domingo, 13 de dezembro de 2015

Conto 17 - Parte 3

Sair do vale se mostrou ser uma tarefa bem fácil.
Eu sentia um peso a mais sobre meus ombros, uma força me puxando pela nuca de volta para a vila, deixando-me em um estado de leve torpor. Aquilo deveria ser torturante para os moradores do vilarejo, fazendo-os desistir em segundos. Mais uma vez, minha experiência e resistência contra maldições se mostraram úteis.
Em questão de minutos, eu já estava de volta à minha moto. Parada, intacta, do jeito que eu a deixei, como previsto. Naquele lugar pacífico, nada teria acontecido com ela.
Fui em direção à cidade que Ferdinando havia falado. Em um pouco mais de dez minutos fiz o percurso que deveria ter demorado vinte.
Agora, responderei algo que você talvez esteja se perguntando. Não, não direi o nome da cidade. Minha Ordem evita revelar informações assim. Manter a privacidade do local e de seus moradores, sabe? Atendemos, na maioria das vezes, cidades pequenas. Por isso, preferimos não perturbar a paz desses lugares posteriormente. Atrair curiosos acaba sendo ruim para essas vilas.
Entretanto, como deve ter percebido, nós acabamos revelando nomes de pessoas. Isso não estraga tanto a privacidade delas. Afinal, é um tanto quanto difícil encontrar uma pessoa apenas pelo nome, sem saber onde procurar. Muitas pessoas têm o nome, principalmente o primeiro, em comum no mundo. Porém, muito raramente revelamos sobrenomes.
A cidade era relativamente grande. Para alguém interiorano como o senhor Ferdinando, aquele lugar era um labirinto caótico. Para quem morasse numa metrópole, o lugar tinha poucas opções de lazer no fim de semana.
Parei minha moto num posto de gasolina. Enquanto eu reabastecia minha moto, decidi fazer o mesmo comigo. Um copo de café e um pão de queijo generoso eram o suficiente.
Antes de deixar o lugar, porém, tive que fazer uma ligação importante.
Como não pretendo revelar nomes desnecessários para a narrativa, vou resumir a conversa que tive com uma agente da Ordem: falei o nome da cidade, da vila onde eu estava e os três nomes que me foram dados. Assim, em questão de um ou dois minutos, consegui o endereço do tal Thiago.
Com mais uns quinze minutos, cheguei ao prédio dele. O edifício era grandioso. Com trinta andares e, pelo o que eu vi, apenas dois apartamentos por andar, Thiago possuía uma moradia invejável num ótimo bairro. E talvez ele tenha adquirido o imóvel recentemente. Afinal, há pouco tempo ele morava na vila com Annabel.
Dei o meu nome para o porteiro. Sabia que Thiago me deixaria subir até o apartamento dele. Afinal, como eu descobri com a minha ligação, nós havíamos nos conhecido. Coincidências acontecem aos montes nessa vida. Juro que foi apenas isso.
Entrei no elevador e subi até o vigésimo sétimo andar. A porta do apartamento de número 272 estava aberta. Thiago me esperava bem vestido e com um largo sorriso branco no rosto.
Agora, antes de continuar, informo que eu vou me referir a mim mesmo como Jack. Nenhum motivo especial para esse nome. Apenas acho que vou complicar desnecessariamente a narrativa sem poder citar o meu nome. Assim, um nome falso basta.
Jack... Thiago sorriu. Ainda não acredito que é você mesmo! Ele riu. Não esperaria isso nunca!
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele veio e me abraçou.
A vida é uma caixinha de surpresas, não? Sorri.
Nossa... Thiago ainda parecia maravilhado. Seu sorriso bobo era prova disso. Quantos anos se passaram desde a última vez que nos vimos?
Mais de vinte, se não me engano.
Nossa! Ele riu alegremente. Ainda me lembro das férias lá na vila...
Sim. Infelizmente, o lugar não está mais tão bem...
Sério? Thiago pareceu um pouco desconfortável. Seu sorriso havia desaparecido parcialmente. Você veio de lá?
Assenti.
E quão ruim as coisas estão lá...? Ele indagou.
Por que você não vê por você mesmo? Propus secamente.
Ah... Claro. Talvez eu consiga algum tempo em breve...
Que tal hoje?
Hm...? Hoje?
É... Agora seria bom.
Ah... Ele limpou a garganta. Assim tão em cima da hora...
Vai ser rápido. Se você cooperar.
Por que tanta pressa?
Porque você tem que concertar seu erro... Pagar pelos seus pecados...
O que você acha...?
Annabel. Uma semana atrás. Isso te lembra alguma coisa?
O rosto de Thiago assumiu uma expressão sombria. Seus dentes trincaram e, seus punhos, cerraram-se.
Ora... Senti o desdém em sua voz. Fazendo o que da vida, Jack?
Segredo. Respondi. Isso é, até você ver o que eu posso fazer com seus próprios olhos.
É mesmo? Ele exibiu um sorriso amarelado. Que curioso...
Papai? A voz chamou de dentro do apartamento.
Thiago se voltou para trás. Uma garota, que não devia ter mais de cinco anos, apareceu timidamente. Com seus grandes olhos azuis e os cabelos loiros, ela parecia ter saído de algum conto de fadas. Tudo o que faltava era ela estar vestindo algum vestido cheio de glitter.
