domingo, 10 de julho de 2016

Conto 21 - Parte 2 (Final)

O réu não respondeu. Apenas me lançou um olhar que carregava um misto de raiva e medo.
Quem cala consente... Murmurei. Vamos lá...
O que você vai fazer exatamente...? Perguntou.
Agora foi a minha vez de não responder. Não queria perder tempo. Além disso, pegá-lo de surpresa seria benéfico para o julgamento.
Minha mão esquerda foi até a face do réu. Ele nem teve tempo de reagir. No instante seguinte, eu estava o agarrando pela testa. Seus olhos pareciam fora de seu controle. Sua boca soltava grunhidos e suspiros enquanto eu olhava dentro de sua mente. Suas memórias eram minhas para serem analisadas, até mesmo as que ele não se lembrava, incluindo aquelas que foram reprimidas.
O passado dele não podia ser escondido de mim.
Alguns segundos depois, eu soltei o homem. Ele arfava, completamente indefeso. Era como se tivesse corrido pela própria vida, exaurindo suas energias, respirando para recuperar todo o ar perdido.
O que você fez...? O réu perguntou com dificuldade. O que você fez com a minha cabeça...?
Apenas coletei um pouco de informação. Respondi calma. Tudo em pró do seu julgamento.
Eu... Eu vi você... Mexendo na minha cabeça... Ele hesitou. Vendo coisas que não deveria...
É parte do meu trabalho.
E quem te deu o direito!? Ele elevou a voz, mostrando os dentes como presas para mim. Quem você acha que é para fazer isso!?
Sua juíza. Não alterei meu tom de voz. Alguém que teve uma vida exemplar na terra... Alguém que foi respeitada pelos fortes... Alguém que foi temida pelos fracos... Resumindo, sou uma alma boa. Uma das melhores atualmente. Por isso que estou onde estou, exercendo o cargo que exerço.
Para de falar asneira!
O réu tentou avançar contra mim. Não hesitei em levantar um dedo.
Mais uma vez, aquele homem caiu de joelhos diante dos meus pés.
Na próxima vez, vou usar o martelo. Adverti. E se você morrer aqui... É o seu fim. Sem julgamento. Sem segunda chance. Ouviu bem?
Não houve resposta. Aquilo foi o suficiente para mim.
Ótimo... Suspirei. Então, vamos a sua pena...
Espere! O réu exclamou. Não posso me defender?
Não precisa. Já sei o que fazer com você.
Isso... Isso não me parece justo... Não me parece um julgamento justo...
Não estamos mais na terra, tolo. Não temos tempo a perder.
Mas...
Eu sou a juíza nessa corte. Eu o interrompi. Assim como sou a promotora e a advogada. Eu sou absoluta aqui. Fiz uma breve pausa para observar a expressão assustada do réu. Mas também sou justa. E é por isso que vou te dar uma segunda chance.
Hm? Ele parecia confuso. Como... Como assim?
Você não teve uma vida exemplar. Falei num tom sério. Pelo contrário, você foi um péssimo exemplo. Você roubou, você mentiu, você matou... Você viveu apenas por você mesmo. Não hesitou antes de pisar na cabeça dos outros... Você causou apenas destruição. Isso se refletiu na sua própria vida. Nunca fez nada de grandioso, algo invejável. Digo mais... Você apenas invejou a grandiosidade alheia...
O réu queria retrucar, mas não tinha argumentos. Além disso, parecia se segurar para não recorrer à violência. Ele sabia que a pena não seria leve.
Sabe, existem basicamente dois tipos de almas, boas e más. Comecei a explicar. As almas boas buscam superar seus limites, superando-se, elevando-se mesmo tendo que sofrer para isso. Elas correm atrás do que querem, do que precisam para viver. Elas aprendem com os próprios erros. Elas lutam por algo que vale a pena... E, no meio do caminho, ajudam outras almas em suas jornadas, querendo ou não... Suspirei. As almas más, por outro lado, são inconvenientes, para dizer o mínimo. Elas não buscam o aperfeiçoamento próprio, não tentam melhorar. Elas não querem ter que sofrer como as almas boas. Elas preferem se afundar na podridão, puxando qualquer um que se aproxime para o mesmo abismo. Assim, não se sentem tão fracas, tão patéticas, tão sozinhas na escuridão... Elas não são nada mais que um obstáculo desnecessário nas jornadas alheias. E é por isso que eu e os outros juízes temos que eliminar essas criações falhas.
