O réu não respondeu. Apenas me lançou um olhar que carregava
um misto de raiva e medo.
—
Quem cala consente... —Murmurei.
— Vamos lá...
—
O que você vai fazer exatamente...? —
Perguntou.
Agora foi a minha vez de não responder. Não queria perder
tempo. Além disso, pegá-lo de surpresa seria benéfico para o julgamento.
Minha mão esquerda foi até a face do réu. Ele nem teve tempo
de reagir. No instante seguinte, eu estava o agarrando pela testa. Seus olhos
pareciam fora de seu controle. Sua boca soltava grunhidos e suspiros enquanto
eu olhava dentro de sua mente. Suas memórias eram minhas para serem analisadas,
até mesmo as que ele não se lembrava, incluindo aquelas que foram reprimidas.
O passado dele não podia ser escondido de mim.
Alguns segundos depois, eu soltei o homem. Ele arfava,
completamente indefeso. Era como se tivesse corrido pela própria vida, exaurindo
suas energias, respirando para recuperar todo o ar perdido.
—
O que você fez...? —
O réu perguntou com dificuldade. —
O que você fez com a minha cabeça...?
—
Apenas coletei um pouco de informação. —
Respondi calma. —
Tudo em pró do seu julgamento.
—
Eu... Eu vi você... Mexendo na minha cabeça... —
Ele hesitou. — Vendo
coisas que não deveria...
—
É parte do meu trabalho.
—
E quem te deu o direito!? —
Ele elevou a voz, mostrando os dentes como presas para mim. — Quem você acha que é para
fazer isso!?
—
Sua juíza. — Não
alterei meu tom de voz. —
Alguém que teve uma vida exemplar na terra... Alguém que foi respeitada pelos fortes...
Alguém que foi temida pelos fracos... Resumindo, sou uma alma boa. Uma das
melhores atualmente. Por isso que estou onde estou, exercendo o cargo que
exerço.
—
Para de falar asneira!
O réu tentou avançar contra mim. Não hesitei em levantar um
dedo.
Mais uma vez, aquele homem caiu de joelhos diante dos meus
pés.
—
Na próxima vez, vou usar o martelo. —
Adverti. — E se você
morrer aqui... É o seu fim. Sem julgamento. Sem segunda chance. Ouviu bem?
Não houve resposta. Aquilo foi o suficiente para mim.
—
Ótimo... — Suspirei. — Então, vamos a sua
pena...
—
Espere! — O réu
exclamou. — Não posso
me defender?
—
Não precisa. Já sei o que fazer com você.
—
Isso... Isso não me parece justo... Não me parece um julgamento justo...
—
Não estamos mais na terra, tolo. Não temos tempo a perder.
—
Mas...
—
Eu sou a juíza nessa corte. —
Eu o interrompi. —
Assim como sou a promotora e a advogada. Eu sou absoluta aqui. — Fiz uma breve pausa para
observar a expressão assustada do réu. —
Mas também sou justa. E é por isso que vou te dar uma segunda chance.
—
Hm? — Ele parecia
confuso. — Como...
Como assim?
—
Você não teve uma vida exemplar. —
Falei num tom sério. —
Pelo contrário, você foi um péssimo exemplo. Você roubou, você mentiu, você
matou... Você viveu apenas por você mesmo. Não hesitou antes de pisar na cabeça
dos outros... Você causou apenas destruição. Isso se refletiu na sua própria
vida. Nunca fez nada de grandioso, algo invejável. Digo mais... Você apenas
invejou a grandiosidade alheia...
O réu queria retrucar, mas não tinha argumentos. Além disso,
parecia se segurar para não recorrer à violência. Ele sabia que a pena não
seria leve.
—
Sabe, existem basicamente dois tipos de almas, boas e más. — Comecei a explicar. — As almas boas buscam
superar seus limites, superando-se, elevando-se mesmo tendo que sofrer para
isso. Elas correm atrás do que querem, do que precisam para viver. Elas
aprendem com os próprios erros. Elas lutam por algo que vale a pena... E, no meio
do caminho, ajudam outras almas em suas jornadas, querendo ou não... — Suspirei. — As almas más, por outro
lado, são inconvenientes, para dizer o mínimo. Elas não buscam o
aperfeiçoamento próprio, não tentam melhorar. Elas não querem ter que sofrer
como as almas boas. Elas preferem se afundar na podridão, puxando qualquer um
que se aproxime para o mesmo abismo. Assim, não se sentem tão fracas, tão
patéticas, tão sozinhas na escuridão... Elas não são nada mais que um obstáculo
desnecessário nas jornadas alheias. E é por isso que eu e os outros juízes
temos que eliminar essas criações falhas.
