14.
—
Ah... — Joshua olhou
boquiaberto para o ceifador. —
Como assim...?
—
Consumir almas torna a nós, ceifadores, mais poderosos. — Estmund respondeu. — Entretanto... É contra as regras, sabe?
Afinal, nosso trabalho é garantir que as almas cheguem ao Plano Espiritual. Não
cabe a nós decidir o destino de vocês. E, é claro, a proibição do consumo de almas
faz com que os ceifadores menos experientes, como eu, sejam mantidos sob o
controle dos mais experientes... Como é o caso daquela megera da Morgana. — Ele pareceu irritado,
trincando os dentes, apenas em pensar na ceifadora. Após um instante, ele parecia
mais calmo. —
Enfim... Estamos em um lugar sem regras, abandonado por anjos, demônios, Djinns
e ceifadores... Bem... —
Ele riu. — Abandonado
pela maioria dos ceifadores, pelo menos...
Joshua estava incrédulo. Ele não podia acreditar na
traição daquele que estava sorrindo em sua frente.
—
Mas... Por quê? — O
rapaz indagou com dificuldade. —
Por que fazer tudo isso? Me arrastar pra cá... Arrastar Adriana pra cá... Ter
mentido para mim... —
Ele parecia tentar encontrar as palavras certas. —
Por que tanto trabalho, tanto esforço?
—
Porque é o único jeito. O único jeito que eu posso fugir das regras e dessa
monotonia que é a eternidade. O tempo passa e eu não mudo. Não fico mais forte
nem mais fraco. Não estou nem mais próximo nem mais distante do meu fim. Eu sou
um escrevo que nunca será liberto... —
Ele riu sinistramente. —
Eu tinha que mudar isso se eu não quisesse enlouquecer. Uma vida sem prazeres
não vale a pena ser vivida. Vocês, humanos, sabem disso muito bem. Vocês sempre
acabam quebrando alguma regra, vocês sempre correm riscos para que, no final,
vocês se beneficiem, para que vocês se sintam bem... Para que vocês se sintam
vivos.
—
E isso justifica os assassinatos!?
—
Ah... — Estmund abriu
um largo e aterrorizante sorriso. —
Mas é claro que sim. Consumir as almas é muito prazeroso, sabe? Porém, eu já
esperava por isso. Agora... Ceifar a vida de alguém praticamente petrificado
pelo pavor, alguém que implorou por misericórdia até o último segundo... — Ele gargalhou. — Isso foi um deleite
inesperado, tão prazeroso quanto consumir uma alma... Talvez até mais
prazeroso!
—
Você é louco...
—
Louco!? Por quê!? Por uma vez na vida em fazer o que eu quero!? Por que colocar
finalmente em primeiro lugar!? Por tentar ser feliz!? Hein!?
Joshua queria ter uma resposta decente, mas nada vinha a
mente. Sua mão direita alcançou o revólver prateado em seu bolso. Ele queria
terminar aquela discussão o mais rapidamente possível. Entretanto, ele se
lembrou que não tinha mais balas na arma. Tudo o que ele poderia fazer com ela
era atacar com uma coronhada. Aquilo não seria uma boa ideia contra alguém que
manejava uma foice.
—
Enfim... — Estmund
continuou, parecendo mais calmo. —
O que você diz não mais importa. Em breve você estará morto. E nem tente fugir
dessa vez. Isso é... —
Ele apontou para trás do rapaz, na direção da ainda inconsciente e acorrentada
Adriana. — A não ser
que você pretenda abandoná-la... Porque, nesse caso, eu te permito que você
tente correr um pouco enquanto eu me divirto com ela.
Joshua abaixou a cabeça e cerrou os punhos.
—
Vá... — O rapaz disse
após hesitar um pouco. —
Eu já não me importo mais...
—
Ora... — Estmund
sorriu. — Toda a sua
jornada foi em vão... Mas não me ouça. Salve a sua pele. Seja humano.
Sobreviva.
O ceifador virou as costas para Joshua. Calmamente,
Estmund andou na direção de Adriana.
Entretanto, ele veio abaixo rapidamente.
O mais rápido que pôde, Joshua sacou o revólver e o bateu
contra as costas do ceifador. Instantaneamente, Estmund caiu como se não
tivesse mais vida. Sua foice caiu para o lado. O rapaz exibiu um sorriso
triunfante no rosto.
—
Maldito! — O ceifador
esbravejou enquanto tirava o rosto do rosto do chão. Lentamente, ele se
levantou e encarou a arma nas mãos de Joshua. —
Um brinquedinho dos seus falecidos amigos paranormais, não? Droga... Ele é
efetivo mesmo sem balas... Porém... Você vai precisar das balas se quiser ter
alguma chance...
Estmund não terminou de falar. Joshua atacou mais uma vez
com uma coronhada. Dessa vez, porém, o golpe acertou o rosto do ceifador.
Com um grito de dor, Estmund cambaleou para trás. Ele
levou a mão ao rosto tentando cobrir a ferida. Entretanto, já era tarde. Joshua
havia visto a marca que mais parecia uma queimadura no rosto do ceifador.
