfortável. Seu sorriso parecia prestes a
rachar. Rapidamente, voltou-se calmo para a filha. — Agatha, querida, volte para o seu quarto,
ok? Daqui a pouco já volto pra te ajudar.
—
Ok... — A garota
disse desanimada.
Enquanto ela voltava emburrada pro apartamento, Thiago se
voltou para mim e, como esperado, seu olhar me desejava morto.
—
Ótimo ver que a garota está bem... —
Murmurei.
—
Como você sabe o nome dela? —
Ele me perguntou pausadamente. Cada palavra parecia uma ameaça de morte.
—
Um passarinho lá da vila me contou. Aliás, sabe o que seria uma boa ideia? Dar
uma passada lá. — Eu
disse cada palavra com um sorriso irreverente no rosto. Tenho certeza que isso
só serviu pra deixá-lo mais irritado.
—
Outro dia. Talvez...
—
Talvez eu devesse perguntar pra Annabel quando é um bom dia. Mas tenho o
pressentimento que ela não vai responder.
—
Ah... — Ele riu
baixo. — Ela anda
meio fria? Quieta demais?
—
Fria? Sim. Quieta? Não. Ela anda gritando demais até...
—
Hm...? — Ele ergueu
uma sobrancelha. —
Como assim?
—
Eu te respondo assim que você me responder algo.
—
E o que seria?
—
Simples: por que você matou Annabel?
—
Ah... — Thiago riu um
pouco mais alto do que da última vez. —
Claro. O motivo... Você já esteve em uma situação que, para poder ver a pessoa
que você mais ama, você tem que ver a que mais odeia?
—
Não. Não tão emocionalmente extrema, pelo menos...
—
Então você não sabe o que eu vinha sentindo há anos. —Seu tom de voz se tornou mais agressivo. — A vaca da Annabel me
traiu, sabe? Mas, mesmo assim, o divórcio a favoreceu. Preferia que ela tivesse
pegado toda a droga do meu dinheiro! Mas não... Aparentemente, a mãe tem algum
tipo de preferência sobre a guarda da filha. Minha querida Agatha passava mais
tempo com a vadia inescrupulosa da mãe do que comigo! E eu percebi que não
demoraria pra minha filha se afastar cada vez mais de mim. Aquela serpente
encheria a cabeça do meu tesouro com mentiras, jogaria o meu amor contra mim...
Você acha que eu poderia viver assim?
—
E matar Annabel e se livrar do corpo dela em algum lugar calmo não levantaria
suspeitas...
—
Ora... Eu deveria reclamar se tudo conspirava ao meu favor nessa situação?
Droga... Era praticamente um sinal divino para eu me livrar daquele monstro e
voltar a ter a minha filha junto de mim... Eu fiz o que tinha que ser feito...
Cravei uma faca nas costas de Annabel e a torci até que aquela cadela parasse
de gritar.
—
Sente-se mais leve com a confissão?
—
Surpreendentemente, sim. Obrigado. —
Thiago sorriu por uma fração de segundos. —
Espero que esteja satisfeito com o que você ouviu. Agora... É a sua vez de me
responder uma pergunta, não é mesmo?
Sinceramente, eu estava surpreso. Não creio que ele
respondeu aquilo só para eu responder uma pergunta sua. Sinceramente, acho que
Thiago tinha que confessar o que fez para alguém, mas, mesmo assim, a frieza
com ele disse aquilo era espantosa. Pensei que ele tentaria desviar do assunto,
porém, não foi o que aconteceu. Ele disse tudo sem ser medo das consequências. Era
praticamente um assassino nato. Talvez fosse.
— Claro. — Respondi. — Porém, não sei se você acreditaria.
— Só... Fale...
Ok?
— Ok. Eu sou
apenas um reles mensageiro. Sua esposa sobreviveu. Agora, ela quer se vingar de
você. Quando ela se recuperar, ela vai vir atrás de você, tenha certeza disso.
Isso é tudo o que ela diz. E toda a vila está atrás do lado dela. Se você não
fizer nada, você vai ter uma centena de pessoas te caçando e, é claro, alguém
que quer te ver agonizando até morrer. — Essa é uma das
mentiras mais bem contadas por mim. E, sinceramente, ela é a que eu mais me
orgulho.
— Ah... — O rosto de Thiago estava doentiamente
pálido. — Como assim?
Não... Isso não é possível...
— Então como eu
soube disso tudo? Hein?
— Hm...
— Eu fui até a
vila pela simples nostalgia. Mas, ao ouvir essa estória, eu resolvi vir até
aqui e ouvir você negando o acontecido ou, então, defendendo-se. Não esperava
ouvir a sua versão dos fatos e que eles fossem tão... Sinceros.
Praticamente
paralisado, Thiago permaneceu junto à entrada de seu apartamento. Eu não pude
conter um sorriso. Adorava quando minhas mentiras tinham esses efeitos.
— Então... — Prossegui. — Vamos até o vilarejo?
— Claro... — Ele respondeu.
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