A Mina Mal Assombrada
Não existem assombrações, nem vida após a morte, nem nada
dessas bobagens místicas. A única função dessas besteiras é entreter os
entediados ou, então, disciplinar os tolos. Nada como contar para uma criança pequena
sobre algum tipo de bicho papão pra colocá-la na linha, não? E o mesmo serve
para quando os tolos crescem. Diga a eles que um lugar é assombrado, ou que
algum objeto é amaldiçoado, que os idiotas vão preferir manter distância de
seja lá o que for.
A obediência pelo medo é muitas vezes mais eficaz do que a
pelo respeito... E é por isso que a lenda da mina mal assombrada da minha
cidade faz sentido. Ninguém deveria entrar lá. Ninguém tem um motivo para
entrar lá. Toda a prata daquele lugar já havia sido mandada para longe há, pelo
menos, um século. Logo, o lugar deveria permanecer vazio.
Entretanto, lendas sobre fantasmas dos antigos mineradores
eram tão antigas quanto a própria mina. É claro que alguns homens podem ter
morrido em algum acidente mais de cem anos atrás. Era uma mina, uma sequência
de túneis que passavam por debaixo de toneladas de pedra e terra. Um golpe
errado de uma picareta poderia causar um desabamento, soterrando dezenas ou
isolando-os do resto do mundo, deixando-os para morrer de fome ou sede.
Agora, se você acha plausível que um espírito, um corpo não
físico, fique nesse mundo, preso num túnel, procurando por prata com uma
picareta, matando qualquer mortal que entre em seu caminho e tente roubar o que
ele tanto procura... Desculpe-me. Se você acha isso plausível, você não pode
ser muito inteligente.
De fato, você é tão inteligente quanto os outros caipiras da
minha atual cidade se você acredita numa besteira dessas. Parabéns.
Porém... Devo admitir que eu também sou um idiota. Talvez
não tanto quanto você, mas sou um mesmo assim. Meus motivos, entretanto, são
diferentes.
Aos dezessete anos, meu círculo de amigos era composto de
cinco fracassados. Eu já estava enjoado deles. Fazia tempo. Eu ficava entediado
ao ponto de ficar irritado às vezes. Era como se nenhum deles fosse capaz de
proferir uma palavra com mais de quatro sílabas, incapazes de pensar por si só.
Juro, se não fosse pela cerveja barata que sempre traziam, este que vos fala já
teria ido para bem longe, em busca de companhias mais inteligentes... Se
houvesse algo do tipo na minha cidade.
Porém... Admito que tinha um outro motivo para eu continuar
por perto deles...
Julie. Esse era o nome dela. Ela... Era diferente dos
demais. Devo dizer que não é das mais inteligentes, mas... Ela era especial.
Bonita, mas não gostava de aparecer. O jeito desleixado que ela se vestia a
fazia parecer, de vez um quando, um cara de cabelos compridos e cílios longos.
Mas o sorriso carinhoso continuava lá. Sempre. Bem como os olhos verdes e
carinhosos. Bem os lábios rosados e delicados. Bem como as bochechas alvas que
coravam com facilidade quando ria ou bebia um pouco demais.
Gentil, atenciosa, carinhosa, sempre serena... Ela era boa
demais para um babaca que nem Diego.
O cara era o típico riquinho mimado. Um magricela tatuado,
com pose de valente, cabelinho arrumado, sempre vestindo roupas caras que
resolveu desbotar ou cortar um pedaço por motivos de estilo. Como todo bom espécime da raça, se metia em problemas
constantemente por achar que as regras não se aplicavam a ele, levando o resto
dos amigos junto para a delegacia. Entretanto, ter um pai rico e influente na
cidade era o ás que estava sempre em sua manga.
Por mais que o sujeito me irritasse, eu confesso, andar
junto com ele podia ser um tanto quanto divertido às vezes. Eu não vivia muito antes de me mudar para cá.
Era muito quieto, anti-social até, raramente saia de casa. Agora a situação
havia mudado. E acho que é por isso que, no final das contas, eu tolerava o Diego
e o seu bando. Talvez Julie também se sentisse assim. Talvez ela, que consegue
ver sempre o lado bom das pessoas, visse algo que eu nunca seria capaz de ver
naquele mauricinho metido à rebelde. Ou talvez ela só fosse burra demais. Vai
saber...
Enfim, deixe-me contar a você, caro leitor, sobre a pior decisão
que já tomei.
