15.
Joshua acordou com um sobressalto.
Sua respiração estava rápida e pesada, quase como se
tivesse sido salvo de se afogar por pouco.
Com o coração batendo freneticamente dentro do peito o
rapaz olhou em volta. Ele se encontrava em uma plataforma circular que parecia
ser feita de mármore. Ao seu redor, um céu escuro e estrelado adornado com mais
plataformas brancas e escadarias.
Joshua, aturdido, levou uma mão a cabeça. Uma enxaqueca o
atingia sempre que ele tentava se lembrar do que havia acontecido.
—
Tente não se mexer. —
Disse uma voz profunda atrás do rapaz.
Ele nem conseguiu reagir. Rapidamente, uma dor aguda o
atingiu na nuca, paralisando o seu corpo. De repente, um turbilhão de
pensamentos o atingiu.
Milhões de cenas passaram rapidamente diante de seus
olhos. Em questão de segundos, porém, tudo estava claro. O rosto de Adriana
veio em sua mente, bem como as ruas de Gehenna, o velho vizinho que revelou ser
um ceifador, Morgana o guiando até Cristina e
Richard, o casal sendo morto um de cada vez, o teto
desabando sobre Behemoth, Margareth sendo morta por Estmund e, por fim, a dor
que ele sentiu quando a foice dele atravessou seu peito.
—
Ora... Creio que funcionou... —
A voz disse novamente.
Ofegante, Joshua se voltou para trás, encarando seu
interlocutor. Entretanto, uma expressão de estranhamento surgiu no rosto do
jovem.
A criatura a frente dele era no mínimo curiosa. Parecia
uma pessoa, com o corpo humanóide, sentada de pernas cruzadas. Sua altura
passava dos três metros. Entretanto, não era possível distinguir seu gênero.
Seu corpo parecia ser transparente ou, pelo menos, se mesclava com a cor do céu
escuro e estrelado. Toda a superfície de sua face era lisa: sem olhos, orelhas,
nariz, boca ou cabelo.
—
Ah... — A criatura inclinou
a cabeça para a esquerda. Sua voz parecia vir de algum lugar de sua cabeça,
ecoando gravemente, apesar de não ser visível. —
Você parece estar bem ciente do que está acontecendo a sua volta agora... Creio
que é uma boa hora para que as explicações comecem, não acha?
—
Hm... Claro... —
Joshua murmurou ainda um pouco confuso. —
Então, me responda... Quem é você? Ou melhor... O que é você?
—
Um Djinn. — Respondeu
uma voz familiar.
Joshua olhou para a esquerda, por cima de seu ombro, e
viu Morgana se aproximando, caminhando exuberante com seu vestido negro e foice
em mãos.
—
Ceifadora... — O
Djinn parecia contente. —
Creio que aquele assunto está terminado.
—
Sim, está. — Ela
afirmou.
—
Que assunto? — Joshua
indagou.
—
Fui dar um fim ao Estmund. —
Morgana olhou para a própria foice um pouco melancólica. — Ele não poderia sair
impune depois de tudo o que fez. —
Ela olhou para o Djinn. —
E eu tenho você a agradecer.
—
Apenas fiz o que eu julguei ser certo. —
A criatura respondeu. —
E, sinceramente, eu nunca gostei muito dele.
—
Entendo... — Morgana
olhou para Joshua e, então, voltou-se novamente para o Djinn. — Enfim, prossiga com as
explicações. Gostaria de ver a reação do humano, porém, o trabalho me chama.
—
Claro, claro... — O
Djinn murmurou.
Rapidamente, um portal se abriu e Morgana deixou o local.
Entretanto, antes disso, por apenas uma fração de segundos, ela olhou para
Joshua. A ceifadora parecia temer o pior.
—
Então... — A criatura
continuou. — Sim, eu
sou um Djinn. Mais especificamente, aquele que ficou com a sua alma.
—
Com a minha alma...? —
O rapaz parecia confuso. —
Você quer dizer... Você ficou com a minha alma depois que Estmund a tirou de
mim?
—
Não. Eu fiquei com a sua alma após fazermos o nosso trato.
