segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Conto de Terror 12 - Completo

Dr. Asmodeus


O jovem acordou com abruptamente.
Com um solavanco, ele levantou o tronco, sentando no chão gelado.
Sua respiração estava ofegante e acelerada. Ele soava como se tivesse quase morrido afogado, sendo salvo no último instante.
Suas memórias estavam turvas, fragmentadas. Seu corpo estremecia de dor toda vez que ele inspirava ou expirava. O cheiro pútrido que pairava no ar não melhorava a situação.
O rapaz olhou para frente. Uma porta de barras de ferro bloqueava a passagem, mas permitia a entrada de um pouco de luz. Ele estava, aparentemente, numa cela.
O jovem não fazia ideia de como havia chego ali.
Olha só quem acordou... Disse uma voz atrás dele.
Rapidamente, o jovem se voltou para trás. Ele, então, viu sua interlocutora.
Uma mulher estava sentada no chão com as costas apoiadas numa parede. Sob as sombras, ela permanecia como uma silhueta para o rapaz.
Já estava na dúvida se você estava vivo... Ela disse com a voz arrastada, claramente cansada.
Hm... O jovem limpou a garganta. Quem é você...? E onde estamos...?
Eu me chamo Marie... E estamos num show... Pelo menos, de acordo com Asmodeus... A mulher bufou. Aquele desgraçado...
Ah... Certo... Ele levou uma mão à cabeça. E como eu cheguei aqui?
Se você não sabe, não tem como eu saber. Você estava apagado desde antes de vir para cá?
Eu... Eu não sei.
Não se lembra de nada?
Não muito... Ele balançou a cabeça para os lados. Em seguida, ela começou a latejar. Desculpa...
Hm...
Marie se levantou, andando calmamente até o rapaz.
Ele se espantou com a visão. Com seus olhos arregalados, o rapaz viu detalhadamente Marie. Sob a luz fraca, suas roupas em frangalhos e manchadas de sangue eram difíceis de não se notar. As bandagens, agora amareladas, cobriam braços, pernas e até o topo esquerdo de sua cabeça. As poucas partes de sua pele cor de caramelo que estavam visíveis eram marcadas por cicatrizes. Esse era o caso de sua bochecha esquerda, por exemplo. A marca avermelhada seguia de seus lábios até quase sua orelha esquerda.
Com seu único olho verde descoberto, ela fitava o rapaz atentamente.
O que aconteceu com você...? O jovem indagou chocado.
O show de Asmodeus. Ela respondeu secamente. Foi isso o que aconteceu. Mas... Marie fez uma breve pausa. Quanta a você... Eu não sei dizer...
Como assim?
Olhe pra você mesmo.
Ele não questionou. Olhar de relance para seus braços foi o suficiente para fazer seu coração disparar.
Mas o quê...? Ele arfou.
Toda a superfície de seu corpo estava coberta por faixas. As suas, brancas, pareciam bem recentes.
Lentamente, o rapaz se levantou. Os músculos de suas pernas pareciam queimar com a dor.
Isso pode ter acontecido depois que o Asmodeus brincou com você. Disse Marie sem entusiasmo. Ou, então, antes mesmo de você vir para cá. Enquanto sua memória estiver assim, não temos como saber.
E esse tal de Asmodeus? Ele indagou. O que exatamente ele faz?
Basicamente, ele te tortura pelo entretenimento de uns merdas doentios.
Como assim...?
Ele te arrasta para alguma sala, digamos, privada. Lá, ele vai fazer o que as pessoas pagam para ele fazer. Arrastar a lâmina de uma faca pelo seu corpo... Cortar algumas partes... Queimar outras... Qualquer coisa que quiserem.
Hm... O jovem assustado. E isso aconteceu com você...?
É. Ela apontou para as bandagens no rosto. Ta vendo isso?
Sim...
Não ache que eu tenho um olho aqui m baixo, ok?
Ah... Ok...
Isso sem contar com o que ele fez pelo resto do meu corpo... Com a merda daquela faca... Marie estremeceu. O desgraçado riu o tempo todo... Ele tinha a droga dum sorriso no rosto enquanto passava a ponta daquela faca como se fosse a porra dum pincel, como se eu fosse uma obra de arte dele... Isso porque alguém pedia aquilo. Ela trincou os dentes. Eu ouvia a voz de alguém vindo por uma caixa de som. Algum pau no cu pervertido tava se divertindo vendo aquilo de algum lugar, tenho certeza. A voz daquele bosta me dava essa certeza... E imagino que ele deva ter pagado uma boa grana pra ver aquilo. A mulher bufou. E sabe a pior parte...?
O jovem não conseguia dizer nada. Praticamente paralisado, ele apenas ouvia o que Marie dizia.
Enquanto eu chorava e gritava amordaçada, eu ouvia a voz daquele merda mandando o Asmodeus levar a faca dele até... Ela cerrou os punhos. Até a minha...
Pare! Pediu o rapaz. Eu... Eu já entendi... Disse num tom tristonho. Não precisa dizer mais nada...
Marie olhou diretamente para os olhos do jovem a sua frente. Os dois orbes com íris cor de mel tinham um brilho que ela não via fazia anos.
Seus olhos... Marie murmurou. São gentis...
Hm... Ele pareceu um pouco confuso. E o que isso...?
Não sei como você veio parar aqui. Ela disse rapidamente. Não faz sentido. Todos os que caem aqui são da escória da humanidade, sabe? Pessoas cheias de inimigos ou que, então, se sumirem do mundo não vão fazer falta. Você não faz ideia de quantos ladrões, prostitutas e assassinos estão aqui... Pessoas que vivem cercadas de ódio e violência... Marie balançou a cabeça para os lados. Não sei como alguém inocente como você foi parar nesse inferno...
E eu muito menos... O rapaz bufou.
Sem dizer nada, Marie foi até um canto da sala. De lá, ela voltou com um pedaço de pão e uma garrafa de água que estava pela metade.
Tome. Ela ordenou. Você vai precisar.
O rapaz pegou o pão e a água. Sua boca estava seca. Seu estômago, roncando. Sem questionar Marie, ele deu uma mordida no pão seco e deu um gole na garrafa em seguida.
Vamos ter que pegar mais depois. Ela disse.
Mais? Ele indagou enquanto mastigava um pedaço de pão. Onde?
Lá fora. Marie apontou para a porta da cela. No meio do caos.
Caos?
É. É lá onde a maioria dos capturados ronda.
Por quê?
Porque lá é onde todos são jogados para sobreviver como animais selvagens. Também faz parte do show. Tem câmeras em todos os cantos. Nada transmitido para emissoras de TV, sabe? Uma casta especial de merdas vê essa porra doentia como se fosse um reality show. Ela bufou. Nós só estamos aqui dentro, seguros, porque eu peguei a chave para essa cela. Depois conto esse rolo. Só saiba que, trancados aqui, podemos dormir com tranquilidade.
Você que me trouxe pra cá?
Sim. Depois que te achei jogado, inconsciente, aqui por perto.
Entendi... Bem... Obrigado.
Não agradeça ainda. Apesar do tom sério, ela esboçou um sorriso. Temos que sair daqui ainda. Vai ser útil ter alguém ao meu lado.
Eu posso ajudar. O jovem disse determinado. Mas... O que você quis dizer com sobreviver lá fora? O tal de Asmodeus caça tantos de nós ao mesmo tempo?
Não. Mas, sabe, esse lugar não é bom pra sanidade. Muitos acabam surtando, atacando uns aos outros... Comendo uns aos outros... E raramente da maneira divertida.
Mas... Ele engoliu em seco, incrédulo. Você não disse que tem comida lá fora? Pão e água?
Sim. Até outras coisas. Até armas e remédios. Mas são poucos. Os Executores não trazem o suficiente para todos. Isso, é claro, também faz parte do show.
Ah... Executores? Quem... Quem são esses?
Funcionários do Asmodeus. Não sei quantos são ao todo porque todos se parecem. São uns monstros de mais de dois metros de altura. E eles também carregam alguma arma exageradamente grande. Ela fez uma breve pausa. Eles fazem as entregas de suprimentos e matam qualquer um que fique no caminho deles. Também levam as pessoas para as salas de tortura e as trazem para cá, conosco, nesse inferno.
Então... Eles entram e saem desse lugar a bel prazer? Ele tomou um grande gole de água.
Praticamente... Marie sorriu. Acho que você pensou na mesma coisa que eu.
Não parece muito prático lutar contra eles... Mas... Talvez... Possamos roubar alguma chave, não? Deve ter uma porta em algum lugar para sair daqui.
Tem sim. Sei onde fica. Mas precisamos dessa chave. Ela suspirou. Espero que você seja rápido e consiga me ajudar...
Hm... Também espero, mas... O rapaz olhou para a garrafa praticamente vazia em sua mão. Vou precisar de mais água.
Sem problema.
E algum analgésico cairia bem também.
Hm... Talvez achemos algum nos suprimentos. Mas eu nunca vi...