Estmund olhou para a sua foice no chão. Rapidamente, ele
se atirou até ela. Porém, antes que ele a alcançasse, Joshua conseguiu aparecer
na frente do ceifador. Dessa vez, entretanto, o golpe não foi uma simples
coronhada. Friamente, ele segurou a arma contra a face do inimigo que gritava
incontrolavelmente.
Após um instante, porém, Joshua soltou o ceifador. O
rapaz estava sentindo náuseas, com o rosto claramente perturbado. Os gritos de
Estmund não o afetaram. Entretanto, a sua pele, que derretia e se soltava da
face, liberando um odor pútrido, deixou o rapaz horrorizado.
Joshua respirou fundo, tentando se recuperar da visão
aterrorizante do rosto do velho Estmund se desfazendo.
De repente, o rapaz percebeu que os gritos de dor do
ceifador se transformaram em risos estridentes.
Joshua olhou na direção de Estmund. Seu terno cinzento
estava escurecendo, tornando-se negro e, estranhamente, deixando de ser sólido.
O tecido negro parecia inconstante, tremeluzindo como chamas enquanto a carne
podre de seu corpo caia aos poucos.
—
Sabe... — A voz do
ceifador estava distorcida. Entretanto, ele não parecia sofrer com o que
acontecia consigo. —
Esse lugar, Gehenna como alguns chamam, é um labirinto até mesmo para mim. Se
você tivesse escolhido fugir, você poderia ter se salvo, voltado ao seu mundo,
como já fez antes, e tentado o seu melhor para nunca mais cair aqui. Eu nunca
mais poderia encostar um dedo em você, ainda mais porque estariam de olho em
mim. — Enquanto o
cabelo e os pelos da barba iam caindo, chifres de touro iam surgindo do topo de
sua cabeça. — Mas por
causa de uma humana qualquer... Você decidiu morrer. — Seus ossos começaram a se tornar mais largos
e grossos conforme mais pedaços de carne podre se soltavam por entre suas
roupas que, agora, pareciam mais chamas negras que bruxuleavam rapidamente. — Mas não posso reclamar,
sabe? Com você aqui, tenho mais uma presa para eu poder me divertir, mais uma
deliciosa alma para comer e, também, não levanto tanta suspeita já que eu não
vou deixar nenhum sobrevivente, não é mesmo?
Nesse momento, Estmund parou de falar. Ele levou as mãos
ao rosto e, sem hesitar, começou a puxá-lo para frente. Seu crânio foi se
alongando enquanto seus olhos derretiam e escorriam junto com a carne
fumegante. Seus dentes foram se alongando até se transformarem em presas.
Joshua agora olhava sem reação para a criatura em sua
frente. O esqueleto tinha longos e grossos ossos que mais pareciam uma armadura
coberta de sangue. Seu crânio mais parecia com o de um crocodilo agora, com a
diferença dos chifres pontiagudos. Seus olhos eram buracos ocos e negros como
os dos monstros de Gehenna. As chamas negras que envolviam seu corpo se
organizaram na forma de uma longa capa esfarrapada. Sua foice havia voltado
para suas mãos, agora, porém, ela estava diferente: mais longa, com o cabo
irregular e com a lâmina ainda maior e mais afiada.
—
Então, garoto... —
Estmund disse com a voz ainda mais profunda e distorcida. — Está pronto? Pronto para
temer a morte? Pronto para agonizar durante os seus últimos momentos de vida!?
—
Não vou mais fugir. —
Joshua disse secamente.
—
Ha! — Ele exclamou. — Queria que sua amada
estivesse consciente pra ouvir você sendo tão heroico...
Estmund se voltou para trás, na direção de Adriana. Sua
face não tinha como demonstrar a surpresa por ver que a mulher não mais estava lá.
—
Como...? — O
monstruoso ceifador tentava entender aquilo.
Joshua, agora, também olhava para onde sua amada estava.
As correntes estavam intactas no lugar. Ela havia simplesmente desaparecido de
lá, sem explicação aparente. Entretanto, aquilo fez com que o rapaz pudesse
respirar aliviado. Mesmo sem saber o que havia acontecido, nada poderia ser
pior para Adriana do que permanecer.
—
Mais algum amiguinho paranormal te ajudando!? —
Estmund indagou. —
Hein!?
—
Não até onde eu saiba. —
Joshua respondeu calmamente.
—
Droga...! Tenho que achá-la antes que ela escape...
—
Se é que ela já não escapou...
Estmund olhou o rapaz nos olhos. Sua calma naquele
momento era inexplicável para o ceifador.
Com um golpe violento e um urro, Estmund atacou
rapidamente. Sua foice se cravou no peito de Joshua. Pela primeira vez, o
ceifador não via uma de suas vítimas se contorcer de dor ou medo. O rapaz havia
aceitado calmamente a sua morte.
Bruscamente, Estmund puxou sua foice de volta, deixando o
corpo de Joshua cair no chão, sem vida, sem alma.
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