Capítulo 4
Não havia uma estratégia muito bem definida. Pelo menos, não
havia necessidade de ter uma.
A Inquisição havia acabado de tomar o prédio abandonado. Uma
fábrica há tempos; agora, nada mais que um conjunto de salas e corredores
empoeirados. Os soldados iam de um lado para o outro, carregando caixas com
mantimentos e armamentos, fortificando barreiras, montando seu sistema de
segurança, organizando-se como podiam. A base ficaria inteiramente funcional
dentro de algumas horas. Tempo que não tinham e nem sabiam.
O ronco dos motores veio então. Dezenas de carros vinham do
horizonte. Eles surgiam de todas as direções, estremecendo a terra seca sob
seus pneus, assustando os calangos para fora da estrada, levantando uma densa
cortina de poeira por onde passavam. Em poucos instantes a base estava cercada.
Homens e mulheres saíram dos carros. Todos com armas
pesadas. Nenhum com a intenção de economizar munição.
O tiroteio começou. Rajadas de metralhadoras gritavam, quase
em uníssono, aniquilando os soldados fora da base. Granadas voavam para além
dos muros da velha fábrica, explodindo junto aos desafortunados que estavam no
pátio térreo. Atiradores de elite matavam os que se julgavam seguros, agindo
protegidos pelas barreiras de metal que eram seus carros.
A Inquisição podia ter sido surpreendida, mas não ficaria
assustada. Não sob as ordens de seu comandante.
As medidas de contra-ataque foram logo ordenadas. Grande
parte do contingente dos soldados se mobilizou para as janelas da base, abrindo
fogo contra os inimigos abaixo. Gideon ordenou a execução imediata de qualquer
invasor no território, permitindo o uso de quantas granadas julgassem
necessárias. As unidades remanescentes da Inquisição tentavam se organizar
dentro da base, posicionando-se em locais que pudessem realizar emboscadas
facilmente. A mente por trás da defesa da base deveria ser defendida a todo
custo.
A Rainha soprou uma baforada de fumaça para fora da janela.
Ela ainda estava dentro do carro blindado em que viera. Junto dela, Alexander e
o motorista, um sujeito conhecido como Lince, aguardavam pacientes pelas
ordens.
—
Hm... — A Rainha
Vermelha ouvia a sinfonia de tiros e explosões que recheava o ar, apenas
aguardando o momento certo. Então, socou de leve o próprio abdômen,
certificando-se novamente que seu colete de kevlar estava sob o terno. —
Só mais alguns instantes...
Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis segundos. Esse foi o
tempo que se passou até que uma explosão, significativamente maior que as
anteriores, estremecesse o chão. Outras duas vieram então, uma após a outra.
—
Esse foi o sinal. — A
rainha anunciou e, então, levou uma mão até o bolso. De lá, retirou um velho
soco inglês feito de bronze. Nele, lia-se a inscrição Ambrose. Ela abriu um sorriso confiante ao contemplar o amuleto da
sorte que carregava a mais de duas décadas.
— É... — Ela guardou o antigo
presente do pai. — Agora
é a hora.
O Lince assentiu, saindo rapidamente do veículo com um fuzil
em mãos. Alexander foi o próximo a sair, carregando um rifle de precisão nas
costas, seguido pela Rainha e sua submetralhadora.
Os três podiam ver claramente dali: um rombo havia sido
aberto em uma das paredes. Aquela era uma das três novas entradas para a base
inimiga. Tudo graças aos seus especialistas em demolição e aos seus explosivos
plásticos.
—
Eles nunca decepcionam. —
A Rainha abriu um sorriso discreto e, então, olhou para o alto. Seu olhar se
perdeu. Parecia contemplar as nuvens escuras no céu quase como algo surreal. — Não chove faz um tempo...
É quase como...
O som de um tiro calou sua boca. O projétil, entretanto, não
a acertou. O alvo foi o peito de Alexander. Com exceção de um novo buraco feito
em sua camisa velha, nada aconteceu com o gigante.
A Rainha recobrou sua atenção. Ela parecia se distrair com
coisas que, para outros, são mundanas quando estava nervosa. Tentaria não
repetir o erro.
O atirador deveria estar confuso, tentando entender como o
alvo, desprotegido, não havia caído morto. A Rainha deveria usar bem esse
tempo. Então, deixou sua submetralhadora de lado. Pegou rapidamente o rifle que
Alexander carregava. Aproximou um olho da luneta da arma. Olhou para onde o
tiro havia partido. Encontrou seu alvo. Respirou fundo. Prendeu a respiração.
Mirou na cabeça do desgraçado. Apertou o gatilho.