O rapaz andou até a porta da cela. De lá, ele apenas podia ver a parede cinzenta do outro lado do corredor. O cheiro pútrido do lugar já não o incomodava tanto mais. Calmamente, ele deu mais uma mordida no pão
Ei... Marie apoiou uma mão no ombro dele. Vamos sair daqui vivos se seguirmos o plano. Não se desespere, ok?
Edgar... Ele murmurou.
Oi...?
Edgar. Ele se voltou para ela com um sorriso sincero por entre as ataduras. Acho              que esse é o meu nome...
Edgar... Ela sorriu de volta. Gostei do nome. Agora... Ela colocou uma chave na fechadura e destrancou a porta. Vamos?
Edgar assentiu. A porta foi aberta. Os dois saíram da segurança da sala e adentraram o princípio do caos.
O piso era irregular, quebradiço. O teto escuro segurava eventuais lâmpadas fracas de luz amarela. As paredes cinzentas estavam cobertas de rachaduras e eventuais trepadeiras. Murmúrios, grunhidos e alguns gritos eram ouvidos à distancia, mais claros agora fora da cela.
Hm... O jovem olhava desconfortável para todos os cantos. O que é esse lugar exatamente...?
Isso... Marie trancou a porta atrás deles. É algum tipo de prisão. Ou era. Pelo menos, é o que eu acho. Deve ter sido abandonado por algum motivo...
E o Asmodeus tomou o lugar?
Não sei como. Não sei por quanto. Mas... É. É o que eu acho. Ela suspirou. Mas tenho certeza que a origem desse lugar é um mistério a parte nesse inferno...
Por quê?
Basicamente? Porque estamos debaixo da terra.
Como...?
Ou resolveram não fazer nenhuma janela. Marie cruzou os braços. Já devo ter cruzado esse labirinto inteiro. Pelo menos umas três vezes. Faz tempo que não vejo o sol, ou sinto o vento no rosto... Ela bufou. Sem contar que, às vezes, dá pra ouvir uns sons vindos de cima. Passos, normalmente, descendo até aqui.
Os Executores e Asmodeus?
Isso. E também a Guardiã.
Guardiã?
Sim... Marie fez uma pausa, pensativa. Vamos andando enquanto eu explico, ok?
Ok...
Os dois começaram a andar. Seus passos pareciam ecoar pelo corredor. As vozes pareciam se afastar e se aproximar aleatoriamente. Edgar ficou tenso, estralando os dedos das mãos, esperando que algo fosse pular de algum dos outros corredores. Marie, por outro lado parecia tão calma que havia se perdido em seus pensamentos.
Ah... O rapaz limpou a garganta. Marie?
Hm... Ela voltou o olhar para seu interlocutor. Ah! Arregalou os olhos, espantada. Eu me distraí... Foi mal...
Sem problemas...
Então... A Guardiã... É assim que ela ficou conhecida. Ninguém daqui sabe o nome dela. É o mesmo caso dos Executores. Só deram um nome, sabe? Enfim... Ela está sempre junta do Asmodeus quando ele vem pra cá.
E ela é a mais forte que os Executores?
Em força bruta? Não... Não mesmo. Mas ela veste uma roupa blindada que mais parece uma armadura e, é claro, um fuzil que eu já vi sendo usado.
Então mesmo que alguém tente atacar o Asmodeus à distância...
Ou mesmo em bando. Completou Marie. Não dá. Simplesmente não é possível. A não ser que muita gente se sacrificasse de bom grado pra que outros fossem salvos...
O que não me parece muito provável...
Bem, é praticamente cada um por si aqui. É foda ficar em um grupo numa situação como essa, sabe? Se a falta de confiança não te separa, algo vai acontecer pra matar teu companheiro...
Experiência própria?
Marie parou de andar abruptamente. Edgar fez o mesmo.
É... Ela disse baixo, cabisbaixa. Experiência própria...
Hm... Edgar se arrependeu de feito a pergunta. Ei... Ele disse num tom ainda mais gentil do que o de costume. Desculpa. Não precisa falar nada se te incomoda, ok? Eu só...
O rapaz não conseguiu terminar de falar.
Quase como um animal selvagem, uma pessoa pulou em suas costas, levando seus dedos ao pescoço de Edgar.
Assustado, o rapaz quase perdeu o equilíbrio. Ele ficou sem saber o que fazer até sentir a respiração da pessoa em seu pescoço. O bafo quente fez com que um calafrio percorresse sua espinha. Edgar podia quase podia sentir os dentes de seu adversário se aproximando de sua pele.
Seu corpo ficou agitado. Rapidamente, o rapaz se jogou de costas contra a parede mais próxima. Seu inimigo, entretanto, não caiu. Seus dedos afiados agarraram o pescoço de Edgar firmemente.
Então, o rapaz viu algo passar pelo lado de sua cabeça como um raio. O calcanhar de Marie acertou a face da pessoa que estava nas costas de Edgar. O chute foi forte o suficiente para derrubar o agressor e deixá-lo inconsciente.
Ah...! O jovem tentou gritar algo, porém, sua respiração arfante não o permitiu.
Pronto, pronto... Marie esboçou um sorriso. Já pode me agradecer.
Hm... Edgar limpou a garganta. Bem... Obrigado.
Não foi nada. Mas, sabe... Tente não surtar tanto da próxima vez...
Um pouco difícil manter a calma assim, não acha? Com alguém pulando nas suas costas e tentando te morder?
Eu falei que tinham canibais e outras pessoas loucas aqui, não avisei?
Sim, mas... Edgar olhou na direção de seu agressor. Hm...
No chão, o rapaz viu claramente a pessoa que havia o atacado.
Não passava de um garoto. Não devia ter mais de catorze anos. Suas roupas também estavam em frangalhos. Seu corpo era magro, ossudo. Sua pele, doentiamente pálida, estava coberta por cicatrizes e ferimentos que pareciam mais recentes e avermelhados. Uma expressão pacífica estava em seu rosto agora, como se fosse a primeira vez que dormisse bem em muito tempo.
Não sabia que traziam crianças pra cá... Murmurou Edgar.
Mas trazem. Marie disse secamente. São raras as vezes, mas já cheguei a ver outras. Umas até menores. E garotas não escapam dessa regra. Ela bufou e olhou melancolicamente para o garoto. Eu não queria machucá-lo, mas era a solução mais rápida. Espero que ele volte a si quando acordar...
E você acha que dá pra deixar ele aqui? Acha que vão deixar ele vivo?
Eu já tenho gente o suficiente pra manter viva, ok? Não quero que o garoto morra, mas não quero ficar zanzando por aí arrastando um moleque apagado. Isso vai nos atrasar. Além de nos deixar vulneráveis. Até mesmo voltar pra minha cela agora, com o pirralho... Bem, talvez não voltemos.
Então... Edgar hesitou um pouco. Deveríamos deixar ele vivo?
Hm...? Ela ergueu uma sobrancelha. Você quer matá-lo?
Se for para ele ter um fim pacífico... Acho melhor...
Marie não disse mais nada. Ela simplesmente puxou uma faca que deixava guardada no bolso de trás da calça e apontou para Edgar.
Vamos. Pegue. Ela girou a lâmina entre os dedos, apontando agora o cabo da arma para o rapaz. Se quiser matar, mate. Eu não faço esse tipo de coisa.
Hm... Edgar pegou a faca após hesitar por um instante. Então... Você nunca matou ninguém?
Nunca. Nem aqui, nem lá fora. Não me importo de bater, esfaquear ou atirar em alguém. Você quebra uns ossos, deixa umas cicatrizes e faz algum filho da puta pensar duas vezes antes de mexer contigo. Mas eu nunca tirei uma vida. E pretendo continuar assim.
Entendo. Edgar disse calmamente. Mas... Isso deve ter te dado problemas, não? Aqui em baixo, pelo menos...
É... Foi essa a experiência própria que eu falei.
O que aconteceu?
De maneira resumida... Ela bufou. Eu não tive coragem de ir pra cima do Asmodeus.
Você tinha uma plano de ataque contra o Asmodeus!?
Eu não. Minha amiga tinha. Eva era o nome dela. Aquela idiota... Marie suspirou. Nunca vi ninguém tão determinada. Ela e o Hector, o último membro do nosso trio feliz, resolveram atacar Asmodeus e a Guardiã de surpresa. E a pior parte? Quase deu certo...
Mas você não foi junto com eles...
Talvez nem todos tivessem sobrevivido, sabe? Talvez só um de nós saísse vivo e os dois estariam mortos agora. Sem Asmodeus, esse inferno teria acabado.
Mas você não conseguiria matá-lo.
Talvez eu pudesse ter rendido aquele merda. Talvez Eva ou Hector pudesse ter dado o último ataque, sabe? Se eles quisessem matar, ótimo. Mas eu que não pretendia manchar minhas mãos de sangue. Mas... Mas... Ela engoliu em seco. O olhar de Asmodeus para mim no momento do ataque... Merda... Eu não consegui fazer nada. Fiquei lá, tremendo, paralisada de medo enquanto meus amigos morriam. Aí o que eu faço? Fujo... Pra bem longe dali... Longe de Asmodeus... E longe da vergonha... Marie olhou determinada para Edgar. Mas... Tenha certeza que isso não vai acontecer de novo. Da próxima vez que eu ver aquele psicopata de merda zanzando por esses corredores... Ele não vai sair vivo. Nem que eu morra junto.
