Capítulo 3
Ela acordou gritando.
A Rainha levou as mãos ao rosto. Sentiu seu suor escorrendo.
Percebeu sua respiração arfante. Ouviu seu coração acelerado. Urrou enraivecida
em seguida.
Foi um pesadelo que a tirou de seu sono. Mas não foi
qualquer pesadelo. Foi praticamente um flashback, um coquetel feito com os
fragmentos de memórias amargas, uma sequência de slides que retratava o mesmo
rosto tantas vezes.
Cabelos negros penteados para trás. Olhos azuis profundos.
Nariz fino e empinado. Dentes brancos perfeitos. O sorriso, porém, era contido.
O jovem parecia esconder algo, segurar algo. Segurar ele mesmo.
A Rainha balançou a cabeça de um lado para o outro, tentando
afastar a imagem de Gideon Allard de sua mente. Em vão.
Ela sentia seu coração batendo cada vez mais rápido, cada
vez mais enfurecido. Seu corpo começava a tremer. Sua visão se tornava
embaçada. Seus punhos se cerraram. Seus dentes trincaram.
Gideon Allard. A Rainha o queria morto. Mais que isso. Ela
queria matar o desgraçado. Quebrar lentamente o corpo dele. Fazê-lo sofrer nos
últimos instantes de vida. Fazer um favor ao mundo e o livrar de um pária
daquela raça. Queria descontar toda a sua raiva, toda a dor que sente e sentiu,
naquele rostinho nojento. Queria deformar tanto aquela face arrogante que nem
mesmo a família do verme pudesse reconhecer o cadáver quando seu trabalho
estivesse finalizado.
A porta do quarto se abriu. A Rainha voltou seu olhar para
quem entrava. Era Alexander. O gigante dormia no mesmo quarto que sua
protegida, numa cama modesta, perto da porta. No primeiro momento, a Rainha não
sabia o porquê do amigo ter saído do quarto. Então, ela viu. Em uma mão, ele
carregava um engradado. Eram cervejas, seis no total, de sua marca favorita.
—
Sempre pensando em mim... —
A Rainha abriu um sorriso e se ajeitou na cama, sentando-se no colchão, com os
pés tocando o piso. —
Não é, grandão?
Alexander assentiu e, com seus passos pesados, andou até sua
chefe. Sentando-se ao lado dela, pegou duas garrafas do engradado e colocou as
restantes no chão. A Rainha se encostou no braço do gigante, respirando fundo.
Inspirando. Expirando. Com calma. Até relaxar. Então, abriu sua primeira
cerveja e tomou um gole.
A Rainha pensou em seu pai, Martin, e na antiga vida deles.
Lembrou-se de como era a Capital, ou melhor, de como eram os lugares que podia frequentar
lá. A cidade não era uma utopia como muitos de fora dela imaginavam. Haviam
abismos sociais. Crimes aconteciam. Era por isso que precisavam de seus
policiais. Porém, o povo, em sua totalidade, considerava-se superior ao resto
do mundo. E aquilo sempre a enojou.
Mais um gole de cerveja. Então, pensou na origem de tudo
aquilo, da divisão do mundo até se tornar o que é hoje. Lembrou-se das aulas de
história. Lembrou-se das teorias da conspiração que lia na internet. Lembrou-se
até mesmo as palavras do próprio pai sobre o assunto. Coisas que ela não
pensava há tanto tempo.
Um gole rápido. Concentrando-se, quase podia se lembrar das
palavras exatas usadas pelos professores. Tantas vezes falaram sobre a Guerra
Infernal, sobre o surgimento de humanos com dons dignos de seres mitológicos,
sobre o banho de sangue que foi o conflito entre normais e anormais.
Popularizados como Malditos, os tais super humanos foram derrotados
por dois motivos principais.
O primeiro foi a questão numérica. Eles estavam em
desvantagem. Eram, e ainda são, a minoria na sociedade. Algumas centenas de
soldados contra cada um deles. A grande maioria não era tão poderosa.
O segundo fator foi a resistência. Por mais que pudessem
cuspir fogo, controlar ventanias, invocar relâmpagos ou causar terremotos,
balas causavam tanto dano neles quanto em pessoas comuns. Tiros na cabeça os
eliminavam sem problemas. Bombardeios dizimavam dezenas ao mesmo tempo. Uma bomba
atômica extinguia milhares em uma fração de segundos.