Filha... A expressão no rosto de Thiago mudou rapidamente. Agora, ele tinha olhos doces e uma voz suave, além do sorriso perolado de antes. O que aconteceu?
Não consigo achar o giz vermelho e.... De repente, a garota notou minha presença. Ah... Oi. Ela inclinou a cabeça pra esquerda. Quem é você?
Esse... Thiago começou a dizer. Esse é o tio Jack. Ele sorriu para mim. Ele resolveu fazer uma visitinha rápida.
A última vez que te vi, você era tão pequena, Agatha, sabia? Menti, obviamente, e sorri para ela. Você nem deve se lembrar de mim... Enfim, vim aqui ver seu pai, mas que bom que você está aqui!
É... Que bom... Thiago concordou claramente desconfortável. Seu sorriso parecia prestes a rachar. Rapidamente, voltou-se calmo para a filha. Agatha, querida, volte para o seu quarto, ok? Daqui a pouco já volto pra te ajudar.
Ok... A garota disse desanimada.
Enquanto ela voltava emburrada pro apartamento, Thiago se voltou para mim e, como esperado, seu olhar me desejava morto.
Ótimo ver que a garota está bem... Murmurei.
Como você sabe o nome dela? Ele me perguntou pausadamente. Cada palavra parecia uma ameaça de morte.
Um passarinho lá da vila me contou. Aliás, sabe o que seria uma boa ideia? Dar uma passada lá. Eu disse cada palavra com um sorriso irreverente no rosto. Tenho certeza que isso só serviu pra deixá-lo mais irritado.
Outro dia. Talvez...
Talvez eu devesse perguntar pra Annabel quando é um bom dia. Mas tenho o pressentimento que ela não vai responder.
Ah... Ele riu baixo. Ela anda meio fria? Quieta demais?
Fria? Sim. Quieta? Não. Ela anda gritando demais até...
Hm...? Ele ergueu uma sobrancelha. Como assim?
Eu te respondo assim que você me responder algo.
E o que seria?
Simples: por que você matou Annabel?
Ah... Thiago riu um pouco mais alto do que da última vez. Claro. O motivo... Você já esteve em uma situação que, para poder ver a pessoa que você mais ama, você tem que ver a que mais odeia?
Não. Não tão emocionalmente extrema, pelo menos...
Então você não sabe o que eu vinha sentindo há anos. Seu tom de voz se tornou mais agressivo. A vaca da Annabel me traiu, sabe? Mas, mesmo assim, o divórcio a favoreceu. Preferia que ela tivesse pegado toda a droga do meu dinheiro! Mas não... Aparentemente, a mãe tem algum tipo de preferência sobre a guarda da filha. Minha querida Agatha passava mais tempo com a vadia inescrupulosa da mãe do que comigo! E eu percebi que não demoraria pra minha filha se afastar cada vez mais de mim. Aquela serpente encheria a cabeça do meu tesouro com mentiras, jogaria o meu amor contra mim... Você acha que eu poderia viver assim?
E matar Annabel e se livrar do corpo dela em algum lugar calmo não levantaria suspeitas...
Ora... Eu deveria reclamar se tudo conspirava ao meu favor nessa situação? Droga... Era praticamente um sinal divino para eu me livrar daquele monstro e voltar a ter a minha filha junto de mim... Eu fiz o que tinha que ser feito... Cravei uma faca nas costas de Annabel e a torci até que aquela cadela parasse de gritar.
Sente-se mais leve com a confissão?
Surpreendentemente, sim. Obrigado. Thiago sorriu por uma fração de segundos. Espero que esteja satisfeito com o que você ouviu. Agora... É a sua vez de me responder uma pergunta, não é mesmo?
Sinceramente, eu estava surpreso. Não creio que ele respondeu aquilo só para eu responder uma pergunta sua. Sinceramente, acho que Thiago tinha que confessar o que fez para alguém, mas, mesmo assim, a frieza com ele disse aquilo era espantosa. Pensei que ele tentaria desviar do assunto, porém, não foi o que aconteceu. Ele disse tudo sem ser medo das consequências. Era praticamente um assassino nato. Talvez fosse.
Claro. Respondi. Porém, não sei se você acreditaria.
Só... Fale... Ok?
Ok. Eu sou apenas um reles mensageiro. Sua esposa sobreviveu. Agora, ela quer se vingar de você. Quando ela se recuperar, ela vai vir atrás de você, tenha certeza disso. Isso é tudo o que ela diz. E toda a vila está atrás do lado dela. Se você não fizer nada, você vai ter uma centena de pessoas te caçando e, é claro, alguém que quer te ver agonizando até morrer. Essa é uma das mentiras mais bem contadas por mim. E, sinceramente, ela é a que eu mais me orgulho.
Ah... O rosto de Thiago estava doentiamente pálido. Como assim? Não... Isso não é possível...
Então como eu soube disso tudo? Hein?
Hm...
Eu fui até a vila pela simples nostalgia. Mas, ao ouvir essa estória, eu resolvi vir até aqui e ouvir você negando o acontecido ou, então, defendendo-se. Não esperava ouvir a sua versão dos fatos e que eles fossem tão... Sinceros.
Praticamente paralisado, Thiago permaneceu junto à entrada de seu apartamento. Eu não pude conter um sorriso. Adorava quando minhas mentiras tinham esses efeitos.
Então... Prossegui. Vamos até o vilarejo?

Claro... Ele respondeu. 

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