Edgar olhou para a faca em sua mão. Em seguida, para o garoto no chão e, finalmente, para Marie.
Sabe... Ele abaixou a arma, ainda a segurando com a mão esquerda. Não vou matar ninguém também. A não ser que minha vida ou a sua esteja em risco. Acho que eu devia ser assim lá fora, antes de perder a memória... O rapaz sorriu. Então, vou evitar manchar as mãos de sangue também.
Hm... Ela sorriu. Tudo bem. Vamos em frente. Já ficamos parados tempo demais.
Certo. Temos um Executor para achar.
Marie assentiu.
Porém, antes de eles voltarem a andar, passos soaram próximos da dupla.
Os dois ficaram atentos.
Não sabiam quantos estavam vindo. Talvez três ou quatro, mas não era certo. A única certeza era de que um deles tinha passos pesados que ecoavam nos corredores.
Marie tinha um olhar determinado no rosto. Edgar segurava o punho da faca com firmeza.
Se corrermos... Ela disse para o rapaz. Vamos atrair atenção demais. Evite correr sempre que possível, ok?
Edgar assentiu. Suas mãos começavam a suar. Seu coração palpitava. Sua respiração acelerava.
Então, de um corredor, o quarteto surgiu como se saíssem das sombras.
Olha só... Um deles disse.
O homem que havia acabado de falar era pálido, alto, magro e tinha o cabelo castanho desgrenhado.
Não nos ouviram chegando, é? Uma mulher atrás dele riu.
Ela era um pouco mais baixa que ele, além de ser tão magra e pálida quanto. Seus cabelos negros ensebados escorriam pela testa e cobriam seu olho esquerdo.
Atrás dos dois, haviam os outros dois integrantes do quarteto.
Um homem gigantesco sorria. A montanha de músculos e gordura devia ter mais de dois metros de altura. Sua pele era escura e, sua cabeça, calva.
Nenhum dos três primeiros tinha ferimentos sérios ou ataduras no corpo, apenas os rostos sujos e as roupas um tanto quanto danificadas.
O quarto membro, entretanto, era diferente. O homem de estatura média tinha o corpo enfaixado quase por completo, assim, assemelhando-se ao próprio Edgar.
Ouvimos vocês chegando. Marie respondeu secamente. Teríamos que ser surdos pra não ouvir os passos desse daí...
O sorriso do gigante ficou mais largo.
O grandão aqui pode não ser muito furtivo... Concordou a mulher de cabelos escuros. Mas vai matar e comer vocês se o deixarmos.
Se ele nos alcançar, você quis dizer. Ela retrucou.
Você fala demais. O homem esguio falou um pouco irritado. Ainda mais... Ele sacou uma faca do bolso da calça. Pra alguém que está desarmada...
Chefe... O gigante disse com sua voz grave e, então, apontou para Edgar. Aquele ali ta armado...
O magricela, líder do bando, olhou friamente para Edgar.
O jovem, apesar de manejar uma faca, tremia. Suas mãos suavam. Suas pernas estavam bambas. A própria ideia de ter que usar aquela arma parecia o fazer sentir medo.
Ora... O magrelo sorriu maliciosamente. O que adianta ele ter uma faca se nem vai conseguir usá-la? Ele olhou diretamente nos olhos do rapaz e riu. Hein? O que você vai fazer? Você parece que vai começar a chorar e chamar pela sua mãe...
O gigante e a mulher começaram a rir junto com o chefe. O homem enfaixado, porém, continuava indiferente a tudo, mantendo-se de braços cruzados e com o corpo encostado numa parede.
Edgar... Marie o chamou o mais calmamente que pôde. Tente manter a calma, ok? Eles...
Antes que ela pudesse terminar de falar, o líder do grupo avançou contra Edgar.
O homem tinha um sorriso sinistro no rosto. Ele mataria sem hesitar como já tinha feito tantas vezes. A ponta de sua faca encontraria a garganta de sua vítima.
Marie gritou por Edgar. Após isso, parecia que todo o lugar havia se silenciado após o som de uma faca cortando através de carne. Duas vezes seguidas.
Uma faca caiu no chão. Sangue começou a pingar em seguida.
Espantados, Marie e o bando do homem esguio ainda não acreditavam no que haviam visto.
O homem magrelo caiu no chão, incapaz de proferir suas últimas palavras com sua garganta dilacerada. Sangue não só por ela, mas também pelo seu pulso direito, aquele que manejava a faca.
Mesmo com a cena acontecendo bem diante de seus olhos, ninguém parecia conseguir acreditar que o jovem que tremia a pouco havia desarmado e, em seguida, matado alguém com tamanha destreza.
Edgar? Marie o chamou.
Ele, entretanto, não respondeu. O rapaz parecia ainda mais perplexo do que ela.
Chefe...? O rosto da mulher foi tomado pela tristeza. Lentamente, ela, a beira das lágrimas, aproximou-se do corpo caído dele e, então, olhou para Edgar. Seu semblante rapidamente se contorceu, formando um sorriso macabro. Filho da puta... Você ta fudido...
A mulher trincou os dentes. Sua mão esquerda deslizou até a faca no chão. Armada, ela se levantou como se fosse dar um bote. Seu grito de dor veio logo em seguida.
Edgar atacou antes que a mulher. Sua faca atravessou o antebraço esquerdo de sua adversária, fazendo-a derrubar sua faca.
Parecendo horrorizado, Edgar puxou sua faca. O sangue, então, verteu do braço da mulher. Seus gritos angustiantes foram trazidos a um fim quando Marie acertou seu cotovelo em sua face.
Ah... Edgar olhou para a aliada. Eu... Eu não sei...
Aparentemente... Começou Marie. Você sabe manejar uma faca, mesmo que não se lembre...
Mas... Eu não queria matar ninguém... Eu...
Um grito de raiva interrompeu a fala e o pensamento de Edgar.
O gigante olhava irritado para a dupla.
Vocês... Ele grunhiu. Vocês vão pagar...
Com seus passos pesados, o colosso avançou contra Edgar e Marie.
Tente fazer mais uma vez essa sua magia, ok? Ela pediu para Edgar.
Sem responder, ele engoliu em seco.
No primeiro soco do gigante, Edgar havia conseguido abrir um corte que ia do pulso ao cotovelo de seu inimigo.
Com um grito retumbante de dor, ele caiu de joelhos, tentando inutilmente o sangramento pondo a outra mão sobre a ferida.
Antes que Edgar pudesse se sentir mal, um som alto soou e o gigante caiu inconsciente no chão.
Edgar e Marie olharam, espantados, para o homem enfaixado que havia derrubado o companheiro com um pé de cabra.
Antes de qualquer outra coisa... Ele disse. Meu nome é Dylan. Prazer em conhecê-los.
Marie. Ela se apresentou. E este é...
Edgar. Completou Dylan. Ouvi você chamando-o pelo nome umas vezes agora pouco. Ele olhou para o rapaz dos pés a cabeça. E eu achando que eu tinha sido o único a me foder tanto assim nas mãos do Asmodeus... Como foi...?
Ele não se lembra. Marie respondeu secamente. Perdeu a memória. E você? Não pretende falar nada sobre os seus companheiros? Ela perguntou impacientemente.
Ah... Entendo... Ele limpou a garganta. Seu olhar misterioso e o rosto enfaixado impossibilitavam ler suas emoções quando ele queria. Então... O ditado se não pode com eles, junte-se a eles se aplica bem a situação que eu estava. Para não morrer nas mãos daqueles desgraçados, eu me juntei a eles. Porém, eu só estava à espera de uma oportunidade como essa pra me livrar deles.
Então você os traiu? Indagou Edgar.
De certa maneira, sim. Dylan sorriu. Sei que não sou digno de confiança. Mas não me importo com isso também. Se possível, prefiro continuar minha jornada aqui solo... Por ora, sabe?
Você fala como se isso fosse algum tipo de aventura... murmurou Marie.
Mas é. Ele respondeu. Mas não estou aqui pela emoção e o risco de morte. Estou aqui à procura de alguém. Tenho esperança de conseguir resgatá-la...
Então você veio aqui por vontade própria? Perguntou Edgar.
Ele assentiu.
Você é louco. Afirmou Marie.
Bem, eu não esperava ser pego pelo Asmodeus logo no meu primeiro dia. Dylan esboçou um sorriso. Mas... Fazer o quê? Acontece...
Ela deve ser bem importante. Disse o rapaz.
Ah... Ele sorriu. Você nem faz ideia.
Que fofo. Marie zombou.
Ei, ei... Dylan cruzou os braços. Nem começa. Ele estralou os dedos das mãos, pensativo. Mas, então... Eu tenho que seguir meu caminho. E vocês, o de vocês, certo?