—
Trato...? Mas... Que trato?
—
Ora, creio que já te falaram sobre isso. Morgana ou Estmund. Um dos dois deve
ter mencionado o trato que os humanos fazem com um Djinn, certo?
—
Sim... Mas, então... —
Joshua parecia não acreditar. —
Você quer dizer que... Eu já havia morrido antes?
—
Mas é claro. E aí está você agora. Em sua forma espiritual.
—
Você quer dizer que eu estava vivo apenas com o meu corpo físico...? Todo esse
tempo...?
—
Sim. Desde antes de você conhecer sua amada Adriana.
—
Hm... — Joshua levou
as mãos à cabeça. Ela doía acreditar naquilo. —
Não... Não faz sentido... Eu... Eu deveria me lembrar, certo? Eu deveria me
lembrar do nosso trato, não é!?
—
Normalmente, sim. Mas você foi um caso especial.
—
Por quê...?
—
Por que você pediu para não se lembrar.
—
Hã...? Por que isso?
—
Você queria provar que você poderia se sacrificar para salvar alguém que você
amasse. E, para isso, você não queria nenhum tipo de assistência, ninguém te
lembrando do que fazer. Afinal, você tirou a própria vida da primeira vez por
não conseguir viver com a culpa, por não conseguir viver sabendo o quão fraco e
covarde você foi...
Joshua caiu de joelhos. A cada palavra proferida pelo
Djinn, mais imagens e sons voltavam para a sua mente. Em questão de segundos,
um curto filme estava passando diante de seus olhos.
Abigail era o nome dela. Ela era tão linda quanto
Adriana, pelo menos, aos olhos de Joshua. Tudo parecia ser um conto de fadas
entre os dois. Entretanto, tudo mudou no dia do acidente.
Um incêndio tomou conta do prédio onde o casal morava.
Tudo parecia ter vindo abaixo rapidamente. Vendo Abigail presa debaixo dos
escombros, Joshua ficou paralisado. Entre as chamas e o calor sufocante, ele
temeu pela própria vida. Impotente, ele acabou abandonando sua amada.
Os olhos tristes e assustados de Abigail eram a última
lembrança deixada por ela, algo que torturaria Joshua pelo resto de sua
primeira vida. Entretanto ninguém podia realmente culpá-lo. Seus amigos,
família e até os familiares de sua amada. Ninguém poderia exigir que ele
tivesse se arriscado tanto, afinal, ele poderia não ter sobrevivido. Porém, não
ter sobrevivido era exatamente o que ele queria.
Imerso em uma depressão sem fim, caçado por pesadelos
agonizantes e torturado pelos lembretes de sua fraqueza e covardia, Joshua
resolveu tirar a própria vida.
—
Mas não há motivo para se sentir mal. —
Disse o Djinn calmamente após alguns instantes. —
Afinal, você conseguiu fazer o que você não pôde antes.
Joshua levantou a cabeça lentamente na direção do Djinn.
—
Você foi até Gehenna, humano. —
Ele continuou. — Um
lugar considerado pior que o inferno. E você voltou lá por vontade própria.
Isso apenas para salvar sua amada. —
O Djinn pareceu rir contente. —
Você enfrentou um monstro sedento de sangue, praticamente indestrutível, e
seguiu em frente mesmo sozinho. Você até bateu de frente contra Estmund! Você é
uma lenda entre os humanos, rapaz. Pelo menos, aqui no Plano Espiritual.
Joshua não pôde conter um sorriso. Tantos elogios depois
de tudo o que ele passou eram, claramente, bem vindos. Entretanto, haviam ainda
perguntas a serem respondidas.
Os olhos do rapaz se arregalaram quando ele se lembrou
dos eventos que ocorreram instantes antes de sua segunda morte.
—
Adriana...! — Ele
exclamou. — O que
aconteceu com ela!? Ela não estava mais lá quando eu estava prestes a
morrer...!
—
Eu a tirei de lá. — O
Djinn respondeu como se não fosse nada. —
Aproveitei o momento em que você estava enfrentando Estmund e a trouxe de volta
ao seu mundo.