Estava uma noite linda. No céu cor de ébano, as poucas
nuvens arroxeadas pareciam fugir para longe. As estrelas prateadas brilhavam
como chamas intensas. A gigantesca lua branca fazia seus observadores ficarem
de queixo caído ao direcionarem seus olhares a ela, e eu estava incluso nessa
afirmação.
Pelas colinas, o meu grupo (ou melhor, o grupo de Diego) andava sem rumo
aparente, sem ninguém para nos impedir. Cada um dos cinco tinha uma garrafa de
cerveja na mão e nenhum papo remotamente interessante em mente. Sob o efeito de
álcool, era fácil rir um pouco de vez em quando e, como eu não era de ficar
contrariando o que os outros falavam, todos seguiam sem problemas comigo, como
sempre.
Algumas horas depois, as cervejas já haviam acabado e eu,
infelizmente, já estava sóbrio.
Olhei para a minha direita. Diego andava com seu braço
envolvendo a cintura de Julie, cochichando algo no ouvido dela enquanto a
garota sorria. Desviei meu olhar. Um pouco atrás de mim, estavam Gustavo e Gabriella,
os outros dois integrantes do grupo que, sinceramente, não tenho nada de
interessante para contar sobre os dois. Eles viviam a vida sem ter um
propósito, sem ambição, apenas sobrevivendo sem saber o que fazer no dia
seguinte. Naquele momento, ambos estavam completamente chapados graças aos
baseados que haviam fumado há pouco, como o de costume.
Quando voltei a olhar para frente, parei de andar. Percebi
que estávamos a poucos metros da entrada do lugar nefasto.
—
Cara... — Gustavo
falou com a voz arrastada. —
Olha a tal da mina aí...
Foi apenas nesse momento que o resto do bando percebeu a
existência do lugar.
Na entrada da caverna de rochas acinzentadas, eu já podia
ver as placas e faixas com avisos para manter as pessoas longe. A passagem
havia sido bloqueadas por tábuas de madeira que, nitidamente, foram quebradas.
—
Cara... — Agora era Gabriella
que falava. — A gente
ta tão perto... Sabe o que a gente devia fazer...?
—
Entrar lá...? — Gustavo
riu. — Isso seria do
caralho...
— Né?
— Gabriella abriu um
sorriso que a fez parecer ainda mais estúpida. A garota, então, sacou uma
câmera de vídeo do bolso do casaco como se fosse algo completamente normal. — A gente podia tentar
achar uns fantasmas... E tentar filmar uns deles... — Algo me dizia que a filmadora tinha,
normalmente, uma utilidade bem diferente. —
Quem topa?
Ela levantou a mão logo em seguida, assim como Gustavo.
Apenas eles, é claro, queriam ir.
—
Só a gente mesmo...? —
Ela exibia o exato oposto de um sorriso agora em seu semblante. — Que chato...
—
Não é uma boa ideia. —
Advertiu Diego, tentando soar maduro e responsável. — Vocês dois não estão pensando direito...
—
Ele ta certo. — Julie
concordou, ainda agarrado no namorado. —
Se a gente perguntar pra vocês mais tarde se vocês querem ir, vocês vão falar
que não. Acreditem.
—
Ah... — Gustavo
suspirou. — Qual é...
—
Já sei! — Exclamou Gabriella.
— Vamos ficar só na
entrada... Tipo, vamos dar uns... O quê? Uns dez, vinte passos pra dentro da
mina... Ok? Aí a gente volta...
—
É! — Gustavo
concordou usando seu vasto vocabulário de maconheiro.
—
Nada vai dar errado... —
Gabriella continuou. —
A gente só tem que ficar junto, né? Além do mais... — Ela foi andando, quase cambaleando, até Diego
e apontou um dedo na direção do rosto dele, quase acertando o nariz empinado. — Você tem aquilo... Né?
—
Aquilo...? — Diego
ergueu uma sobrancelha. —
Do quê...?
—
A arma! — Gustavo
gritou alto o suficiente para acordar um espírito da mina, se houvesse algum.
—
Ah... — Ele levou uma
mão o lado esquerdo da cintura e a apalpou. —
É... Tá aqui...
A arma. Um revólver que o pai comprou para ele, já prevendo
o tipo de confusão que o filho se meteria. Um ato um tanto quanto responsável,
isso é, se você não se importa com a lei que permite o porte de armas de fogo
no nosso país apenas a policiais, a alguns seguranças e aos militares.
Magricelas de dezessete anos com pais milionários não estão inclusos na lista.