Sim. Ela respondeu secamente.
Ótimo. Ele olhou para Edgar. Tenho algo de familiar em você... Uma certa aura... Bufou. Enfim... Você... Não tenha medo de matar,ok? Não nesse lugar, pelo menos. A escória da humanidade está aqui. Nunca se esqueça disso. Dylan apontou para trás da dupla, para o garoto inconsciente. Aquele ali deve ter feito algo para merecer cair pra cá, tenha certeza. E o meu bando estava atrás dele. Falaram que ele deveria ser delicioso. Estavam caçando ele já fazia um tempo até... Sorriu. Mas, enfim... Se tudo der certo, nós nunca mais nos veremos. Não aqui, pelo menos... Adeus!
Com um aceno de mão, Dylan se despediu, dando as costas para os dois e seguindo pelo corredor do qual ele havia surgido antes.
Marie... Edgar a chamou baixo.
Sim?
Você... Você não acha que eu sou um monstro, acha? Ele riu sem jeito. Eu... Eu matei aquelas pessoas... E foi tão fácil... Tão natural... Eu... Eu devia ser um assassino antes de vir pra cá, não é? Faz sentido, pelo menos. Eu sou um lixo de pessoa...
Edgar... Ela apoiou uma mão no ombro dele e o olhou no fundo dos olhos. Não importa o que você fazia antes... Você pode mudar de agora em diante, ok? Além do mais... Se você não soubesse lutar tão bem... Nós estaríamos mortos agora. Então... Não se envergonhe, certo?
O rapaz assentiu, claramente desconfortável.
Marie percebeu que o rapaz ainda não estava bem, mas sorriu mesmo assim. O que ela não sabia era o que Edgar estava pensando.
Dylan. O jovem havia realmente conhecido o homem enfaixado. As memórias voltavam lentamente a sua cabeça. O rosto intacto dele parecia nítido na mente de Edgar, mas não muito mais que isso. Tudo ainda eram flashes confusos e sem nexo na maior parte do tempo.
Será que Dylan se lembrava de Edgar, porém, preferiu não dizer nada? Qual era a ligação entre os dois? Haveria uma rixa entre os dois?
Enquanto a cabeça de Edgar enfrentava uma tempestade de perguntas sem respostas, ele seguia Marie pelos corredores escuros daquele inferno com a companhia da sinfonia de murmúrios, gemidos e urros que os cercavam.
Ei! Marie exclamou. Edgar!
O rapaz parou de andar e balançou a cabeça para os lados. Uma expressão de surpresa, com olhos bem arregalados, estava estampada em seu rosto.
Hm? Edgar limpou a garganta. O que foi?
Já estamos andando em silêncio há faz uns minutos...
Ah... Sério? Ele coçou a nuca, parecendo um pouco aturdido ainda.
Sério.
Ela voltou a andar. Ele acompanhou.
Edgar... A voz d Marie se tornou, repentinamente, suave. Muitas perguntas sem respostas ainda, não é?
É... O rapaz esboçou um sorriso. Mas não se preocupe. As memórias estão voltando... Aos poucos, não muito claras ainda, mas estão voltando.
Isso é bom. Ela sorriu.
Edgar percebeu, então, o porquê de Marie o tirar de seu transe.
Ela parecia legitimamente preocupada com o rapaz. Edgar não questionaria isso. Não existiam motivos aparentes para tal.
Entretanto, Edgar percebeu que, por mais forte e valente que Marie fosse, ela estava nervosa. Eles poderiam morrer de um instante para o outro naquele lugar. Sem a ajuda dela, ele estaria morto. Porém, sem a ajuda dele, ela também estaria morta. Um precisava do outro naquele inferno. E não só para lutarem lado a lado. Um precisava confortar o outro. E apenas Marie cuidava de Edgar nesse sentido.
Hm... O rapaz estralou os dedos. Então... Eu não me lembro do que eu fazia antes d vir pra cá... Mas e você? O que fazia?
Eu? Marie esboçou um sorriso. Mulher da vida.
Ah... Surpreso, ele hesitou um pouco. Sério?
Bem... Sei que pode não parecer agora... Ela botou ênfase na última palavra. Mas... É. Sou. Ou fui. Não sei se vou voltar pra essa vida quando sair daqui. Se sairmos daqui...
Vamos sair daqui. Edgar disse determinado.
Hm... Ela sorriu. Enfim... Não sei se volto pra minha velha vida. Talvez possamos seguir um novo caminho assim que sairmos daqui, não? Uma nova chance após uma experiência traumática... Mas, é claro, tenho assuntos pra resolver antes de qualquer mudança radical.
Como o quê?
Ajudar minhas amigas.
Companheiras de trabalho?
Sim... Nós tomávamos conta uma das outras, sabe? O mundo não é um lugar gentil para o nosso tipo. Mesmo não matando ou roubando ninguém, somos vistas como parte da escória. Olhares de nojo nos julgam todo dia. Era como se fossemos lixo, animais doentes a beira da morte. Ela trincou os dentes. Mas é claro que tinham aqueles que aceitavam os nossos serviços. E, puta merda, eles conseguiam ser piores que os que odiavam a gente. Homens podres por dentro, alcoólatras que haviam abandonado suas famílias, ratos de merda que traíam as esposas, filhos da puta que sentiam prazer em nos ver sentir dor e sendo humilhadas. Marie bufou. Era por causa desse último tipo que nos tínhamos que nos proteger. Isso sem contar com os bostas que nos atacavam por não nos considerarem humanas, ou aquelas párias que queriam nos tornar propriedades deles para nos explorarem.
Mas, mesmo assim, você nunca matou ninguém?
Foi como eu disse antes... Eu ensinava algumas lições da maneira difícil, mas não mais que isso. E minhas amigas seguiam meu exemplo. Já éramos odiadas sem matar ou roubar... Imagina, então, se fizéssemos essas merdas? Ela riu baixo. Seríamos caçadas, certeza.
Entendo... Edgar disse num tom preocupado. E... Você pretende tirar as suas amigas da sua cidade?
Sim. Pelo menos, pra fora do canto de merda onde a gente fica...
E como você pretende fazer isso?
Não sei. Não pensei nisso ainda. Vou me preocupar com isso assim que sairmos daqui. Ela sorriu. Ok?
Edgar sorriu de volta e, em seguida assentiu.
De repente, um grito agudo soou. O som de algo como o de uma guilhotina veio em seguida.
Marie pareceu tensa por uma fração de segundos e, então, abriu um largo sorriso.
Bem... Ela respirou fundo. Acho que achamos um deles.
Isso... Edgar limpou a garganta. Isso foi um Executor.
É... Vamos!
O rapaz, tenso, seguiu Marie até o corredor de onde os sons vieram.
Alguns murmúrios vieram. Nada inteligível para os dois. Em seguida, mais um som de guilhotina.
Após alguns passos, eles viram a cena.
Mesmo já tendo visto mais de uma vez, Marie ficou apreensiva com a visão. Edgar, então, sentiu o próprio estômago se revirar.
Haviam três corpos no corredor. Apenas um com vida.
Um havia sido decapitado. A força do golpe arremessou a cabeça para longe do resto do corpo.
O outro havia, surpreendentemente, sofrido uma morte ainda mais brutal. O corpo havia sido cortado ao meio na vertical. Um único golpe havia sido o responsável pela proeza.
Pisando nas entranhas derramadas de uma de suas vítimas, o Executor se assemelhava mais a um monstro ou uma máquina do que um humano.
Seu corpo alto era coberto pelo o que parecia ser uma armadura respingada de sangue. A roupa blindada, negra como piche, poderia protegê-lo de algumas balas. Facas, então, seriam ainda menos úteis.
Apoiada no chão estava sua arma. Sua mão direita segurava o cabo do gigantesco e brutal machado. Feito de aço negro, quase toda a sua superfície gasta estava tingida de rubro. A lâmina, entretanto, estava perfeitamente afiada, mais letal do que qualquer arma que Edgar já havia visto. Afinal, nenhuma havia despertado tamanho mal estar tão rapidamente.
As pernas do rapaz tremiam, bem como as suas mãos suadas. Sua respiração arfava incessantemente. Seu coração palpitava, parecendo que iria pular para fora de seu peito.
Sem esforço, o Executor levantou a arma ensanguentada e a guardou junto às costas.
O tempo parecia passar lentamente enquanto o gigante marchava pesadamente para longe, desaparecendo nas sombras, deixando naquele corredor as marcas de seu massacre.
Edgar sentiu um puxão em seu braço.
Vamos! Marie o chamou, trazendo-o de volta à realidade. Não podemos perdê-lo de vista. Ela abriu um sorriso, apesar de estar quase tão nervosa quanto o rapaz. Temos uma chave para pegar.
Apesar de relutante, Edgar assentiu. Ele sabia que não podia fugir da missão.
Esgueirando-se, a dupla avançou.
