domingo, 30 de outubro de 2016

A Rainha Vermelha, Capítulo 2

Capítulo 2


Duas semanas. Esse foi o tempo que se passou desde a última operação em que ela esteve presente. Metade de um mês havia se passado e, agora, a Rainha Vermelha parecia entediada. Mas aquilo viria a mudar. Mais rápido do que poderia imaginar.
Sentada em seu escritório, a Rainha estava separada da movimentação de seu bando por uma simples porta. Seus homens e mulheres tendiam a não decepcionar a chefe. Alguns se preparavam para missões, checando seus armamentos e rezando para quem bem entendessem. Outros voltavam de seus trabalhos, estacionando carros e caminhões no estacionamento, descarregando as novas mercadorias e os pagamentos pelos serviços prestados à sociedade, prosseguindo para o bar ou para a enfermaria. Às vezes para os dois. A ordem não parecia importar muito.
Compra e venda de armas. Compra e venda de drogas. Proteção para os que pagassem. Conflitos contra a polícia que mais agia como uma milícia que saia para caçar bruxas. Era disso do que a Máfia da Rainha Vermelha vivia. Era assim que sobreviviam a cada dia.
Não havia outro jeito. Ela não acreditava que havia um lugar melhor para se viver. Fugir daquelas terras cinzentas e sem leis era um sonho para muitos. Mas não era possível. Entrar nas grandes cidades não era permitido. Mesmo que alguém escalasse os muros, não conseguiria se misturar ao povo de lá. A podridão de lá era diferente. Era disfarçada, ignorada, completamente omitida em alguns casos. Era pior do que havia do lado de fora. E a Rainha sabia disso como ninguém. Não pretendia colocar os pés dela de novo naquele lugar imundo.
Uma batida leve na porta. Um momento de hesitação. Outras duas vieram rapidamente. Aquilo foi o suficiente para trazer a Rainha de volta à realidade, escapando de seu transe induzido pelo tédio da papelada em sua mesa.
Alexander se levantou. O gigante estava num canto, quieto, dormindo com seu sono leve. A Rainha às vezes não se lembrava da presença de seu guardião silencioso. Ela calmamente acompanhou o andar pesado do amigo até a porta do escritório. Abruptamente, ele abriu a porta.
A mulher do lado de fora foi surpreendida. Mesmo os mais antigos membros do bando se assustavam, mesmo um pouco, quando Alexander aparecia de repente diante deles.
Tem alguém fora do esconderijo querendo entrar... A mulher avisou. Um policial. Sozinho. Parece ter uns cinquenta e poucos anos. Disse que te conhecia pessoalmente. Um tal de...
Martin. A Rainha presumiu. Mande ele vir.
Aí estava um homem que ela não via fazia tempos. Mas ela tinha certeza que, eventualmente, acabariam se vendo de novo.
Poucos instantes se passaram e lá estava ele, no que era considerado o coração da base da máfia, cercado por curiosos que murmuravam o quão insano ele deveria ser.
Cabelos grisalhos. Barba rala também grisalha. Olhar sério. Expressão mal-humorada.  Um metro e noventa de altura. Porte físico de um lutador. Uniforme azul-marinho. Distintivo no peito. Não parecia se importar com os mafiosos que o escoltaram até o lugar, nem mesmo com as armas apontadas para ele.
Espero que não esteja se sentindo desconfortável. A Rainha esboçou um sorriso. Eles são meio desconfiados com sua gente, então não leve pro pessoal.
É bom que eles estejam mesmo. Martin retrucou.
Acha que você tá na posição de se fazer de forte? Um mafioso magricela indagou, rindo, cutucando a nuca do policial com seu revólver. Hein?
Então, tudo aconteceu muito rápido. Um braço de Martin envolveu o pescoço do mafioso, sufocando-o, enquanto o revólver, agora na mão do policial, apontava para uma têmpora do magrelo.
Aquilo foi o suficiente para fazer os demais membros da gangue erguerem suas armas, mirando em todas as partes do corpo do visitante.
Todos estão bem agitados pelo visto... A Rainha comentou, contemplando os rostos aflitos de seus homens e mulheres. Alexander estava calmo do seu lado,observando a cena, esperando uma ordem para entrar em ação.   Para mim, parece que estão exagerando um pouco...
Peça pros seus capangas abaixarem as armas. Martin ordenou, empurrando a cabeça do refém com a ponta da arma. Agora.
Isso vai depender do que você veio fazer aqui. Ela coçou o queixo. Aliás... Como me achou? Estou curiosa.
História pra outro dia. Respondeu rispidamente. História antiga, diga-se de passagem. Só não vi motivos pra vir até aqui. Não até agora pelo menos.
Não pensou em vir aqui antes? Tomar um chá, talvez?
Sabia que você estaria bem. Ele respondeu sério. É uma Ambrose afinal de contas. Uma guerreira. Mas...
Mas...? Ela ergueu uma sobrancelha. Mas o quê?