No final, os Malditos remanescentes se renderam, fugiram, esconderam-se.
As grandes cidades construíram muralhas para se proteger de eventuais ataques
e, também, para manter as ameaças sobrenaturais do lado de fora, mandando a
Inquisição para exterminar os monstros sobreviventes. Ou era o que diziam.
Poucos habitantes da Capital não eram alienados e conseguiam
pensar por si só, questionando essa história, pelo menos, em alguns aspectos.
As conclusões eram vistas pela maioria da população, é claro, como bobagens.
Mas os mais inteligentes sabiam que muitas pessoas além dos muros não tinham
super poderes, não representavam uma grave ameaça. Porém, todos eram pobres. A
parcela da população considerada mais grosseira, mais burra, com maior
tendência à criminalidade. A divisão era apenas para afastá-los dos mais ricos.
E Martin fez questão de explicar isso para a filha desde cedo.
Quando a Rainha percebeu, sua garrafa estava vazia. Antes
que pudesse estender o braço para pegar outra, Alexander já havia feito isso
por ela. Ele pegou duas novas cervejas, uma para a amiga e uma para si, e deixou
as que acabaram no chão, junto ao engradado.
Um novo gole a refrescou. A Rainha, então, olhou para seu
protetor silencioso. Um Maldito, como
o próprio pai havia dito. Aquele termo a enraivecia. Era puramente pejorativo.
Mais uma forma que o governo criou para incentivar o ódio contra aquela raça
apenas por terem nascido diferentes. E ela sabia que não era a primeira vez que
aquilo acontecia na História.
Segundo gole. Pensar no caso de alguém tão próximo quanto
Alexander era especialmente revoltante, doloroso até. Primeiramente, o gigante
nunca foi capaz de falar. Com exceção dos grunhidos e rugidos, não podia se
expressar. Aquilo já era um problema grande o suficiente por si só. Some isso
ao fato do companheiro ter nascido em algum fim de mundo qualquer e que ele
literalmente teve que lutar, muitas vezes sozinho, para sobreviver e a tragédia
que era sua vida fica clara.
Um novo gole. A Rainha olhou com carinho para Alexander. O
amigo só sobreviveu tanto tempo graças a sua resistência e a sua força, ambas
descomunais. Se fosse outro Maldito, sozinho, já teria morrido em uma viela
qualquer com um tiro na nuca. Mas aquilo nunca aconteceria com o gigante. Ele
já havia sobrevivido a mais surras, facadas, tiros e explosões que ela podia
imaginar.
O quarto gole foi rápido. Ela respirou fundo. Sentiu o ar
preencher os pulmões. Segurou um pouco. E soltou enfim. A Rainha se sentia
confortável junto ao amigo, protegida como se ainda tivesse dezessete anos,
morando em casa com o pai, só tendo que se preocupar com os típicos problemas
de adolescentes. Foi uma época boa. Uma época que ela não soube dar valor. Uma
época que chegou ao fim em poucos minutos. Tudo graças a um monstro. Um monstro
que não tinha nada de sobre-humano. E era exatamente isso que a aterrorizava.
Gideon Allard. Mais uma vez ela pensou no nome. Mais uma vez
se lembrou daquele rosto.
A Rainha rosnou. Com um longo gole, terminou sua cerveja.
Alexander logo providenciou a próxima para ela e para si.
Apenas uma adolescente. Não sabia nem o que faria da vida.
Não tinha a mínima ideia. Inteligente, mas não tanto quanto achava que era.
Bela, mas não sabia os problemas que a beleza atrairia. Assim a Rainha podia se
descrever na época. Ainda melhor, se fosse para se resumir em uma palavra,
provavelmente escolheria inocente.
Afinal, não sabia o que estava por vir. Não entendia o quão frio o mundo
poderia ser uma vez que não havia sentido na pele suas presas geladas.
Era noite. O céu estava limpo. A chuva não atrapalharia os
planos pro fim de semana. A jovem Sophia sairia com as amigas. Iria para a
festa que tanto queria. Já havia planejado tudo há semanas. Sabia como iria.
Como voltaria. O que lá faria. E sabia que poderia se envolver com um homem de
classe, ainda mais quando comparado com os velhos pretendentes. Era uma dos
poucos eventos da Capital que alguns membros da tão invejável elite socializavam
com a plebe. A garota só esperava não terminar com algum porco arrogante. Mal
sabia ela que acabaria nas mãos do diabo.