A visão, agora ainda mais clara, dos corpos destroçados a sua frente fez o rapaz engolir em seco. Era óbvio que ele não queria terminar daquele jeito. Ele nem mesmo desejava que um inimigo tivesse um fim daqueles. Talvez nem mesmo Asmodeus merecesse uma morte tão brutal.
Ele deve ter feito uma entrega. Murmurou Marie, de repente, enquanto avançavam furtivamente.
Está falando do Executor? Perguntou o jovem no mesmo tom.
Sim. Uma caixa. Ou talvez mais um desgraçado pra se juntar a gente.
Como você sabe?
Repara só pro desgraçado...
O Executor andava lentamente. Seus passos eram pesados e sem ritmo, um pouco desengonçado até. Não parecia carregar nada fora o machado nas costas. Logo, seus braços estavam desocupados, balançando pra frente e pra trás.
Ele... Não me parece muito preocupado. Admitiu Edgar.
Exato. Ela bufou. Seja lá o que for que ele tinha pra fazer, já foi feito. Andando assim, inclusive, ele nos alerta da presença dele. Caso andemos, podemos evitar um confronto com ele. E é claro que me refiro a todos nós que estamos nesse inferno...
E as pessoas de antes? Ele não pareceu muito piedoso em relação a elas...
Elas devem ter atacado antes. E foram descuidadas, pra dizer o mínimo. Marie esboçou um sorriso para Edgar. Nada disso vai acontecer com a gente.
Se formos cuidadosos... Ele murmurou sem ânimo.
Seremos.
Nesse momento, os dois resolveram parar de falar.
A cada passo, a dupla de aproximava mais e mais do Executor. Apesar de estarem andando agachados, tentando fazer o mínimo de ruído possível, a passada lenta de seu alvo os permitia se aproximar sem dificuldade.
Por qualquer canto onde passavam, apenas os três estavam presentes. Apenas Marie e Edgar tinham a coragem de seguir friamente um Executor. Os que não eram desesperados o suficiente para atacá-lo de frente simplesmente saiam de seu caminho.
A respiração dos dois ficou pesada. Seus corações palpitavam. O executor estava a não mais de dois metros de distância de Marie, que seguia na frente de Edgar.
Ambos podiam ver claramente o molho de chaves preso no cinto do Executor. Enferrujadas, escuras, nunca em algum momento tiveram algum tipo de brilho. Entretanto, os olhos de Marie brilhavam mais e mais a cada instante. Sua liberdade estava tão próxima agora.
Edgar... Ela chamou o rapaz, murmurando ainda mais baixo do que antes. A faca. Me empresta ela.
Hm?
Acho mais fácil cortar uma parte do cinto dele pra pegar a chave. Se eu tentar só puxar, talvez ele perceba.
Ah... Verdade.
Edgar estendeu sua mão que segurava a faca para Marie. Entretanto, ele mantinha o punho cerrado.
Ah... Edgar?
Você não precisa entregar a faca.
O rapaz parou de andar, mal respirando.
Fique com a faca. Você é forte com ela. Sempre foi. Sempre será.
Edgar engoliu em seco. Ele olhou para Maire. Ela retribuiu com um misto de preocupação e confusão em seus olhos.
Você não pode ouvir...? Ele indagou.
Ouvir? Ela ergueu uma sobrancelha. O quê? Os passos do Executor se afastando? Vamos logo...
Você poderia matá-la. Você poderia matar o Executor até. Ele é só um. E não usa nenhuma arma de fogo. Você só precisaria correr até ele. Você o faria sangrar e sentir medo. Você se divertiria com isso...
Edgar levou uma mão na cabeça que, agora, latejava de dor. Era óbvio que só ele ouvia aquela voz. Mas de quem era? E por que ela soava tão familiar?
Foi aí que ele se tocou. A voz já tinha soado em sua cabeça. Porém, ela nunca havia dito algo tão claro, com tanto nexo, quanto agora.
O rapaz sentiu uma mão tocando seu ombro gentilmente.
Edgar? Marie o chamou preocupada. O que foi?
Ah... Ele limpou a garganta. Nada... Nada mesmo.
Não pareceu nada pra mim.
São só... Algumas memórias... Voltando, sabe? Nada muito claro ainda... Infelizmente...
Você pode continuar andando?
Claro...
Então... Vamos? Caso contrário, vamos perder o Executor.
Edgar assentiu e, em seguida, entregou a faca para Marie.
Você vai se arrepender dessa decisão. E por quê? Só para agradar essa daí, seguindo as ordens dela como um bom cachorrinho? Ou é por que você sabe que, sem a faca em suas mãos, você não vai matar mais ninguém?
O jovem engoliu em seco. É claro que a voz estava certa. De fato, as duas suposições estavam corretas. Afinal, se a voz vinha de sua cabeça, era seu subconsciente falando, certo? Como poderia estar errado então?
A dupla voltou a andar, esgueirando-se, dando passos mais rápidos do que antes.
O Executor havia saído do campo de visão deles. Porém, num lugar tão silencioso, não era difícil achar o gigante pelo som de seus passos.
Como planejado, não demorou para Marie e Edgar novamente até seu alvo.
Desta vez, porém, era ela que manejava a faca.
Passo a passo, eles se aproximaram do Executor. Suas respirações praticamente se silenciaram quando Maire empunhou a arma.
Ambas as mãos. Ela teria que usar as duas num movimento bem calculado. A faca uma parte do cinto. As chaves cairiam. A mão livre as pegariam antes de acertarem o chão.
Edgar parou de andar, apreensivo. Marie respirou fundo e parou por um segundo. O Executor se distanciou dela por um passo. Então, quase como uma cobra dando um bote, ela avançou.
Seus pés tocaram o chão levemente, com certa graça até. Com um golpe com precisão cirúrgica, ela cortou o cinto. Sem um ruído, as chaves se soltaram e, então, foram apanhadas.
Edgar arregalou os olhos, surpreso. Marie, com seu olho remanescente, parecia ainda mais surpresa. Afinal, as chaves foram apanhadas pelo próprio Executor.
Não pensem que eu não estava ouvindo vocês se aproximando de mim... Ele riu. Sua voz grave, abafada pelo capacete, aprecia ainda mais ameaçadora. Agora... Sacou o machado das costas. O que vocês vão fazer?
Edgar se levantou. Porém, não fez mais que isso. Suas pernas tremiam enquanto o medo o dominava.
Não estaria assim se estivesse armado, tenho certeza.
Mas uma vez, o jovem não podia discutir com a voz.
Hm... Marie respirou fundo. Achei que você ia me matar... Sabe? Sem mais nem menos?
Não esqueça que tudo isso é um show, minha cara. Mesmo num tom calmo, a voz do Executor não era nem um pouco amistosa. E meu salário depende desse show.
Entendo... Bruscamente, ela se levantou, dando um salto para trás, distanciando-se um pouco de seu inimigo. Então... Marie abriu um sorriso discreto e segurou o cabo da faca em sua mão com firmeza. Pra todos filhos da puta assistindo... Vamos fazer um show do caralho!
Ah... O Executor riu. Assim que é bom!
Ele atacou.  Com uma cambalhota, Marie passou por debaixo do machado que teria acertado suas costelas. Com um passo rápido, ela se aproximou do oponente e, sem hesitar, atacou.
A faca, entretanto, causou apenas um corte superficial na blindagem do Executor.
O gigante riu de novo. Com o alvo próximo dele, o Executor resolveu atacar com o pomo do machado. Ágil, Marie conseguiu se esquivar para direita.
Entretanto, antes que ela pudesse contra atacar, o colosso atacou mais uma vez. Dessa vez, porém, não foi com o machado. Rapidamente, ele deu um chute que, por milímetros, não acertou Marie em cheio no abdômen.
Antes que ela pudesse respirar aliada, o Executor avançou e, dessa vez, desferiu três ataques. Pela vertical, pela horizontal e, por fim, mais uma vez vertical.
Marie podia ver a lâmina do machado se aproximando dela a cada golpe. Ela não poderia escapar para sempre. Uma hora, ele seria atingida.
Ela tentou se manter calma. Porém, não havia muito para se fazer. Marie sabia que não conseguiria passar pela blindagem do Executor, não aquela faca, pelo menos. Continuar desviando até alguma ideia melhor surgir seria o jeito.
O Executor parecia se divertir com cada golpe que desferia. Marie era uma presa que lutava para se manter viva e ele gostava disso. De fato, fazia muito tempo que não tinha um desafio desses.
A cada golpe que Marie desviava, seu coração batia mais rápido. Ela sentia as pernas tremendo, podendo fraquejar a qualquer instante. O suor em suas mãos faria a faca cair em breve. Aí sim ela estaria perdida.
Vai ficar só fugindo? Reclamou o Executor. Após o que pareceram ser minutos fazendo a mesma coisa, ele estava se cansando. Achei que você faria essa luta valer a pena.
Pelo visto, você estava errado... Marie arfou. Desculpe decepcioná-lo... Porém... Ela esboçou um sorriso. Talvez meu amigo te divirta um pouco mais.