Uma nova tropa da Inquisição está vindo para perto daqui. Amanhã mesmo eles chegam. E o comandante deles é um sujeito asqueroso...
Qual deles não é? A Rainha riu. Não ouço nada de novo. O que mais vai me dizer? Que ele mata qualquer um que fique no caminho dele? Que ele se acha melhor que todo mundo? Que ele pisa nos cadáveres das criancinhas que ele mata por diversão?
Que tal se eu contar que o nome dele é Gideon Allard?
O ar pareceu se tornar mais denso. O tempo pareceu desacelerar.
A Rainha engoliu em seco enquanto seu rosto empalidecia.
Gideon... Allard... Ela repetiu o nome pausadamente.
Más memórias. Seria um eufemismo dizer isso. Aquele nome trazia à tona lembranças que a Rainha queria esquecer. Era um lembrete do quão repugnante o mundo realmente poderia ser, do quanto ela podia ser impotente, do porquê ela abandonou a antiga vida. Era algo que ela queria fugir. Algo que queria não ter que enfrentar. Algo que ela desejava ter deixado para trás. Algo que não afetaria mais a sua vida, não mais do que já tinha afetado.
Você pode pensar que ele está atrás do Maldito aí. Martin apontou para Alexander sem se intimidar pelo gigante. Você pode até pensar que ele está atrás do seu bando. Mas você estaria apenas se enganando. Você sabe que ele vai vir atrás de você, que ele vai vir te torturar um pouco mais, que ele vai se divertir um pouco mais... E que ele tem apoio o suficiente para enfrentar seus homens e mulheres numa guerra. Então... Ele bufou. Ataque-o antes que ele te ataque. Mate-o antes que ele te mate. Faça o que você não pôde fazer antes... Faça o que eu tive medo de fazer antes...
Um momento de silêncio pareceu tomar conta do lugar. Muitos dos mafiosos já haviam abaixado suas armas. Eles olhavam perplexos para sua líder que, pela primeira vez diante de sua gangue, parecia sentir medo.
A Rainha respirou fundo. Levou uma mão até um dos bolsos do terno. Então, expirou mais tranquila. Ela achou o que tinha que achar.
Não se preocupe. A Rainha exibiu um sorriso confiante. Eu vou lutar. Então, olhou para o resto do salão, para seus fiéis soldados. Nós vamos lutar. E vamos ganhar. Afinal, um Ambrose e seus guerreiros não perdem uma batalha, não é...?
Hm... Martin esboçou o que parecia ser um sorriso. Pais sempre se preocupam, Sophia...
Outro nome que evocava memórias. Desta vez, memórias mais agradáveis, nostálgicas. Um sorriso discreto, porém genuíno, surgiu em seu rosto. As lembranças de uma era que se foi e que não voltaria, mas que a Rainha preferia não esquecer.
O clima tenso parecia, então, ter se dissipado, mesmo que por poucos momentos. Uma nova tempestade estava a caminho afinal. Uma nova batalha viria.
Não vou tomar mais o tempo de vocês... Martin murmurou. Vocês têm muito o que fazer. Têm que se preparar... E eu tenho que voltar pro meu posto... Fazer o meu trabalho... Ajudar a tomar conta de sua avó...
Vó Agnes... A Rainha disse o nome com certo gosto. Então, o sorriso sumiu de seu rosto. Como ela está...?
Bem... Martin não sabia mentir. Ela... Está bem.
Ah... Ok...
Não se preocupe com ela. Só... Tente visitá-la algum dia. Se possível. Ela está morando numa cidadezinha perto da Capital. Não é difícil chegar lá.
Vou tentar.
Ótimo. Agora... O policial enfim soltou seu escudo humano e devolveu a arma para o magrelo. Preciso que alguém destranque a porta lá de cima para eu sair, ok?
O mafioso assentiu, ainda um pouco trêmulo.
Com uma última tentativa de um sorriso, Martin se despediu de sua filha, desejando com todas as suas forças poder a ver, pelo menos, mais uma vez. Mas sabia que aquilo podia não acontecer.
Quando as portas do elevador se fecharam e o policial não podia mais ser visto, os mafiosos voltaram seu olhar, uma vez mais, para sua chefe. Agora, a Rainha Vermelha parecia diferente, mesmo que alguns poucos minutos tivessem passado. E ninguém sabia dizer se isso era bom ou ruim.
Gente... Calmamente, a Rainha tirou um cigarro de um bolso e um isqueiro do outro. Eu não preciso repetir nada do que foi dito aqui. Ela acendeu um cigarro e deu a primeira tragada, soltando a fumaça poucos instantes depois. Preparem-se para amanhã... Por que eu não vou me acalmar. Não vou me acalmar até ensurdecer os soldados da Inquisição com o grito do comandante deles... Não vou me acalmar até pintar uma trilha daqui até a Capital com o sangue de cada um daqueles vermes... Não vou me acalmar até eu queimar os corpos deles até que todos virarem cinzas... A mafiosa bateu na ponta do cigarro, derrubando um pouco das cinzas no chão. Entenderam...?
E mais uma vez, os soldados saudaram sua capitã, a incontestável Rainha Vermelha.

Perfeito...

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