Quando sua vítima caiu morta, a Rainha exalou o ar que
prendia. Sentiu, então, o sangue correndo mais rápido por suas veias. Fazia
algum tempo que ela não atirava com um rifle daqueles. Ficou feliz de ver que
não tinha perdido o jeito.
A Rainha colocou a arma de volta nas costas do gigantesco
companheiro. Agora, precisaria de algo que atirasse mais rápido. Com a
submetralhadora em mãos, ela avançou lado a lado com o Lince, ambos disparando
rajadas de balas fervorosas, ambos protegidos pelo tanque desenfreado que era
Alexander
Não demorou muito para que o trio chegasse até a entrada que
haviam avistado. Sem hesitarem, adentraram a base inimiga descarregando as
balas remanescentes de seus cartuchos. A chegada deles era esperada após a
explosão. Foi isso o que pensaram. E pensaram certo. A emboscada de quatro
soldados foi rapidamente neutralizada pelos disparos.
Enquanto recarregavam suas armas, os dois atiradores deram
uma última olhada para trás, certificando-se que ninguém os seguia, que ninguém
os vigiava. Seus olhos então se arregalaram ao ver um objeto esverdeado, tão
grande quanto o punho de um adulto, cruzando o céu rapidamente até onde
estavam.
O tempo parecia desacelerar à medida que a granada se
aproximava. O que parecia minutos se passou e o artefato ainda pairava no ar. O
grupo já devia ter corrido para longe. Talvez ainda fosse possível se salvar se
agissem logo.
—
Alexander! — A Rainha
bradou.
Então, o gigante agiu pelo grupo. Ele ergueu o braço maciço
para o alto, agarrando a granada no ar.
Perplexo, o soldado da Inquisição observou a cena. Não
conseguiu nem esboçar reação quando o artefato voltou em sua direção, com a
velocidade de uma bala de canhão, chocando-se contra seu peito e o derrubando
suas costas contra o chão.
Ninguém precisava assistir a cena para saber o final dela.
Atordoado no chão, o infeliz soldado conheceu seu fim quando a granada explodiu
sobre seu corpo débil.
Com a certeza de
que não estavam sendo mais perseguidos, os três prosseguiram pela velha
fábrica.
Tendo a dianteira
protegida pelo gigante, a dupla armada parecia avançar quase despreocupada.
Quando Alexander avançava, atacava os soldados da Inquisição sem hesitar,
arremessando-os contra paredes, quebrando seus ossos como se fossem de vidro,
jogando-os como projéteis contra os demais inimigos, provocando o pânico de quem
via a cena. Muitos largavam as armas no chão e corriam por suas vidas. Poucos
mantinham a calma para tentarem atirar contra os outros dois membros do trio
que, com frieza, fuzilavam os adversários remanescentes.
Uma. Duas Três.
Quatro. Cinco. Esse foi o número de emboscadas consecutivas fracassadas contra
o pequeno grupo. Eles pareciam invencíveis. Sentiam-se invencíveis. Mas não
eram.
Três logo se
tornaram dois. Um deslize mínimo foi o suficiente para que o Lince voltasse a
se enxergar como um mortal. Após um tiro abrir um buraco profundo em sua coxa,
ele sabia que não conseguiria mais acompanhar a Rainha e Alexander. Sem querer
parecer fraco, o homem manteve sua arma em mãos e pediu para que os dois fossem
em frente, sem saber se sobreviveria ao sangramento. Disse que ficaria ali até
alguma ajuda chegar. Prometeu matar qualquer inimigo que por ali passasse. Sua chefe
não discordou da decisão. Ela logo partiu com Alexander.
Mais uma. Então
duas. Enfim outras três emboscadas sobrevividas. Todas usando a mesma tática.
Agora, ainda mais efetiva. A dupla conseguia compensar um atirador a menos com
seu entrosamento. Era algo que não conseguiam explicar direito. Leitura
corporal. Pressentimento. Sorte. Tudo parecia influenciar a performance dos
dois, tudo os deixava mais fortes. Nenhum dos dois morreria enquanto estivessem
juntos.
Então, chegaram
ao último andar.
A Rainha foi
saudada por um sopro de ar gélido, algo que pareceu tirar o calor de todo seu
corpo. Olhou para o alto, através de um grande buraco no teto, em direção ao
céu nublado acima. Não sabia dizer o motivo do calafrio, uma ventania fria
antes da chuva ou um verdadeiro mau pressentimento. Talvez os dois? Não
importava. Decidiu ignorar e seguir em frente.
