Mais dois dias haviam se tornado História.
Já havia passado das nove da manhã.
Daisuke havia resolvido dar uma volta pelo parque perto
de sua casa. Vestido como sempre, ele acabava se destacando do resto. Afinal, roupa
social não era o que a maioria das pessoas usava para passear num parque.
Entretanto, era assim que ele se sentia confortável, um hábito imposto há muito
tempo que se tornou completamente normal agora.
O sol fraco e o ar refrescante que vinham por entre as
árvores deveriam ter feito bem ao rapaz. Sob condições normais, aquilo teria o
deixado mais disposto do que uma xícara de café. Porém, ele tinha muito em
mente.
A afirmação não se referia apenas ao encontro com
Redmind. Não, aquele jovem já tinha cicatrizes causadas por 2015. Esse ano
deveria ser um começo novo, em uma cidade nova, em um país novo. Uma tela em
branco ao dispor de Daisuke, uma jornada sobre uma estrada pavimentada com as
lições já aprendidas.
Um acordo com um deus? Um poder sobre-humano? Outras
pessoas como ele? Essas não seriam coisas emocionantes para um ano novo? Então
por que ele não conseguia se animar? Por que tudo o que ele conseguia sentir
era raiva do seu passado, relembrando amargamente de suas decepções?
Café. E algo para
ler. É disso que eu preciso.
Com isso em mente, ele voltou para casa para pegar seu
livro de cabeceira e sua carteira, em seguida, fez uma caminhada até uma
cafeteria que ele frequentava mais vezes do que deveria.
Ainda era cedo. Sentado a uma das mesas do lado de fora
do estabelecimento, Daisuke lia seu livro pela enésima vez. Entretanto, não
parecia as palavras, afinal, sua mente não estava focada naquilo.
Calmo por fora, ninguém ousaria dizer que Daisuke era tão
atormentado pela própria mente.
Era uma pena um dia como aqueles estar sendo desperdiçado
pelo rapaz, aparentemente incapaz de aproveitar qualquer coisa.
Porém, aquilo estava para mudar.
Daisuke começou a se sentir desconfortável. Porém, não
sabia dizer o que era exatamente. Não era uma onda súbita de calor ou uma
coceira em alguma parte do corpo. Era algo mais inquietante que, a cada
segundo, piorava, beirando o insuportável.
—
Ah... Oi? — Ela
tentou chamar a atenção de Daisuke.
Ele abaixou o livro e olhou por cima dos óculos. Uma
jovem, que não devia ter muito mais de vinte anos, sorria para o rapaz.
As roupas que ela vestia eram simples, porém, caiam bem
nela. Apesar de bonita, com cabelos loiros cacheados e olhos castanhos escuros,
parecia não chamar muita atenção por onde passava. Claramente era a escolha
dela.
—
Oi... — Disse Daisuke
não muito animado.
—
Então... Tudo bem? —
A garota perguntou.
—
Diga logo o que quer. —
Disse o rapaz rispidamente, lançando um olhar gélido.
—
Ah... — Ela engoliu
em seco. — Claro,
claro! — Soltou uma
risada nervosa. —
Então... O meu nome é Lidia Belrose e, você não vai acreditar, mas... Ah...
A jovem desviou o olhar de Daisuke por um instante e
coçou a nuca.
—
O que foi? —
Perguntou o rapaz.
—
Bem... — Lidia
esboçou um sorriso. —
É que, agora, percebi que o que eu ia falar... Bem... Iria parecer
completamente louco, sabe? Não teria como você acreditar...
—
Não tire conclusões precipitadas. —
Ele puxou uma cadeira do lado dele. —
Sente-se. Acalme-se. Fale. Nessa ordem, ok?
Lidia assentiu e, então, sentou-se.
—
Então... — Ela limpou
a garganta. — Eu...
Sonhei com você... Sabe?
—
Ah... — Daisuke não
parecia muito surpreso. —
E o que eu fazia nesse sonho?
—
Nada! Digo... Exatamente o que você estava fazendo, sabe? Lendo aqui. Reconheci
o lugar do meu sonho por que moro não muito longe daqui e...
—
E por que decidiu vir até mim?
—
Ah... É que só vejo outras pessoas especiais em meus sonhos.
—
Eu? Especial? —Ele
esboçou um sorriso. —
Sinto-me lisonjeado.
—
Bom. — Ela sorriu. — Mas... Você sabe por que
você é especial, não é?
—
Eu poderia citar alguns motivos... Mas, vá logo, me diga o seu porquê.
—
Meu... Um deus veio até você também, não é?
—
Sim. — Daisuke olhou
no fundo dos olhos da garota. —
E é por isso que não entendi por que você decidiu vir até mim.
—
Você não me pareceu do tipo perigoso no meu sonho. Assim, você é alto e parece
forte, mas não parece alguém que tentaria me matar, sabe? Ao contrário de um
outro cara que vi... Só não sei muito bem de onde ele é...
—
Certo... — Ele bebeu
o último gole de café em sua xícara. —
Então... Premonições, foi isso o que você pediu?