Demônios enganam. Demônios seduzem. Demônios possuem. Isso
tudo com suas máscaras. E Gideon não era diferente. Bem vestido, perfumado, com
pose de galã. Quando ele ofereceu um drinque para Sophia, a garota pensou em
dar uma chance para ele. A jovem parecia encantada pelo jeito misterioso do
novo pretendente.
Começaram a se conhecer. Poucas palavras foram trocadas.
Então, o nada veio. Um vazio, uma tela em branco no lugar de onde deveria estar
a memória.
Sophia nem se lembra de como saiu da festa. Nem se lembra de
ter visto as amigas. Só percebeu, dias depois, que havia algo em seu drinque.
Os poucos fragmentos de memória que sobreviveram foram
justamente os piores. Prova de que o destino tem um senso de humor desgraçado.
Sophia apenas se lembrava do sorriso de Gideon alargando-se, esticando e
retorcendo o rosto. Os dentes como presas. Um olhar doentio. Um riso maníaco.
Dedos como garras rasgando suas roupas, apertando seu pescoço, estrangulando-a,
deixando hematomas por todo seu corpo dormente, marcas que só veria no dia
seguinte. A língua percorreu todo seu ser, traçando curvas e mais curvas, saboreando
a presa que só conseguia mover os olhos, tentando desviar o olhar, rezando para
que as lágrimas continuassem embaçando sua visão. Seus gritos não saiam de sua
garganta, não como gritos pelo menos, saindo fracos e impotentes, suspiros e
gemidos apenas, para o deleite do demônio que se excitava mais e mais, rindo freneticamente
enquanto apreciava toda a cena nefasta que criara.
A Rainha deu o primeiro gole na terceira garrafa, virando-a
e bebendo a cerveja de uma vez.
Ela se lembrava do dia seguinte, de acordar nua num motel
barato. Quando as memórias começaram a vir, ela vomitou. Então, começou a chorar.
A pobre Sophia não sabia o que fazer. Sabia que não havia como concertar
aquilo. Sabia que não havia como voltar no tempo, impedir que aquilo
acontecesse. Sabia que aquele pesadelo tinha sido a sua primeira vez.
É claro que ela iria até o pai, o policial. É claro que ele
ficaria revoltado com o que havia acontecido. É claro que ele faria tudo ao seu
alcance para ajudar sua filha e punir o diabo que havia feito aquilo ela. Mas a
realidade era outra.
Allard. Uma das mais ricas e influentes famílias da Capital.
Melhor dizendo, uma das donas da
Capital. A palavra deles era lei. Se quisessem silenciar o departamento de
polícia e todos os tribunais da cidade, assim o fariam. E o fizeram. Ninguém
tocaria no jovem Gideon. Não importa o crime, principalmente contra uma reles
filha de um policial. O desgraçado se safou. E sabia que se safaria mesmo antes
de drogar Sophia.
Não havia mais nada a ser feito. Martin não poderia fazer
nada. Perderia seu emprego e até a sua vida caso tentasse alguma loucura. E
Sophia sabia disso. Então, ela fugiu. Sem olhar para trás.
Muito havia acontecido desde então. Uma garota da Capital
correu às cegas em direção a um mundo hostil e desconhecido. Sua única certeza
era a de que não poderia viver mais onde estava. Tinha a tola esperança de que
algo melhor a aguardava, que algo bom tinha que acontecer, uma fora de compensação
talvez.
Um anjo, então, apareceu. Alguém que a salvaria da morte
incontáveis vezes. Alguém que possibilitaria que seu reinado se formasse. Seu
primeiro súdito. Seu primeiro aliado. Seu primeiro amigo num mundo sem dó. Um
homem que também precisava ser salvo.
A Rainha Vermelha abraçou Alexander o mais forte que podia.
O gigante retribuiu o gesto, sempre atento a sua força, sempre com carinho.
Era ali que ela se sentia confortável. Era daquele jeito que
ela se sentia invencível.
—
Ah, Alexander... —
Sophia sorriu como só conseguia sorrir para o amigo. — Amanhã vai ser um grande dia... — Seus olhos brilhavam como
chamas. — Sangue
jorrará em homenagem à Rainha Vermelha.
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