Rapidamente, Marie arremessou a faca, passando rente no capacete de seu inimigo, mas não o acertando. Afinal, o Executor não era mais o seu alvo.
A lâmina atravessou o ar e caiu bem aos pés de Edgar.
Saindo de um transe, o rapaz, que estava praticamente petrificado, abaixou-se para pegar a faca quase instintivamente.
Agora armado, ele olhou para o Executor.
Tentei dar uma cansada nele. Afirmou Marie com um leve sorriso no rosto. Agora ta na hora de você fazer o que sabe... E nem pense em se segurar.
Ora... O Executor gargalhou. Esse frangote aí? Ele apontou o machado para Edgar. Isso eu quero ver... Venha!
Tudo mundo quer que você vá e se divirta. Por que decepcioná-los? Só vá... Corra até sua presa com um sorriso no rosto como eu te disse...
Edgar engoliu em seco e, em seguida respirou fundo, cerrando os olhos. Ele segurou o cabo da faca com força em suas mãos.
Rapidamente, seus olhos se abriram, brilhando cheios de determinação. Um leve sorriso apareceu em sua face. Então, ele correu contra o Executor.
O gigante atacou. Seu machado a cintura de Edgar. Um golpe seria o suficiente para cortar o rapaz em dois, deixando-o vivo, porém, sem condições de fugir. Aquilo seria o suficiente para deixar Marie aterrorizada e fazê-la baixar a guarda. Sem muito esforço, o Executor mataria suas duas presas.
Entretanto, não foi isso o que ocorreu.
Edgar parecia ter previsto o exato momento do ataque do inimigo. Com uma agilidade quase desumana, ele se abaixou, deslizando por baixo da lâmina do machado e, em seguida, passando por entre as pernas do Executor.
O colosso nem teve tempo de reagir à surpresa.
Edgar, que nem mesmo havia se levantado do chão, atacou. Sua faca, então, acertou atrás do joelho direito do Executor.
O gigante urrou de dor enquanto o sangue começava a verter.
Bruscamente, o rapaz puxou sua faca da carne do inimigo que, mais uma vez, gritou e, então, caiu ajoelhado, derrubando o grandioso machado que provocou um estrondo ao se chocar com o chão.
Edgar se levantou com um leve sorriso no rosto. Em seguida, levou uma mão levemente ao capacete do adversário, puxando o visor em sua direção, forçando-o a olhar nos olhos. Então, ele atacou mais uma vez.
A faca quebrou o vidro sem dificuldades. Pequenos cacos caíram, revelando os olhos cheios de medo do Executor. A lâmina da faca parecia brilhar agora.
Edgar sentiu um ímpeto de sorrir. Porém, conteve-se. No final, uma expressão preocupada surgiu em seu rosto e, então, deixou a faca cair de sua mão e deu um passo para trás.
A respiração do jovem ficou pesada, acelerada, como se estivesse recuperando o fôlego após correr por sua vida.
Por que você não o matou? Por que hesita em matar? Não parece mais o mesmo de antes, seu desgraçado.
Edgar! A voz de Marie o chamou, tirando-o do transe. Edgar!
Ela olhava para o rapaz com aquela expressão preocupada que ele já estava se acostumando.
Monstro... Murmurou uma voz ao deles.
Era o próprio Executor. Sua voz não estava mais abafada, afinal, ele havia acabado de tirar seu capacete.
Ele suava frio e tremia quase imperceptivelmente. Seu rosto de pele morena estava esbranquiçado e com leves cortes próximos aos olhos, culpa dos cacos do visor. Sua respiração estava ofegante, recuperando-se do susto.
Esses olhos... O executor grunhiu. Por um instante, eles não eram humanos. Eram os de um assassino frio e desalmado. Não tente negar, filho da puta...
O Executor não disse mais nada em seguida. Após o chute de Marie em seu rosto, o colosso caiu de costas no chão apenas para ter sua face pisoteada uma única vez. Inconsciente e com o nariz quebrado, ele não seria mais um problema.
A expressão no rosto de Marie foi de enraivecida a melancólica ao olhar para Edgar.
Ei... Ela disse num tom acolhedor enquanto se aproximava do rapaz. Não se deixe abalar pelo o que ele disse... Aquele merda não sabe de nada, viu?
Não... Edgar suspirou. Eu... Acho que ele tem razão...
O quê?
Em parte, pelo menos...
Ei, Edgar... Como assim?
Tem algo dentro de mim... Algo ruim... Uma voz... Que quer fazer o mal... Matar até...
Querido... Marie sorriu e deu um tapinha do ombro dele. Relaxa. Todo mundo tem dessas de vez em quando, viu?
Certeza?
Certeza. Se alguém te dizer que nunca sentiu vontade de acertar algum filho da puta na cara, saiba que é mentira. Acredite. Você vai ver muito disso quando sairmos daqui... Nesse momento, ela balançou o molho de chaves na frente dos olhos do rapaz. Entendeu?
Um sorriso surgiu no rosto de Edgar. Por um momento, ele havia se esquecido do porquê de estar lutando. Agora, porém, a esperança tomava o lugar da melancolia em seu corpo.
Rapidamente, Edgar abraçou Marie. Ela pareceu surpresa por um segundo e, então, sorriu tranquila e o abraçou de volta.
Foi quase surreal. Um abraço forte foi um refúgio confortável no meio daquele caos. Talvez nenhum dos dois havia se sentido tão bem desde o da no qual a vida resolveu mostrar o quão cruel poderia ser.
Obrigado. Ele cochichou enquanto se afastavam lentamente um do outro.
Eu que preciso te agradecer. Ela disse.
Por quê?
Eu teria enlouquecido sem alguém como você. Tenha certeza disso.
Marie sorriu calorosamente. Edgar sorriu de volta tão alegremente quanto a amiga.
Então... Ele limpou a garganta. Por onde vamos?
Marie, então, apontou para um ponto específico numa parede. Lá, uma seta vermelha, um pouco gasta, estava pintada. Ela apontava para frente.
Temos que ir seguindo as setas. Marie sorriu. Simples assim.
Nossa... Edgar parecia legitimamente surpreso. Mas... Ninguém nunca percebeu isso? Nenhum Executor? Ou Asmodeus? Ou uma das câmeras...?
Agora, Marie apontava para cima da seta. Lá, havia uma câmera.
A seta está num ponto cego. Ela afirmou. Todas estão. Não muitos sabem da existência e do significado delas. E, não, nenhum dos funcionários daqui sabem disso. Então... Fique calmo, ok?
Hm... Ele esboçou um sorriso. Vou tentar.
Os dois olharam para o corredor sombrio a frente deles.
Edgar ainda parecia estar em conflito com a própria mente. Porém, mantinha um sorriso no rosto para tranquilizar a amiga.
Marie também estava perdida em um mar de pensamentos. Entretanto, ela estava legitimamente feliz. Afinal, fazia planos para quando saíssem daquele inferno. Edgar aparecia em alguns deles.
Distraídos, a dupla percebeu tarde demais a quebra do silêncio. Eles não conseguiram se virar a tempo.
A ponta de uma lança atravessou o peito de Marie.
As chaves caíram da mão dela.
Edgar virou-se para ver a amiga. Ela parecia mais surpresa do que qualquer outra coisa.
Edgar... Marie tentou sorrir. Sem sucesso.
Com os olhos arregalados e a boca aberta, o rapaz viu o novo Executor puxar sua lança, erguendo o corpo daquela que o havia guiado por aquele inferno. Bruscamente, ele arrancou a arma do peito de Marie, fazendo o sangue verter como a água de um rio.
Acabou para você... Ele disse com sua voz grave e abafada e, então, arremessou o corpo dela para trás como se fosse uma criança desinteressada com um brinquedo. Então, o Executor olhou diretamente para Edgar. Agora é a sua vez.
Paralisado de medo, o rapaz não conseguia tirar os olhos do corpo de Marie que, nas sombras, sangrava até morte, formando uma poça rubra em volta do próprio corpo.
É bom que você me ouça agora.
Edgar engoliu em seco.
Pegue as chaves no chão.
Tremendo, ele se abaixou para pegar o molho de chaves. O Executor avançava em sua direção com passos vagarosos. Sua lança, porém, estava pronta em suas mãos. Ele parecia pronto para atacar o rapaz a qualquer instante.
Ótimo. Agora... Corra...
Edgar não ousou discordar. Rapidamente, ele virou as costas para o gigante e disparou para frente.
Os passos do Executor soavam cada vez mais estrondosos atrás do rapaz. O equipamento pesado deveria o deixar lento, mas sua passada larga parecia compensar a desvantagem.
Direita...
No instante em que Edgar via uma das setas, a voz soava em sua cabeça, repetindo a informação e, de alguma maneira, o deixando mais confiante, mantendo suas esperanças apear do pavor.
Em frente...
Esquerda...
Esquerda novamente...
A voz soava cada vez mais como um amigo. Suas tendências assassinas pareciam ter se silenciado. Por ora, pelo menos.