—
Viu...? — Gabriella
sorriu. — Se houver
algum problema... Você protege a gente!
—
E atira! — Gustavo,
mais uma vez, contribuiu muito para o diálogo.
—
Não, ok? — Diego,
mais uma vez, tentou soar como o responsável do grupo. — Isso não é um brinquedo. É só pra ser usado
em emergências.
—
Hm... — A garota
levou o indicador ao lábio, pensativa. —
Então... Você poderia me emprestar a arma...?
—
Agora você ficou louca... —
Julie resmungou.
—
Por quê? — Gabriella
levou as mãos à cintura. — Só você pode pegar na
arma dele, é?
Ela sorriu. Julie mostrou os dentes. Gustavo riu. Diego
tentou se manter indiferente. E eu? Tentei apenas tirar a imagem da cabeça de
uma certa pessoa pegando na arma de outra.
—
Vamos parar com isso, ok? —
Diego suspirou. — A
gente não precisa entrar lá. E a gente não vai entrar lá.
—
E você não vai atirar...? —
Gabriella indagou, parecendo triste agora.
—
Não, não vou.
—
Ok...
Sem dizer mais nada, a garota deu meia volta e começou a
correr em direção à mina.
—
Espera! — Diego
exclamou. — Pare!
—
Ou o quê? — Gabriella
parou de correr por um instante e olhou na nossa direção. — Vai atirar em mim,
gostosão? — Ela riu. — Vamos, Guto!
Gustavo, então, olhou para nós.
—
Já volto. — Ele falou
rindo e, então, começou a correr.
Quando percebi, estavam todos a correr, com a exceção sendo
eu mesmo. Sinceramente, aquilo não valia o esforço físico. Andar a passos
largos era o máximo que eu poderia fazer.
Cinco segundos se passaram e Gustavo conseguiu tropeçar, nem
sei no que exatamente, caindo de cara no chão num baque surdo. Enquanto Diego e
Julie se aproximavam do maconheiro caído, Gabriella entrava na caverna.
—
Droga... — Diego
trincou os dentes.
—
Até que a Gabi corre bem pro estado dela, né, amor...? — Julie comentou um pouco impressionado. Eu
tinha que concordar.
—
É... — Ele assentiu
e, então, olhou para Gustavo, cutucando o corpo dele com a ponta do pé. — Será que ele ainda ta
acordado...?
—
Pouco provável. —
Respondi. — Em todo
caso, fique de olho nele. Eu já volto.
—
Pra onde você vai...? —
Julie perguntou.
—
Pra mina... Trazer a Gabi de volta antes que ela se machuque muito.
—
E você acha que vai sozinho? —
Diego indagou.
—
E você acha que tem coragem de entrar lá? —
Retruquei.
Ele não respondeu. O casal não falou nada. Sabia que o medo
irracional deles era forte demais.
—
Foi o que eu pensei. —
Bufei. — Já volto.
Não percam o Guto de vista.
—
Victor... — Julie
murmurou. Aliás, sim, Victor é o meu nome. —
Cuidado... Ok?
Normalmente eu não ligo para palavras como essas.
Geralmente, soam muito falsas. Porém, foi Julie que as disse, então...
—
Ok. — Sorri. — Não se preocupe.
—
Ei, Vic... — Agora
foi uma voz menos agradável que me chamou.
Eu olhei para Diego. Sem hesitar, ele sacou o revólver da
calça e o estendeu até mim, apontando o cabo da arma na direção do meu peito.
— Pegue. —
Diego pediu.
— Pra quê? —
Indaguei. — Pra eu atirar num fantasma se ele vier
me pegar? Não acho que vai dar muito certo...
— A gente não tem como saber o que tem lá
dentro... — Ele explicou.
Eu olhei para a
arma. Então, olhei para os rostos preocupados de Diego e Julie. Eu podia ver em
seus olhos que estavam com medo.
— Valeu... —
Eu suspirei. — Mas vou ter que deixar passar.
— Mas...
— Eu sei me virar. — Falei rispidamente. — Além disso, não preciso de uma arma na
mão pra me sentir um homem...
Com isso, dei às
costas ao casal.
Meus próximos
passos me levaram à entrada da mina. Senti um vento gélido bater em minhas
costas enquanto eu encarava a escuridão diante dos meus olhos. Um mau
pressentimento atravessou minha espinha com um calafrio.
Eu cerrei os
meus punhos e respirei fundo.
— Droga... —
Murmurei, então, dei um passo à frente.
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