O Julgamento
Ele acordou com o coro caótico de mais de mil vozes.
Seus olhos se abriram rapidamente. Arregaladas, as orbes foram
de um canto para o outro sem enxergar. Isso é, sem enxergar com clareza. Com o tempo, sua visão iria
voltando ao normal, cada vez menos turva, acostumando-se à cena. Por ora, não
devia estar conseguindo ver mais que manchas brancas numa sala negra.
Ofegante e atordoado, o homem tateou o chão cinzento à sua
frente. Era rígido demais, desconfortavelmente frio, igual ao solo onde sentava.
Como nada segurava suas pernas no lugar, levantou-se sem
hesitar com um movimento rápido.
O simples ato, porém, foi recebido com um turbilhão de
vozes. Cochichos, resmungos, exclamações, gritos. Tudo se misturou numa
amalgama das mais diversas e exageradas reações.
Confuso, o homem estreitou os olhos enquanto olhava ao
redor. As imagens deviam parecer mais nítidas agora. Entretanto, ele parecia
ainda mais confuso com o que seus olhos o mostravam.
A sala se revelou ser, na verdade, uma espécie anfiteatro
coberto por um domo. O teto, as paredes e o piso pareciam ser feitos todos do
mesmo tipo de pedra cor de grafite. Bolas de fogo branco flutuavam pela sala,
iluminando-a com um brilho pálido. Nas arquibancadas, centenas de pessoas de
diferentes idades e etnias, todas vestindo túnicas brancas, observavam o homem
no centro do palco rebaixado. Seus olhares inquisidores pareciam julgar cada
movimento do sujeito. Cada uma das palavras que saiam de suas bocas no meio
daquele enxame de palavras parecia criticar o confuso alvo.
—
Um tiro na têmpora... —
Murmurei com calma.
O homem se voltou para trás abruptamente. Seu semblante
aflito encontrou uma figura diferente das demais. Era uma mulher que ele
julgava não ser humana.
Aquele pensamento não estava completamente errado.
Ele viu a armadura que a desconhecida trajava, feita
completamente de bronze, sem imperfeições, combinando com o grande martelo que
carregava junto na mão direita. A túnica preta que cobria o torso se estendia
até um pouco abaixo da cintura, encobrindo boa parte da couraça de metal
alaranjada. Nela, palavras de um idioma estranho para aquele homem estavam
bordadas em vermelho sangue. Na cabeça, o capuz negro e uma máscara de bronze
se uniam para esconder a face daquela que as vestia, mantendo suas feições em
segredo. Apenas seus olhos azuis como o céu podiam ser vistos.
Aquela era eu.
—
Foi uma morte rápida... —
Continuei. — Uma
morte indolor...
A expressão do sujeito se contorceu. Trincando os dentes, ele
abafou um grito gutural de dor. Era como se uma ferroada no lado esquerdo da
face o atingisse de repente, lembrando-o do ocorrido.
—
Uma morte que talvez tenha sido boa demais para você... — Falei num tom solene. — Não acha?
O homem olhava para mim. Eu conseguia sentir sua irritação.
Porém, ele nada podia fazer. O coitado parecia estar sofrendo. A cada instante
que se passava, mais flashes de memórias penetravam sua mente. Eram as lembranças
de uma vida que havia acabado de acabar. Porém, ele não parecia saber disso.
—
Aposto que você tem muitas perguntas... —
Falei o óbvio. —
Então, por que não respira fundo, toma coragem e as pergunta?
—
Hm... — O homem grunhiu.
Sob um mar de olhares inquietos, ele obviamente não estava confortável. — O que aconteceu comigo? — Ele perguntou com certa
irritação. — Quem
lugar é esse...? Quem são todas essas pessoas...? Quem... Ou o que... É você?
— Várias
perguntas, várias perguntas... —
Suspirei. — Vamos
responder cada uma delas... Mas aos poucos, ok? —
Sorri por debaixo da máscara. —
Primeiramente... Vou responder sua terceira pergunta... Essas pessoas... — Apontei na direção das
arquibancadas que, agora, faziam silêncio para me ouvirem. — Elas estão aqui para
aprender... Sobre você, sobre a sua vida... Sobre a vida, melhor dizendo... Por isso que estão à espera do seu
julgamento.
—
Julgamento...? — O
homem arregalou os olhos, parecendo só ter ouvido as minhas últimas palavras. — Então... Eu sobrevivi ao
tiroteio? — Ele
sorriu um sorriso que durou apenas um segundo. —
E... Eu fui preso...? Ótimo...
—
Não tire conclusões precipitadas.
—
Como assim?
—
Deixe-me responder suas outras perguntas, ok?
O homem hesitou um pouco, parecendo apreensivo. Porém,
acabou assentindo.
—
Ótimo. — Respirei
fundo. — Não vou
ficar enrolando... —
Cruzei os braços. —
Você realmente morreu no tiroteio com a polícia na noite passada.
—
O quê!?
—
E é por isso que você está no, digamos, Purgatório.
—
Ah... — Ele soltou
uma risada nervosa. —
Ótimo... Você é louca. —
A voz dele carregava mais raiva do que eu poderia ter antecipado. — Todos aqui são, com
certeza... Fala a verdade. O que é isso? Um tipo de culto? É isso, não é? O que
vocês querem de mim? Vão me matar? Vão me sacrificar em nome do diabo, hein!?
—
Se você quiser vê-lo, posso te mandar pro reino dele sem problemas. — Adverti. — Esse pode ser o seu
destino. Afinal, é como eu já disse... Esse é seu julgamento.
—
Julgamento... — O
homem riu com escárnio. —
Vai julgar o que mesmo?
—
Sua vida. — Respondi
friamente. — Suas
ações. Todas elas... Se eu assim desejar.
O homem começou a rir. As centenas de pessoas começaram a
cochichar, sem entender muito bem a reação do réu. Tentei manter a calma,
porém, eu não tinha muito tempo a perder.
Apontei para o alto, um pouco acima da cabeça daquele
infeliz homem. No instante seguinte, ele caiu de joelhos, esbravejando de dor
enquanto a platéia observava perplexa. Ele podia sentir o corpo dele sendo
esmagado lentamente pela gravidade, como se o ar fosse pesado demais para se
sustentar sobre os ombros.
—
Fazia tempo que eu não tinha que fazer isso... —
Comentei enquanto me aproximava do réu. —
Fazia tempo que não via uma alma tão rebelde quanto a sua...
Aproximei meu martelo na direção do topo da cabeça daquele
homem. Lentamente, ele levantou os olhos na direção da arma. O corpo dele se
encolheu quando a ponta de metal gelado tocou sua testa.
—
Não parece mais tão valente agora. —
Caçoei. — Talvez,
agora, esteja disposto a ter um julgamento justo... — Não consegui segurar um breve riso. — Não é mesmo?
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