Edgar não fraquejava. Seu coração parecia que ia explodir dentro de seu peito. Seus pulmões pareciam que não seriam o suficiente. Entretanto, qualquer mísero pensamento que pudesse o levar a desistir era afastado de sua mente. A voz não o permitiria se render.
Os passos do Executor eram o suficiente para espantar qualquer um que estivesse no caminho. Edgar via claramente as pessoas jogadas no meio do corredor. Desesperadamente, elas tentavam fugir, correndo em direção às paredes como baratas. Se pudessem atravessar frestas ou subir pelas paredes, o fariam sem problema.
Entretanto, nem todos conseguiam sair do meio caminho. Ferimentos e a fadiga eram as causas disso. Assim, obstáculos acabavam surgindo na rota da presa e do predador.
Edgar tentava desviar como podia. Trombava com uns, empurrando-os na direção das paredes. Chegou a pular por cima de uns que estavam agachados ou deitados. Um homem, aterrorizado com a visão do colosso sedento de sangue, não se mexeu. Por sorte, ou pelo apoio da voz, o rapaz deslizou por debaixo das pernas do sujeito, assim como havia feito com o primeiro Executor.
O perseguidor de Edgar, no entanto, não era tão gentil. Seus socos arremessavam quem estivesse em seu caminho para longe, sem escolher seus alvos, prensando-os contra paredes ou os jogando em seu caminho. Aqueles que ficavam no chão, entre ele e sua presa, eram pisoteados como insetos.
Com o tempo, a vantagem de Edgar foi se tornando mais nítida. Cada passo era crucial. Em breve, ele teria tempo para tentar recuperar o fôlego. Com o suor escorrendo por debaixo das faixas que cobriam seu rosto, o jovem podia usar uma pequena pausa.
Após o que pareceram ser horas de fuga, Edgar, exausto, chegou até o corredor final.
O caminho reto a sua frente terminava num portão de grades de ferro negro. Suas mãos tremiam devido ao nervosismo, fazendo as chaves que o rapaz segurava tilintarem. Apesar das pernas que latejavam de dor, ele conseguiu esboçar um sorriso.
Não pare agora... Vá em frente...
Edgar assentiu, respirou fundo e cerrou os punhos. Seu olhar agora era determinado.
Os passos soaram mais altos. O Executor estaria em sua cola novamente em questão de segundos.
Com passos largos, sem olhar para trás, o jovem chegou rapidamente à porta. Ele tinha apenas que destrancá-la agora.
O Executor se aproximava. Edgar podia ouvi-lo. Suas mãos tremiam. As chaves se agitavam entre seus dedos.
Então, o inevitável aconteceu.
Por entre os dedos do rapaz, as chaves caíram. Ele viu a cena em câmera lenta, bem diante de seus olhos, sem poder fazer nada.
Olhe para trás!
Edgar estava prestes a se abaixar para pegar as chaves quando resolveu acatar a ordem. O Executor estava a pouco mais de um metro de distância. Sua lança poderia acertá-lo sem problemas.
O rapaz sentiu seu corpo amolecer. Não conseguiria reagir. O seu fim seria ali mesmo.
Não... Não depois de tudo isso...
Edgar sentiu seu corpo se mover por conta própria. Apesar de enxergar, não acreditava no que estava acontecendo.
Ele se esquivou para a esquerda, desviando da lança que passou por um dos vãos por entre as grades da porta. Rapidamente, o rapaz deu a volta no colosso e, com um golpe rápido, acertou a axila direita do inimigo.
Edgar nem mais se lembrava de ter a faca mas, de alguma maneira, lá estava ela em sua mão. O golpe preciso, mais uma vez, acertou um ponto fraco da blindagem. Com o sangue que começou a escorrer, veio a dor. O gigante rosnou e soltou sua arma.
Com mais força do que ele imaginava ter, Edgar pressionou o ombro direito do Executor. Praticamente rosnando, o colosso se ajoelhou. Em seguida, a lâmina da faca do rapaz se aproximou da garganta de seu oponente. Mais um ponto fraco, bem abaixo do capacete.
Não se esqueça... O que ele fez com Marie foi imperdoável...
Edgar estava prestes a protestar. Ele não queria matar mais ninguém. Porém, a imagem de Marie sendo atravessada pela lança daquele Executor não sairia da mente dele tão cedo.
Ele trincou os dentes. Sentiu o sangue começar a ferver. Com a mão livre, ele apertou o pescoço do Executor. Rapidamente, a raiva havia dominado seu corpo e, então, sua faca deslizou pela garganta do agora impotente colosso.
Então, Edgar perdeu o controle. Enquanto o Executor ainda estava vivo, o rapaz atacou. Ele cravou sua faca no pescoço de sua vítima com toda força que tinha. Então, a arrancou com tanta voracidade quanto o primeiro golpe. Em seguida, repetiu o processo.
Mais uma, duas três e mais vezes. Edgar continuou esfaqueando o já morto Executor por mais vezes do que se lembraria. Quando se deu por si, segurava um corpo sem vida, machado de rubro, ajoelhado numa poça escarlate.
Entretanto, Edgar não se sentia mais como antes. Não sentiu mais medo ou nojo de si mesmo. Pelo contrário, ele estava completamente confortável, sorrindo calmamente.
Muito bom...
Isso foi uma exceção. Ele respondeu, mesmo sabendo que seu interlocutor estava dentro de sua cabeça. Ele mereceu. Não vai acontecer com muita frequencia.
Se você diz...
Edgar julgou melhor não discutir. Em breve ele estaria duvidando da própria sanidade. Talvez realmente o fizesse, porém, mais tarde, em um lugar mais seguro. Afinal, sua liberdade estava a centímetros de distância.
O rapaz andou até as chaves caídas no chão, bem em frente à porta. Uma a uma, ele testou as chaves. Na terceira tentativa, sucesso. O portão foi destrancado e, então, abriu-se.
Na sua frente, um pequeno corredor seguia até uma escada em espiral. O único caminho era para cima, para longe daquele inferno.
Edgar respirou fundo, porém, uma dose de adrenalina o atingiu. Ele queria correr para fora daquele lugar. Ele queria ser livre e viver a vida maravilhosa que poderia haver do lado de fora. Ele queria deixar o passado e o presente para trás, deixar todo o sofrimento de lado, e deixar Marie orgulhosa.
Entretanto, após apenas alguns passos, ele dois estrondos simultâneos. Incrédulo, ele olhou ao redor. Barreiras de aço haviam descido do teto, bloqueando tanto o caminho para as escadas tanto a porta por onde tinha vindo.
Não... Edgar tremeu. Não... Não...!
Por um instante, ele se sentiu claustrofóbico, como se as paredes fossem se fechar em cima dele. Talvez fossem mesmo. O rapaz não tinha como saber. Então, apenas caiu de joelhos, esperando pelo pior, sem estar preparado para tal.
De repente, gás começou a sair das paredes. O vapor esverdeado rapidamente preencheu a sala e, então, seus pulmões. O aroma doce e enjoativo fez com que seus músculos amolecessem. Em questão de segundos, estava caído no chão, quase inerte, praticamente inconsciente.
Você não vai morrer... Não agora, pelo menos.
A voz estava certa. Edgar não se sentia mal, apenas dormente. Era pouco provável que aquilo fosse veneno. Sonífero, entretanto, era bem mais provável que fosse.
Rapidamente, uma das placas subiu. Era a que levava às escadas, porém, o rapaz não saberia dizer. De lá, alguém andou até ele.
Com a visão embaçada, Edgar apenas conseguia determinar que a silhueta que via pertencia a uma mulher. Ela era alta, um pouco mais do que ele mesmo. A desconhecida parecia estar usando uma roupa blindada como as dos Executores, incluindo um capacete que lhe permitisse respirar aquele gás sem ser afetada.
Ela andou até Edgar e o puxou pelo braço, levantando-o e o carregando por cima do ombro. Aparentemente, ela era quase tão forte quanto um dos brutos Executores também.
Enquanto seguiam em direção à escadaria, Edgar fechou os olhos e, então, cedeu ao efeito do gás, adormecendo profundamente enquanto era levado para fora daquele inferno.
Murmúrios. Sons ininteligíveis para o rapaz. Foi com isso que ele acordou.
Com a visão embaçada, a primeira coisa que Edgar viu foram seus braços apoiados num balcão. Suas costas doíam. Fazia parte das consequências de se passar horas dormindo sentado.
O jovem levou as mãos à cabeça que latejava de dor. Emitir um grunhido de dor foi tudo o que Edgar pôde fazer.
Ora, ora... Disse um homem satisfeito. Vejo que finalmente acordou...
O rapaz mexeu a cabeça o mais rápido que pôde na direção na voz.
O jovem, então, olhou para a porá do cômodo. Lá, um homem surpreendentemente arrumado estava parado, guardando um celular no bolso. Seu cabelo castanho claro estava bem penteado. Seu terno cinzento estava impecável. Em seu rosto liso, um par de olhos azuis escuros e um sorriso largo saudavam Edgar.