Mais uma
emboscada sobrevivida sem problemas e sem surpresas. Aquilo deveria ter a
acalmado, ter provado a si mesma mais uma vez que não seria derrubada por nada nesse
mundo. Mas não. Seu coração batia mais rápido do que antes, mais rápido a cada
instante. Seu corpo só relaxaria quando a maior ameaça estivesse morta diante
de seus pés.
Uma porta
fechada. Lá, bem no final do corredor que estavam. Era velha, podre, quase
caindo das dobradiças. A Rainha poderia a derrubar se precisasse, sem pedir pela
ajuda a Alexander. Mas acabou não precisando. Ela estava destrancada. Precisou
apenas de um giro na maçaneta e um leve empurrão. Pronto. Assim foi aberta.
Após emitir seu
longo e estridente rangido, a porta revelou uma nova e decrépita sala. Mas a
dupla não entrou de imediato.
Passos. Poucos,
quase inaudíveis. Mas eram passos. A Rainha tinha certeza. Alexander tinha
certeza. Por isso a dupla hesitou, por isso se voltaram para trás e aguardaram
por algo, ou alguém. Mas além do relativo silêncio aconteceu.
Após alguns
segundos, ficou claro que nada aconteceria, não enquanto estivessem ali
parados. Por isso resolveram seguir em frente. Suas guardas, é claro, não
baixaram.
Aquele deveria
ser o ponto mais danificado de toda a velha fábrica. Não havia praticamente
mais teto, a chuva logo banharia o salão como já tinha feito inúmeras vezes
antes. As paredes pareciam ter sido corroídas pelo tempo, débeis, prontas para
ceder se forçadas mesmo que pouco. O chão rangia a cada passo que recebia,
soava ainda pior que a porta de entrada. O que era exatamente o lugar? Não
sabiam. E nem pensavam sobre.
Então, algo de
metal quicou levemente no chão, rolando ruidosamente até os pés da dupla. Do
tamanho de uma lata de comida, o artefato permaneceu inerte por uma mísera
fração de segundos. Então, houve um clique metálico.
É claro que
Alexander protegeria a Rainha. Conteria sua força quando a empurrasse,
mandando-a mais de um metro para trás mesmo assim. O gigante se jogaria sem
hesitar sobre o explosivo, formando uma concha sobre a lata de metal. Ele absorveria todo o impacto, impediria que
os estilhaços chegassem até a amiga como já havia feito antes. Ambos sairiam
ilesos mais uma vez.
Porém, não foi o
que aconteceu.
Não houve uma
explosão, apenas uma pequena ruptura. Uma parte da lata de metal se abriu,
exalando um gás adocicado. Subindo rapidamente, o veneno dispersou-se apenas o
suficiente. Em poucos instantes, o gigante estava envolto por uma densa nuvem púrpura.
Pela boca. Pelo
nariz. Pelos poros da pele. O gás penetrou o corpo de Alexander, mais e mais a
cada segundo. Desorientado, o gigante começou a cambalear, movendo seus braços
e pernas com uma fúria inútil. Seus pulmões se retorciam, ingerindo o veneno,
expulsando o ar de seus interiores, murchando e enegrecendo.
—
Não... — A Rainha murmurou
sem conseguir acreditar no que via. —
Alexander...
O guardião caiu
de joelhos. Suas outrora fortes mãos estavam agora trêmulas. Seus olhos, secos,
ardiam com uma cor rubra. Seu coração batia mais lentamente a cada instante que
se passava. No lugar de um urro estrondoso como de um urso, um suspiro
silencioso saiu de seus lábios. Então, o gigante entrou em colapso. Seu peito
atingiu o chão. Seus braços, inertes, não puderem impedir a queda.
Sua respiração
cessou.
Alexander não
mais se moveu.
—
Alexander... —
Ela chamou o amigo mais uma vez em vão.
—
Eu mal posso acreditar... —
Disse uma voz abafada. —
Não é que funcionou...?
Ela não sabia
dizer de onde as palavras vinham.
—
Achei que o grandão aí fosse invencível... — A voz continuou. — Mas, olha só, o pessoal do laboratório
tava certo...
Seus olhos se arregalaram
ao reconhecer a voz.
A Rainha levantou
com as pernas bambas. Seu coração batia quase para fora de seu peito. Suas mãos
tremiam, quase derrubando a arma.
—
Um gás tóxico sem igual... —
O comandante da Inquisição murmurou. —
Um veneno capaz de fazer qualquer ser vivo sufocar até seus últimos instantes
de vida...
A voz parecia se
mover. O desgraçado não permanecia parado por muito tempo. Ela sabia disso.
Mesmo assim, não era capaz de encontrá-lo.
—
Uma arma capaz de eliminar qualquer forma de vida... — Prosseguiu. — Bactérias, plantas, animais, pessoas... E
até aberrações como essa... Emissários do caos... Monstros vindos direto do
Inferno... Para lá devem retornar...