—
Ah... — Joshua sentiu
um peso enorme saindo de cima de seus ombros. Ele respirou aliviado e sorriu. — Obrigado... — Ele conseguiu dizer. — Muito obrigado.
—
Não precisa agradecer. Apenas fiz o que me pareceu ser o certo. E com isso eu
quero dizer que fiz o que eu gostaria de ter feito. Simples assim. Aliás, foi
por isso que eu o mantive vivo.
—
Hã...? — O rapaz
parecia aturdido. —
Como assim...?
—
Você é apenas uma alma agora. Djinns devoram almas, está lembrado?
—
Ah... — Joshua
engoliu em seco. —
Então você vai...?
—
Te devorar? — Ele
inclinou a cabeça para a direita. —
Vou. Entretanto, eu queria ter contado tudo o que eu acabei de contar. Queria
que você pudesse se for sorrindo.
Joshua olhou para baixo. Aceitar a morte não era uma
tarefa fácil. Porém, com uma sensação de tarefa cumprida, ele poderia dizer
adeus à vida.
—
Eu lhe agradeço por tudo o que fez por mim... —
O rapaz começou. —
Mesmo não precisando ser, você me foi de grande ajuda. — Ele olhou para o rosto do Djinn e sorriu. — Muito obrigado...
—
Porém...? — A
criatura indagou, já prevendo que Joshua não havia terminado de falar.
—
Porém... — Ele
respirou fundo. — Eu
gostaria de ver Adriana uma última vez.
—
Isso não será possível.
—
Ah... Por que não?
—
A alma dela não existe mais. Eu mesmo a devorei. —
Ele disse, novamente, como se não fosse nada. —
Fui eu que garanti o desejo dela. Porém, diferentemente de você, eu não tinha
interesse em manter-la por aqui. Não parecia valer a pena, sabe?
—
Hm... — Joshua sentiu
uma pontada de raiva. Ele cerrou os punhos, porém, respirou fundo e tentou se
acalmar. — Certo...
Mas e quanto ao corpo físico dela? Aquele que você salvou de Gehenna?
—
Está como o seu, meu caro Joshua... —
Disse uma nova voz.
O rapaz e o Djinn se voltaram na direção da voz.
Agora, junto com eles na plataforma, estava o que
poderiam presumir ser um anjo. A mulher tinha mais de um metro e setenta de
altura. Ela trajava um terno cinza e vestia uma camisa azul clara por baixo.
Seus olhos eram verdes claros como o céu da manhã. Os cabelos eram loiros,
longos e compridos com uma auréola flutuando gentilmente acima deles. Seu rosto
era belo com uma expressão serena. Nas costas, um grande par de asas brancas
pareciam faziam sua figura parecer ainda mais imponente.
—
Morto. — O anjo disse
simplesmente.
—
Ah... — Joshua se
recusou a acreditar naquilo. —
Não... O Djinn disse que a salvou...
—
Ele apenas adiou a morte dela. —
O ser alado retrucou. —
Ele...
—
O que você está fazendo aqui!? —
O Djinn indagou claramente irritado. —
Você não deveria mais interferir!
—
Normalmente não... —
Outra voz disse.
Novamente, Joshua e o Djinn se voltaram na direção do
novo desconhecido.
Agora, o que parecia ser um demônio estava entre eles. O
homem tinha mais de um metro e oitenta de altura. Ele trajava um terno preto e
usava uma gravata vermelha escarlate. Seus olhos castanhos brilhavam. O cabelo
negro desgrenhado não servia para esconder os chifres que saiam de sua cabeça.
Seu rosto tinha uma expressão descontraída, além da barba por fazer e o sorriso
charmoso. Nas costas, o grande par de asas de pernas negras eram intimidadores.
—
Mas você, Joshua, é um caso tão especial. —
Ele riu. — Raramente
vemos almas valorosas como a sua.
—
E é claro que você tinha que vir também... —
O Djinn parecia ainda mais irritado.
—
Esperem... — Joshua
olhou para o anjo e para o demônio. Após alguns instantes, ele se lembrou. — São vocês que eu vi assim
que cheguei ao Plano Espiritual.