Temi que você não sobreviveria... O homem continuou. É sério. Afinal, não era nem para você ter terminado lá...
Quem é você...? Edgar indagou com certa dificuldade.
Ah, claro... Você perdeu a memória. É verdade. Perdoe-me. Ele fez uma reverência. Henry Allard, ao seu dispor.
Hm... Allard...? O rapaz murmurou. Henry... Allard. Ele disse pausadamente. Esse nome... Já ouvi antes...
Naturalmente. Somos grandes amigos, meu caro. Henry sorriu. Espero que você logo se lembre do resto do seu passado.
É... Não me lembro de muitas coisas ainda... Só o meu nome...
Ora, você se lembra do seu nome?
Edgar assentiu.
Então... Henry sorriu. Vá em frente. Diga! Vamos testar sua memória, ok?
Ah... É Edgar... Ele sentiu o ímpeto de continuar. Edgar Dupond.
Foi como se a memória viesse por completo enquanto falava. Edgar se lembrou de seu sobrenome enfim. Com isso, o rapaz sorriu.
Porém, o sorriso logo se desfez. Afinal, Henry balançava a cabeça para os lados.
Você conhece um homem com esse nome. Ele afirmou. Aliás, nós o conhecemos. Edgar é um homem horrível, sabe? Ele te fez tanto mal.
Sério...? O rapaz engoliu em seco. Então... Qual o meu nome?
Victor. Victor Falk. Henry riu baixo. Ou, pelo menos, esse é o nome que você sempre me contou.
E... Eu mentiria meu nome? Por quê?
Hm... É... Você realmente não é mais você mesmo. Não por ora.
De repente, passos pesados soaram. Henry se voltou para trás e sorriu.
Anna. Ele a chamou. Venha. Victor acordou.
O rapaz, então, ficou sem reação ao ver a mulher entrando na sala. Alta, forte, com o corpo completamente coberto pelo o que mais parecia ser uma armadura, Anna encarou Victor pelo visor de seu capacete.
O jovem lembrava claramente da mulher que o carregou, sem saber se ela o salvou ou o carregou. Porém, olhando agora para ela, e também sabendo seu nome, Victor sentiu algo diferente: ele nunca se sentiu tão confortável, mesmo sem saber o motivo.
Apenas confie neles. Eles são nossos amigos. Nossa família, ouso dizer.
Anna Linden, certo? Victor indagou, agora se lembrando do sobrenome de Anna.
Ela assentiu.
Anna não é muito de falar. Afirmou Henry. Eu, por outro lado, compenso. Ele sorriu. Mas tenho certeza que você vai se lembrar desses pequenos detalhes com o tempo...
Hm... Victor coçou a nuca e, então, arregalou os olhos ao perceber. Ah...! Ele tateou o próprio rosto freneticamente. As faixas...!
Nós as tiramos. Esclareceu Henry. Aliás, do seu corpo todo. Te demos umas roupas confortáveis. Você precisava delas, mas não mais das faixas. Porém...
O meu rosto...
Sim... Temo que ele não esteja como antes. Esses hematomas são temporários... Agora, as cicatrizes...
Como isso aconteceu? Foi obra do Asmodeus...?
Herny e Anna trocaram olhares. Victor olhou sem saber o que fazer. Então, os dois olharam de volta para o rapaz.
Você realmente não se lembra de nada. Henry esboçou um sorriso. Tente olhar ao seu redor. Veja se lembra de algo...
É uma boa ideia...
Com uma expressão levemente assustada, Victor seguiu o conselho de Henry. Olhando a sua volta, ele começou a distinguir os detalhes da sala e, com isso, algumas memórias vagas foram voltando.
O cenário era um tanto quanto bagunçado. Não chegava a ser caótico ou decrépito, mas o cômodo parecia estar um tanto quanto abandonado, necessitado de uma faxina. Uma camada de pó parecia cobrir os armários. Papéis estavam espalhados pelo balcão a sua frente. Os eletrodomésticos pareciam ter sido usados recentemente. A luz fraca que mal iluminava o lugar não amenizava a atmosfera.
Estamos numa cozinha? Indagou Victor, erguendo uma sobrancelha.
Sim. Respondeu Henry. Mas não qualquer cozinha, mas... Não, você não parece se lembrar. Ele olhou rapidamente para Anna. Gentil como sempre, não?
O rapaz olhou para a mulher. Apesar de grande e de seus passos serem pesados, ele não havia reparado ela se movimentando. Ela voltava da pia com um copo de água na mão direita. Calmamente, Anna andou até Victor e o entregou a bebida.
Obrigado... O rapaz agradeceu enquanto pegava o copo.
Até o momento, Victor não havia se dado conta do quão secos seus lábios e sua garganta estavam. Assim, ele bebeu a água rapidamente, derramando um pouco, não saciando sua sede, mas conseguindo amenizá-la.
Então... Henry limpou a garganta. Vamos?
Para onde?
Até Edgar Dupond.
Isso vai ser bom.
Victor não disse mais nada. Apenas deixou o copo vazio sobre o balcão da cozinha e seguiu Anna e Henry.
Calmamente, os três andaram pela casa.
O lugar não era muito luxuoso, mas certamente era espaçoso. Apesar de não muito arrumado, era, de certa forma, aconchegante.
O silêncio seria absoluto se não fossem pelos seus passos e respirações.
Henry sorria, mantendo-se quieto, permitindo que Victor pudesse tentar recobrar suas memórias calmamente.
Anna agia como sempre.
 Victor, então, fazia o que Henry esperava que ele fizesse.
Após alguns instantes, o trio chegou até uma pequena porta debaixo de uma escadaria.
Chegamos. Henry sorriu e, então, destrancou a porta.
Victor sentiu vontade de perguntar se havia alguma passagem ali em baixo. Porém, não perguntou. Afinal, a resposta veio abruptamente.
Henry puxou um homem de dentro do minúsculo cômodo. Com uma expressão aterrorizada, o sujeito encarou os três. Impotente, ele não podia fugir, pois estava imobilizado por correntes, e nem gritar, pois estava amordaçado.
Nós o deixamos vivo, o mais vivo possível, para você, Victor. Disse Henry com um sorriso macabro no rosto.
O quê!? O rapaz ainda estava assustado com a cena. Como... Como assim!?
Para você ter a sua vingança, é claro.
Vingança...? Ele fez uma breve pausa. Eu nem me lembro do que ele fez...
Quem você acha que invadiu sua casa e fez isso com você? Quem você acha que foi o filho da puta que tentou quebrar o seu corpo como um troglodita? E te prender no labirinto? Quem você acha que fez tudo isso!? E, por cima de tudo, se aproveitando de um momento de fraqueza e descuido nosso... Tamanha audácia... Tem que ser punida.
Victor, então, olhou para o homem aterrorizado no chão. Ele podia ouvir os murmúrios abafados. O rapaz podia sentir o medo de Edgar Dupond.
E por quê? Indagou Victor. Por que ele fez isso?
Aparentemente, a noiva dele morreu. Henry respondeu calmamente.
E eu sou o culpado?
Indiretamente. Você não a matou, mas... Possibilitou a morte dela.
Ah... Ele esboçou um sorriso. Eu sou um monstro mesmo, não é...?
Algumas pessoas podem concordariam. Outras, discordariam. Sabe... Muitas pessoas te admiram, te idolatram. Muitos te consideram um gênio.
Mas eu sou um assassino, não é mesmo?
Na verdade... Não.
Como... Como assim?
Você normalmente evita matar as pessoas. As mortes acabam sendo consequências inevitáveis aos seus trabalhos.
E meus trabalhos...? O que seriam?
Henry, então, sorriu e sacou uma faca, estendendo-a para o jovem. A arma, que tinha o cabo adornado com prata, cintilava tanta quanto os olhos de Victor ao vê-la.
Instintivamente, o rapaz a pegou das mãos do suposto amigo. Uma sensação familiar o atingiu, deixando-o relaxado e o fazendo sorrir.
Tudo faz sentido agora, não?
Anna... Victor a chamou. Pode me ajudar a levantar o senhor Dupond para uma de nossas salas especiais?
 Mulher assentiu e prontamente, levantou Edgar do chão.
Deixe-me assumir... Assumir como antes...
Algo me diz que você se lembrou... Disse Henry calmamente. De tudo... Não?
É claro, meu caro Henry. Seus olhos, agora, tinham um brilho diferente. Sua voz, agora mais grave, soava mais confiante. Eu estou de volta. E pronto para fazer um show! Ele sorriu e, então, levou uma mão ao rosto deformado. Ainda bem que eu tenho a minha máscara, não?
Sim, senhor. Ele sorriu. Eu a pegarei para você, bem como o resto de suas roupas.
Ótimo, meu caro! Ele sorriu. Aliás... Tenho que ver Dylan Roe. Mais tarde, não agora.

Mas é claro... Tudo a seu tempo. Henry riu, alegre. Ah... Como é bom ter você de volta, Dr. Asmodeus...

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