O caminho foi menos que agradável, tornando-se gradualmente
mais agonizante a cada passo dado em direção à vila. O ar venenoso parecia
ceifar a vida de tudo o que lá vivia. Árvores enegrecidas eram deixadas como carcaças,
exibindo seus esqueléticos galhos retorcidos como adornos para a trilha. O
grasnar dos corvos soava distante, aconselhando inutilmente os viajantes a
deixarem aquele local amaldiçoado. A sufocante atmosfera ficava cada vez mais densa,
pesando sobre seus ombros cansados. As rajadas gélidas de ar os açoitavam
sempre que baixavam a guarda, atravessando tecido e carne sem esforço, golpeando
seus ossos com cada sopro.
Aquele sofrimento, entretanto, não era o pior que poderia
acontecer. Rick e Liza bem sabiam disso. Com o tempo souberam apreciar aquelas
situações, abrir um largo sorriso diante de um desafio verdadeiro, saborear a
adrenalina proporcionada pelo medo e, até mesmo, pela dor.
Era quase engraçado como estar mais próximo da morte podia
fazer alguém apreciar melhor a vida. E era pensando assim que, ao chegarem ao
vilarejo, os dois sentiram uma melancolia sem fim dilacerando seus espíritos.
A vila estava pior do que morta. Ela respirava, porém, não
mais ansiava por viver. O vento não soprava. As crianças não brincavam. Os
cachorros não latiam. Os homens não trabalhavam. As senhoras não tagarelavam.
Tudo estava inerte. Tudo estava cinza.
— E
eu achava que nossa cidade era parada... —
Murmurou Liza. Seus olhos corriam de um canto para o outro, viajando
nervosamente pela cena, tentando encontrar algo que não transbordasse tristeza.
— Algo me diz que não
vamos encontrar muita hospitalidade por aqui...
— Se
isso significar não ter que enfrentar hostilidades, não vejo problemas... — Rick disse num tom áspero,
claramente desconfortável com o ambiente. —
Quanto menos tempo passarmos aqui, melhor pra nós...
—
Verdade... — Ela
concordou pensativa. —
Vamos tentar procurar alguém pra nos dar informação...? — Perguntou após alguns segundos. — Se bem que parece difícil...
—
Sim... Acho mais provável sermos puxados até o demônio que estamos
procurando...
E foi praticamente aquilo que aconteceu. Uma aura sombria
ardia intensamente no meio da vila, algo muito diferente da monotonia
enlouquecedora que via ao seu redor. Rick sentia a intensidade do calor
aumentando a cada passo seu dado na direção certa. Seu coração acelerou.
Zumbidos começaram a chegar seus ouvidos. Vagarosamente, foram se tornando mais
claros, compreensíveis como um enigma que se resolvia sozinho.
—
Rick... — Liza o
chamou.
Ele pediu silêncio. Suspiros chegavam até seus ouvidos. Era como
se não quisessem ser descobertos pela pessoa errada. Rick se manteve calmo,
atento para o que diziam. Uns pareciam chorar, arrependidos por algo que não
fizeram. Alguns aconselhavam que ele fugisse, deixasse o vilarejo o quanto
antes. Outros pediam desesperadamente por ajuda, implorando por uma paz que
lhes foi negada. E mais e mais vinham até seu ouviente.
—
Rick. — Liza soava
nervosa.
O homem nem sequer pôde ouvir a companheira. Sua pobre voz
se perdeu entre as tantas que clamavam pela atenção de Rick. E elas estavam
mais altas. Estavam mais inquietas. E eram cada vez mais delas. Tantas que já
não eram mais nítidas. Um caos sonoro foi o que resultou daquilo, engolindo seu
ouvinte, arrastando-o para um abismo escuro. Eram gritos. Choros. Urros. Até
mesmo risadas. Nem mais sabia dizer que idioma falavam. Tudo o que sabia era
que não mais enxergava. Não mais andava pelo vilarejo cinza de antes. Nem mais
sentia o chão sob seus pés.
—
Rick! — Liza berrou.
Um ato em vão. O grito da jovem foi impedido de chegar até os
ouvidos Rick. Aquelas incontáveis vozes angustiadas não gostavam de
compartilhar. Afinal, o ouvinte era deles. E somente deles. Querendo ou não,
seu escolhido ouviria tudo o que tinham que dizer. Ouviria suas mágoas. Suas
aflições. Seus desejos nunca realizados. Tudo isso enquanto roubavam suas
forças, pouco a pouco, palavra a palavra, materializando o inferno diante dos
seus olhos, preenchendo as trevas com luzes espectrais, observando a revelação
das centenas de seres amorfos que o assombravam, trazendo o sopro da morte que
o fazia se curvar.Por fim, lentamente, tentáculos negros começaram a surgir. Abrindo buracos no próprio ar, os membros asquerosos serpenteavam até sua presa. Rick apenas permaneceu lá, paralisado pela aura sombria, observando atônito o que não sabia se era um demônio avançando ou, então, a própria insanidade clamando por sua alma.