—
Então... — O homem
parecia mais confuso. —
Então... Eu pertenço à segunda categoria... Mas você não vai se livrar de mim.
—
Bem... Você fez parte da segunda categoria nessa sua última vida. Isso é fato. Porém... Essa
foi sua primeira vida.
— E isso muda
alguma coisa?
— Muda. Porque
não tive nenhuma conclusão definitiva. Posso não ter visto um santo, mas também
não vi um demônio quando olhei suas memórias. Logo, os seus erros podem ter
sido algo um pouco além de você. Afinal, o meio onde você viveu não foi dos
melhores. Uma vida pobre e dura te levando para o crime... Não justifica, é
claro, mas explica. Você desperdiçou uma excelente chance de ser alguém de bem,
alguém esforçado, trabalhador... Espero que não faça o mesmo na sua segunda
vida.
— Espere... — O réu esboçou um sorriso. — Então minha vida vai ser diferente? Eu vou
ser rico?
— Isso não é da
minha jurisdição. — Respondi
serenamente. — Então não
posso te dar os detalhes. Mas... Sim. Você vai ser rico, monetariamente pelo
menos. Vai nascer como o filho de uma família rica. Vai ter uma ótima chance de
estudar em grandes escolas e faculdades. Vai poder ser um grande profissional,
seguir sua vocação, realizar seus sonhos... Porém... — Mudei meu tom de voz. Um tratamento mais
frio diminuiria o sorriso se formava no rosto daquele homem. — Você pode continuar sendo prejudicial para o
mundo a sua volta. Digo mais... Você pode ser uma praga ainda maior sendo rico...
E se isso acontecer... —
Sorri por
debaixo da minha máscara. — Eu vou usar o
martelo. — Brandi minha
arma com firmeza. — Entendeu?
O
homem assentiu.
— Enfim... — Minha voz voltou a um tom mais amigável. — Mais alguma pergunta?
— Hm... — Ele pensou por um instante. — Eu... Eu não vou me lembrar de nada disso
que aconteceu aqui, certo?
— Mais ou menos.
— Como assim...?
— Você não vai
se lembrar de nada detalhadamente. Você não vai ter nenhuma memória concreta.
Entretanto... Você pode ter alguns pressentimentos. Seu subconsciente pode
tentar te levar a fazer o que é certo... Mas, é claro, você não vai saber
disso. Você vai tentar ignorá-lo... E ignorá-lo por medo, muito provavelmente.
— Entendo...
O
homem, então, olhou ao seu redor. Seus olhos iam de um expectador ao outro na platéia,
observando com pressa as almas cujos murmúrios foram a trilha sonora do
julgamento.
— Eles
aprenderam muito aqui hoje...? — Ele perguntou.
— Sim. — Respondi de prontidão. — Mas, assim como você, não se lembrarão disso
com detalhes na próxima vida deles... Serão todos aconselhados pelos seus
subconscientes em suas jornadas que estão por vir... Todos sabem muito bem
disso.
O
homem parecia pensativo. Ele parecia mais calmo agora que os olhares da platéia
não mais o julgavam.
— Está pronto? — Perguntei. — Pronto para sua segunda chance de aprendizado?
Ele
não disse mais nada. Com um sorriso sincero no rosto, ele assentiu.
Com
um estralar dos meus dedos, um holofote de luz branca surgiu no meio da sala.
Lentamente, o homem à minha frente se foi, guiado para o responsável de seu
renascimento, alguém de minha confiança.
Exaltada
com uma salva de palmas, deixei o tribunal. Em breve, eu deveria retornar. Por
ora, respiraria um pouco. Eu precisava de um pouco de ar após tantos
julgamentos. Muitas execuções tinham acontecido naquele dia. Foi um alívio ver
alguém que eu pude poupar ou, pelo menos, alguém que eu pude adiar a pena por
algumas décadas.
Eu
achava que poderia me acostumar àquilo. Achava que seria fácil. Porém, ser
justa, assumir a responsabilidade por todos os meus erros, era algo
praticamente desumano. Não era sempre que segundas chances podiam ser dadas.
Meu
coração doía sempre que minhas criações falhavam. Afinal, eu sabia que a culpa
era minha. E de ninguém mais.
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