A Rainha apontava
a arma para o alto, movendo-a freneticamente de um canto para o outro. O canalha
estava acima dela, rondando-a como uma fera, decidindo qual seria o melhor
momento para o ataque.
Disso ela tinha
certeza. Ele estava ali. Certo? Talvez não. Talvez ele estivesse a enganando de
alguma forma. Talvez seus próprios sentidos a estivessem traindo. Suas
incertezas aumentavam e se fortaleciam a cada batida de seu coração inquieto.
—
Isso mostra como toda vida é efêmera... Frágil... Tão fácil de quebrar... — Ele riu. — Não concorda... Sophia?
Uma rajada de
tiros. Porém, nada a rainha acertou. Ela nem mesmo tinha seus olhos abertos no instante.
E por um momento, pensou que seria melhor não mais abri-los.
Seus dedos
tremiam. Suas mãos tremiam. Seus braços tremiam. Seu corpo tremia. Não sabia
dizer se sentia medo. Não sabia se sentia raiva. Não sabia mais o que esperar.
Andando pela sala
sem rumo, seus olhos acabaram por pousar sobre o corpo de Alexander. A Rainha
engoliu em seco. Sentiu um vento gélido atingir seu corpo novamente.
O que mais aquele
monstro podia usar contra ela? Se o desgraçado podia matar até Alexander, como pensar
em sair viva de lá? Por quanto tempo mais ele a torturaria? Por quanto tempo
ele continuaria seu jogo, lambendo seus lábios, aproveitando cada segundo do
desespero de sua presa?
A resposta veio
em seguida.
O som veio de
trás dela. O rangido agudo do chão se somou ao estrondo grave da aterrissagem
do predador.
Então, o tempo entrou
em estado de torpor.
A Rainha se
voltou para trás. Seu dedo não conseguiu apertar o gatilho a tempo. A arma foi
arrancada de suas mãos. Antes que pudesse reagir, a coronha da arma foi de
encontro com sua cabeça. Um baque surdo. O golpe a deixou desorientada por um
segundo. Quando percebeu, uma mão se lançou até seu pescoço, agarrando-a com
destreza, jogando-a contra uma parede, sufocando-a com prazer.
Aos poucos, a
visão da Rainha pareceu conseguir focar no agressor. A roupa blindada era
cinzenta, reforçada como uma armadura. Todo o corpo era coberto, incluindo o
rosto, fazendo-o parecer ainda menos humano. Nas costas, carregava uma arma:
uma metralhadora que, se tivesse sido usada, já teria tirado a vida da presa.
Na cintura, uma faca simples, afiada apenas o necessário: um novo instrumento
de tortura para brincar com a vítima.
—
Fazia tempo que eu não fazia isso contigo... — O monstro riu. — Apertar esse seu pescoço, sentir seus
ossos rachando na minha mão, ver você perdendo os sentidos bem diante de meus
olhos... Mas... —
Ele analisou a presa calmamente. —
Você não parece estar com tanto medo... Não como da última vez... Hm... Por que
será...? Será que você ficou mais durona...? Imune ao medo...? — Sua própria risada veio em seguida. — Não... Improvável...
A Rainha foi
solta. Suas pernas fracas cederam, caindo sentada perante o predador. Ela nem
conseguia pensar. Tinha que recuperar o ar perdido, então o fez. Arfando,
parecia ter se esquecido de toda a cena por um instante.
Então, algo a
trouxe de volta para a realidade. Era o som de alguma coisa acertando o chão de
madeira. A Rainha olhou lentamente na direção do objeto. Era a máscara do monstro.
—
Sophia... — Ele cantou o nome.
— Olha pra cá,
Sophia...
A Rainha olhou
para baixo, tentando desviar o olhar, evitando o que sabia que estava atrás da
máscara. Mas não tinha como fugir.
Dedos revestidos
de metal apertaram seu rosto, segurando-a pela mandíbula, apertando-a com
força, forçando-o para onde olhar.
Os olhos de
Sophia, então, encheram-se de medo como não acontecia em anos.
Um sorriso largo que retorcia o rosto. Dentes brancos que
mais pareciam presas. Olhos azuis que emitiam um brilho doentio. Um riso
maníaco que se deleitava com a cena.
—
Medo... — Gideon
Allard murmurou. —
Medo verdadeiro... Medo incontestável... —
Ele gargalhou. —
Perfeito... — Sua
faca se aproximou do rosto pálido da presa. —
Agora sim... — O
toque da lâmina gélida fez Sophia tremer. —
Agora sim posso começar a me divertir... Me divertir como não faço há anos...
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