—
Precisamente. — O
anjo respondeu. — Nós
lhe demos as duas opções que, no fim, você não aceitou.
—
E aí você correu pra longe. —
Disse o demônio. — E
aí caiu nas garras desse Djinn.
—
E agora a alma dele é minha! —
A criatura vociferou.
No mesmo instante, Joshua caiu de joelhos, sentindo-se
tonto. Ele sentia sua energia sendo drenada pelo Djinn.
—
Seria sua se você tivesse comido logo. —
O demônio retrucou.
—
Como você resolveu postergar a sua, digamos, sentença... — O anjo sorriu. — Nós temos uma segunda
chance para convencê-lo a seguir o nosso caminho.
—
Absurdo! — Protestou
o Djinn.
—
Reclama com o chefe. —
Disse o demônio e apontou para a cima. —
Bem... — Ele apontou
para o anjo. — Mais
chefe dela do que meu, mas... Deu pra entender, não é?
—
Viemos apenas para cumprir nosso dever. —
Disse o anjo. — Fazer
o que é justo. Tente não atrapalhar.
—
Que complô é esse contra mim!? —
O Djinn esbravejou. —
Seus desgraçados! Vocês preferem se unir do que me deixar ganhar!?
—
Olha, acho que a resposta é bem óbvia... —
O demônio caçoou. —
Mas se você quiser que eu desenhe, eu posso fazer isso sem problemas.
—
Maldito... — A
criatura grunhiu.
Por mais poderoso que o Djinn fosse, era óbvio que ele
não poderia fazer nada contra um anjo e um demônio unidos. Joshua podia ver
isso claramente, apesar de um aturdido por tudo estar acontecendo tão
rapidamente.
—
Joshua. — O Anjo
chamou o jovem. — O
Djinn salvou sua amada de Gehenna. Porém, ele a abandonou no seu mundo. Sem
você, e depois de tudo o que ela passou, ela não desejava mais viver. Meus
pêsames, mas ela acabou por tirar a própria vida.
—
Mas é claro que esse desgraçado já sabia que isso aconteceria. — O demônio trincou os
dentes. — Se você
estivesse satisfeito, ele poderia devorar a sua alma. Isso é parte do trato. Te
enganando, tudo daria certo pra esse cretino.
—
Mas ele poderia ter morrido feliz! —
O Djinn retrucou. —
Agora, por causa de vocês, ele não pode mais! Ele...!
—
Por quê...? — Joshua
murmurou.
O anjo, o demônio e o Djinn se voltaram para o rapaz.
—
Por que eu tenho que continuar sofrendo? —
Ele indagou. — Por
que a minha alma é tão importante para vocês? Por que eu não posso morrer em
paz? Por quê!?
—
Ainda há salvação. —
Disse o anjo.
—
Ou você continuar vivendo. —
Propôs o demônio. —
Sem o medo de morrer. Sem sentir dor, medo, fome, sede... Apenas pense nisso.
—
Você não vai querer firmar um trato com um demônio. — Ela retrucou.
—
Eu consigo sentir a sua ira. —
Ele ignorou o anjo e continuou a falar. —Eu
consigo sentir a vontade que você ainda tem de viver. Não tente se enganar. Não
diga que você quer morrer. Você não quer a saída mais fácil, acredite em mim.
O anjo propunha o fim de todo o sofrimento. Joshua queria
aquilo. Ou, pelo menos, era o que ele queria dizer. Afinal, no fundo, ele
queria continuar a viver. Se nunca mais sofresse, não teria do que reclamar.
Além disso, toda a raiva que ele sentia após tudo o que passou, ainda mais
vendo que todo o seu sacrifício foi em vão, parecia queimar dentro de si.
Com um sorriso sinistro no rosto, Joshua se levantou e
andou até o demônio.
Com um aperto de mão, eles firmaram o contrato.
—
Você não vai se arrepender. —
Aquelas foram as últimas palavras do demônio antes dos dois desaparecerem em um
vórtice de fogo e sombras.
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