Sorrow
Tristeza
No dia seguinte...
“Então...esse é o lugar...”.
Tristan chegou a um vilarejo
que era atravessado por uma estrada de terra em meio a um conjunto de colinas. Nuvens
escuras cobriam o céu fazendo com que o dia se assemelhasse à noite. As colinas
verde-musgo pareciam não ter vida. As flores, outrora vivas e perfumadas,
estavam agora estavam morrendo e se decompondo, fazendo com o aroma no ar fosse
uma mistura de um leve perfume doce com um odor pútrido. Uma camada densa de
névoa cobria as canelas de Tristan. O ar gélido do local deixava o ambiente
ainda mais desconfortável. As casas do local estavam em um estado deplorável. A
madeira das paredes estava envelhecida, quase se quebrando, cheias de
rachaduras. Muitas já haviam sido abandonadas. Poucos sons eram ouvidos do vilarejo.
Os moradores andavam cabisbaixos e praticamente não falavam. Apenas alguns
murmúrios e sussurros eram emitidos pelas pessoas. Enquanto Tristan caminhava
pela cidade, alguns moradores levantavam ligeiramente a cabeça e o fitavam. Por
uma fração de segundos, o olhar de alguns deles brilhavam com uma faísca de
esperança, antes de voltarem a se tornar vazios.
“Eu não esperava que a situação
aqui estivesse tão crítica...”.
De repente, um homem que estava
sentado em frente a uma casa abandonada se levantou e caminhou lentamente até
Tristan.
—
Você... — O homem disse
com a voz fraca. —
Você veio nos ajudar?
A figura que estava parada a
frente de Tristan era, no mínimo, peculiar. O homem trajava o peitoral, a bota
esquerda e a manopla direita de uma armadura de ferro levemente enferrujada.
Por baixo dela, ele vestia roupas simples feitas de algodão. A camisa de mangas
compridas era branca. A calça, verde. Os sapatos de couro, pretos. O olhar no
rosto do homem era de desespero. A pele era extremamente branca. O cabelo
castanho estava era desgrenhado. Os olhos negros eram quase opacos. O rosto era
fino, quase mal nutrido, cheio de cicatrizes. Os lábios estavam rachados e o
nariz era levemente pontiagudo.
—
Eu tentarei, pelo menos. —
Tristan respondeu não muito animado.
—
Eu...lhe agradeço. —
O homem esboçou um sorriso. —
Eu...me chamo Sorrow. Eu sou o único guarda da cidade que sobreviveu o ataque
da deusa.
—
E como você conseguiu?
—
Nem eu sei ao certo... —
Sorrow suspirou. — Um
dia, alguns dos moradores ouviram o som de uma mulher choramingando. Porém, nós
não tínhamos certeza de onde vinha. O som desaparecia muito rapidamente... — Ele respirou fundo. — Entretanto, o problema
foi se agravando. Com o passar dos dias, o choro se tornava mais alto e
prolongado. Algumas pessoas ficaram assustadas, em especial, as crianças. — O homem começou a
caminhar vagarosamente em direção a uma parede de rochas cinzentas. Tristan o
acompanhava na mesma velocidade. —
Naquela época...nós não tínhamos como saber. Alguns de nós ficaram um tanto
quanto animados com esse problema. Esse vilarejo...era um lugar tranqüilo, mas
cheio de vida. Nós vivíamos vidas simples como camponeses, cuidando de
plantações, gado e, eventualmente, comércio. Nossa ligação com os ideais do
Lorde Nidhogg sempre foram fracas. Nós apenas ajudávamos como podiam os
mercenários e assassinos deles que precisavam de uma cama e uma refeição.
Poucos de nós tinha contato com esse mundo de matança de vocês. Logo, algumas
pessoas com espírito aventureiro ficaram realmente animadas com o mistério. — Sorrow chegou à parede e
encostou suas costas. —
Eu...fazia parte do grupo. Eu era um dos que queriam desvendar o mistério. Eu
que convenci outras pessoas a me seguir. Eu que...levei metade dos guardas da
cidade comigo. Eu...e mais alguns amigos... —
Ele respirou fundo. —
E, também, o meu irmão. Ele...era tão novo...tão... — Lágrimas brotaram do canto dos olhos de
Sorrow. — Ele só
tinha dez anos de vida. Ele...tinha tanto ainda para viver. — As lágrimas agora
escorriam pelo rosto do homem. —
Eu...deveria ter protegido ele. Eu era o irmão mais velho dele. Eu era um
guarda da cidade. Eu era um guerreiro. Eu...eu...deveria ter protegido ele. Eu
fui...um inútil E é isso o que sou agora. Um inútil. Apenas a sombra de um
homem.