Então, tudo acabou abruptamente.
Um tapa. Apenas um. Foi o suficiente para trazer Rick de
volta à realidade.
As vozes foram cessando até que não mais pudessem ser
ouvidas. Sua visão foi clareando, tornando-se menos turva a cada segundo que
passava, até que pudesse ver Liza bem em sua frente.
Rick fitou o rosto da companheira. Ela estava pálida,
ofegante após tanto gritar. Seus olhos então foram até a mão da amiga, ainda
parada no ar. Ele podia sentir a bochecha formigando, quente após o tapa que
levou.
—
O que aconteceu, Rick...? —
Liza perguntou nitidamente preocupada. —
O que você viu...? O que você ouviu...?
— Muitas
vozes... — Rick
respondeu ainda lento. —
Muitos espíritos... E... Algo que não tenho certeza do que era...
A jovem suspirou um pouco aliviada. Seu coração batia
acelerado em seu peito, é claro, mas era bom ouvir uma resposta do parceiro.
Rick, por sua vez, pensou em agradecer pelo resgate, apesar do tapa em sua cara,
mas acabou não o fazendo. Sua visão, bem como sua atenção, foi pega pela paisagem
que o cercava.
A terra cinza e as flores quase mortas já pareciam típicas
do lugar. As lápides cobertas de musgo e os túmulos ornados com teias de aranha,
no entanto, não eram.
—
Ótimo... — Rick
bufou. Agora entendia o porquê de tantas vozes melancólicas em sua cabeça. — Como eu cheguei aqui...?
—
Você correu. — Liza
respondeu sem ânimo, cruzando os braços junto do corpo em seguida. Claramente
não estava confortável após o que havia acontecido. — Você estava fora de si... Só parou quando
chegou aqui no cemitério... Aí... Você ficou aí, em pé, parado... Só faltou
começar a espumar pela boca...
—
Entendo... — Ele
coçou o queixo, pensativo. —
Curioso...
—
O que foi...?
—
É só uma teoria, mas... —
Rick sentiu um calafrio percorrendo sua espinha ao pensar nos tentáculos de
antes. — Presumindo
que eu vi o demônio que procuramos, mesmo que não em sua forma verdadeira... E
pela quantidade de espíritos sem descanso... Creio que o nosso alvo pode usar essas
almas como seus servos... Provavelmente almas ceifadas por ele mesmo...
— Então...
O demônio é um tipo de necromante...? —
Ela concluiu sem muita certeza. —
Pode não ser muito forte sozinho... Mas fica se escondendo atrás dos
capangas... Que são vários... É isso?
—
É só uma teoria. —
Ele repetiu. — Mas sinto
estar certo... — Seu
olhar, então, começou a vagar pelos arredores. —
Não sei se o demônio vai estar escondido aqui, mas talvez possamos achar...
—
Não. — Liza o
interrompeu. — Não
aqui.
— Por
que tem tanta certeza...?
A jovem respondeu não com palavras, mas sim, apontando um
dedo. Rick seguiu o indicador da parceira, levando seu olhar para fora do
cemitério, num dos pontos mais altos da vila.
—
Ah... — Rick soou um
tanto quanto surpreso. —Ali...
Com passos firmes, a dupla caminhou até saírem do cemitério.
Seus olhos estavam fixos no que estava no fim da rua, bem no topo da colina.
A grande e solitária casa permanecia suprema. Sua mera
aparência era o suficiente para manter os visitantes afastados. As paredes de madeira
foram enegrecidas, desgastadas pelos anos. O telhado cinzento se desfazia,
erodido pelas chuvas e ventos, pronto para ceder a qualquer momento. Do buraco
onde uma vez existiu uma porta, as sombras absolutas pareciam rir de quem se
aproximava.
Mas nada disso importava. A imaginação de curiosos pode
criar ilusões, gerando pavor onde antes nada sobrenatural existia. Aquela
poderia ser, sem dúvidas, uma casa abandonada qualquer. Suas histórias de
terror não seriam nada mais que boatos e mentiras. Rick, entretanto, sentia a
aura que o lugar emanava. Sentia ao ponto de ficar enjoado apenas de olhar na
direção da velha construção. Sabia muito bem que a história de terror já havia
começado a ser contada.
—
Se você acha que estiver bem... —
Liza começou, mantendo seu tempo preocupado de antes. — Podemos ir. Caso contrário, podemos esperar
mais um pouco...
—
Eu estou bem. — Rick
disse com firmeza, apesar de não acreditar nas próprias palavras. Ele abriu um
sorriso então, tentando tranquilizar a parceira. —
Vamos?
Liza assentiu, sem hesitar, retribuindo o sorriso em
seguida. Porém, seu rosto logo se fechou. A cada passo dado em direção à
maldita casa, a jovem podia sentir um aperto cada vez mais forte em seu
coração. Algo dentro dela simplesmente sabia que um deles não sobreviveria à
noite.
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