Então... O homem parecia mais confuso. Então... Eu pertenço à segunda categoria... Mas você não vai se livrar de mim.
Bem... Você fez parte da segunda categoria nessa sua última vida. Isso é fato. Porém... Essa foi sua primeira vida.
E isso muda alguma coisa?
Muda. Porque não tive nenhuma conclusão definitiva. Posso não ter visto um santo, mas também não vi um demônio quando olhei suas memórias. Logo, os seus erros podem ter sido algo um pouco além de você. Afinal, o meio onde você viveu não foi dos melhores. Uma vida pobre e dura te levando para o crime... Não justifica, é claro, mas explica. Você desperdiçou uma excelente chance de ser alguém de bem, alguém esforçado, trabalhador... Espero que não faça o mesmo na sua segunda vida.
Espere... O réu esboçou um sorriso. Então minha vida vai ser diferente? Eu vou ser rico?
Isso não é da minha jurisdição. Respondi serenamente. Então não posso te dar os detalhes. Mas... Sim. Você vai ser rico, monetariamente pelo menos. Vai nascer como o filho de uma família rica. Vai ter uma ótima chance de estudar em grandes escolas e faculdades. Vai poder ser um grande profissional, seguir sua vocação, realizar seus sonhos... Porém... Mudei meu tom de voz. Um tratamento mais frio diminuiria o sorriso se formava no rosto daquele homem. Você pode continuar sendo prejudicial para o mundo a sua volta. Digo mais... Você pode ser uma praga ainda maior sendo rico... E se isso acontecer... Sorri por debaixo da minha máscara. Eu vou usar o martelo. Brandi minha arma com firmeza. Entendeu?
O homem assentiu.
Enfim... Minha voz voltou a um tom mais amigável. Mais alguma pergunta?
Hm... Ele pensou por um instante. Eu... Eu não vou me lembrar de nada disso que aconteceu aqui, certo?
Mais ou menos.
Como assim...?
Você não vai se lembrar de nada detalhadamente. Você não vai ter nenhuma memória concreta. Entretanto... Você pode ter alguns pressentimentos. Seu subconsciente pode tentar te levar a fazer o que é certo... Mas, é claro, você não vai saber disso. Você vai tentar ignorá-lo... E ignorá-lo por medo, muito provavelmente.
Entendo...
O homem, então, olhou ao seu redor. Seus olhos iam de um expectador ao outro na platéia, observando com pressa as almas cujos murmúrios foram a trilha sonora do julgamento.
Eles aprenderam muito aqui hoje...? Ele perguntou.
Sim. Respondi de prontidão. Mas, assim como você, não se lembrarão disso com detalhes na próxima vida deles... Serão todos aconselhados pelos seus subconscientes em suas jornadas que estão por vir... Todos sabem muito bem disso.
O homem parecia pensativo. Ele parecia mais calmo agora que os olhares da platéia não mais o julgavam.
Está pronto? Perguntei. Pronto para sua segunda chance de aprendizado?
Ele não disse mais nada. Com um sorriso sincero no rosto, ele assentiu.
Com um estralar dos meus dedos, um holofote de luz branca surgiu no meio da sala. Lentamente, o homem à minha frente se foi, guiado para o responsável de seu renascimento, alguém de minha confiança.
Exaltada com uma salva de palmas, deixei o tribunal. Em breve, eu deveria retornar. Por ora, respiraria um pouco. Eu precisava de um pouco de ar após tantos julgamentos. Muitas execuções tinham acontecido naquele dia. Foi um alívio ver alguém que eu pude poupar ou, pelo menos, alguém que eu pude adiar a pena por algumas décadas.
Eu achava que poderia me acostumar àquilo. Achava que seria fácil. Porém, ser justa, assumir a responsabilidade por todos os meus erros, era algo praticamente desumano. Não era sempre que segundas chances podiam ser dadas.

Meu coração doía sempre que minhas criações falhavam. Afinal, eu sabia que a culpa era minha. E de ninguém mais.

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