—
Bem... É complicado.
—
Claro. — O rapaz
estendeu uma mão. —
Deixe-me entender então. Dê-me sua mão.
—
Ah... Como assim?
—
Confie em mim.
—
Hm... — Ela fez uma
careta. — Bem, eu
disse que você não parece o tipo de cara que tentaria me matar, mas...
—
E você acha que eu faria isso em público?
Lidia olhou em volta. Podiam não haver muitas pessoas na
cafeteria, na calçada ou até mesmo dirigindo seus carros na rua, mas, mesmo que
Daisuke pudesse atirar fogo de suas mãos, não parecia ser muito sábio fazer
aquilo naquela situação.
—
Ah... — Ela soltou
uma risada nervosa. —
Ok. Vamos...
No momento em que ela tocou na palma da mão do rapaz,
Lidia sentiu uma sensação estranha percorrer seu corpo e, pelos próximos
segundos, não sentiu o tempo passar. Foi como se sua mente tivesse sido
congelada por alguns instantes.
Enquanto isso, Daisuke aprendeu tudo o que era possível
sobre Lidia. Hobbies, filmes favoritos, características de outras pessoas que a
irritavam. Nada podia ser escondido, e isso incluía o porquê de cada coisa.
Ele aprendeu que Lidia queria prever o futuro para se
precaver, e precaver aqueles próximos a ela, sobre eventuais infortúnios, algo
que praticamente parecia uma maldição na vida da garota. De assaltos que custaram
celulares e à vez que seu irmão morreu reagindo a um, a jovem sorria para não
sofrer com aquelas lembranças. Era quase como se ela se culpasse por não ter
podido prever aquelas coisas.
A maldição imposta pelo deus dela era a inconveniência das
previsões. Afinal, elas podiam ser sobre qualquer um escolhido por um deus
menor. Além disso, as premonições podiam vinham enquanto Lidia dormia,
atrapalhando seu sono. E no quesito inconveniências, a garota já estava farta,
das pequenas às grandes, Porém, ela continuava forte, sorrindo.
A condição para a maldição chegar ao fim seria matar
alguém. A sangue frio, ela deveria tirar a vida de alguém usando uma faca.
Sabendo que Lidia era o tipo de pessoa pacífica que evitava brigas, aquele era
um requerimento que ela dificilmente cumpriria.
Porém, o deus também sabia que a jovem havia presenciado
a morte do irmão naquele dia fatídico. Sendo que o rapaz havia sido morto por
uma faca, a traumatizada garota raramente chegava perto delas, até mesmo em sua
cozinha. Matar alguém utilizando uma lâmina era algo praticamente impossível de
ser realizado por Lidia.
—
Entendo... — Daisuke
murmurou.
—
Ah... — Lidia piscou
várias vezes rapidamente. —
O quê...?
—
Relaxe. — Ele pediu
num tom de voz calmo.
—
Hm... — Ela sorriu
sem saber o motivo. —
O que aconteceu?
—
Eu posso aprender algumas coisas sobre as outras pessoas assim. — O rapaz apertou
gentilmente a mão de jovem que ele ainda segurava. — Posso entender o que você sente, mesmo que
nem você mesma entenda.
—
Ah... Que poder... Interessante?
—
Sim. Eu prefiro o termo útil, mas interessante não é uma má palavra.
—
Claro. — Ela sorriu
por um instante. — E
por que esse poder? Só por curiosidade?
—
Suponho que sim. Psicologia me fascina. A mente humana me fascina.
—
E ajudar os outros com essas informações...?
—
É um bônus.
—
Ah... — Lidia riu. — Você é o melhor psicólogo
do mundo então, hein?
—
Praticamente isso.
—
Bem... Só espero que você não tenha xeretado muito na minha cabeça.
—
Mas é claro que não. —
Daisuke mentiu e esboçou um sorriso.
—
Ótimo... Gosto de ter minha privacidade. —
Ela sorriu.
—
Mas é claro...
Daisuke parou de falar. Afinal, aquela sensação voltou: a
mesma que sentiu quando Lidia se aproximou, e a garota parecia ter sentido
também.
Os dois se voltaram para a direção de onde um sujeito
encapuzado vinha. Andando calmamente, com a cabeça baixa, ele atravessou a rua,
chegando à calçada da cafeteria. Faíscas, apesar de quase invisíveis, saiam de
seu corpo, percorrendo suas roupas
—
Ele pode sentir a gente também...? —
Indagou Lidia.
—
Algo me diz que sim... —
Daisuke abriu sua carteira e deixou dinheiro o suficiente em cima da mesa para
pagar pelo seu café e deixar uma bela gorjeta para o garçom. —
Vamos.
Lidia não discordou. Com passos apressados, os dois saíram
da cafeteria. Com passos igualmente rápidos, o desconhecido os seguiu. O som
das faíscas, porém, soava cada vez mais alto. O pelo de suas nucas se eriçaram.
—
Melhor começarmos a correr agora... —
Lidia sugeriu timidamente.
Agora, foi Daisuke que não discordou com a garota.
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