—
Eu...sinto muito. —
Tristan pousou sua mão esquerda no ombro direito de Sorrow. — Eu sei como é perder
alguém importante... —
A voz do guerreiro das Trevas era calma e tranquilizadora. — Mas...eu preciso de toda
a informação que você puder me fornecer sobre a Deusa da Tristeza. Por favor.
—
Você...não entende. Essa minha dor...ninguém pode entender. Esse lugar...tudo o
que já aconteceu aqui... —
Sorrow enxugou as lágrimas do rosto com a mão esquerda. —Tudo isso me assombra...mas, também me prende
a esse lugar.
—
Como assim?
—
Eu disse. Você não tem como entender.
—
Você poderia tentar me explicar.
—
Eu não posso. Eu não consigo.
—
Você...recusa a minha ajuda, então?
Sorrow bufou e olhou para
baixo. Após alguns segundos, ele olhou diretamente para os olhos de Tristan.
—
Eu não sei o que ela fez exatamente... —
Sorrow admitiu. —
Ela...entrou na nossa mente...invadiu o nosso corpo...corrompeu a nossa alma.
Eu realmente não sei e nem quero saber. A única que sei é que o resultado
foi...devastador...horrendo...torturante.
—
Você viu algo, então?
—
Sim...
—
O que você viu?
Sorrow respirou fundo.
—
Os meus maiores medos...os meus maiores arrependimentos...os piores momentos da
minha vida. — O homem
murmurou. — Tudo
isso...em questão de segundos. Parecia uma eternidade, mas, quando sai do covil
daquele monstro...o sol ainda estava no céu. Quando retornei ao vilarejo,
disseram-me que haviam se passado apenas alguns poucos minutos. — Ele cerrou os punhos. — Mas...por mais abalado
que eu fiquei com aquele instante de terror...bem, apenas digamos que aquilo
não foi nada comparado ao que estava por vir.
—
Os outros... — Disse
Tristan. — Os outros
que estavam com você. O que aconteceu com eles?
—
Ah...foi exatamente esse o começo do meu desespero. Naquele momento, os pesadelos
pararam de me assustar. O terror aconteceu bem ali na minha frente...e era
real. Eu poderia ter morrido...como os outros.
—
Eles...acabaram se matando?
—
Sim...todos eles. Todos eles se suicidaram...bem na minha frente. Inclusive o
meu irmão...
—
Eu...sinto muito.
—
Tente imaginar essa cena. Seus companheiros, amigos e até um membro de sua
família...alguém que você amava profundamente...simplesmente sacando espadas,
adagas e machados e se matando. O sangue jorrou pelas paredes da caverna. O
chão ficou vermelho. Eles rasgaram as próprias gargantas com
adagas...atravessaram os próprios peitos e barrigas com espadas...golpearam as
próprias faces com machados...
A expressão no rosto de Tristan
se retorceu.
—
Nem você, ser das Trevas consegue se manter frio diante de algo assim... — Sorrow murmurou.
—
Não mesmo... —
Tristan concordou. —
Eu já havia lhe dito. Eu já perdi entes queridos.
—
É verdade. — Ele
coçou o queixo. —
Quem, exatamente?
—
Ah...já perdi vários amigos, mas...nada que se compare a dor de perder um pai,
uma mãe e até uma mulher que eu jurava ser o amor da minha vida.
—
Entendo. Então...talvez você entenda a minha dor.
—
Eu creio que sim.
—
Mas...eu temo que eu sinto algo que você não sente.
—
O que seria?
—
Culpa.
—
Culpa...pela morte de seu irmão...e pelos outros que foram junto com você?
—
Sim...mas não só por causa deles.
—
Como assim?
—
Depois daquele dia...o choro da deusa se tornou ainda mais alto e assustador.
Com o tempo...pareciam mais gritos de desespero. E...com o passar de mais alguns
dias, eu tive certeza disso. Os gritos...começaram a enlouquecer os moradores.
Muitos já estavam imersos em um mar de tristeza. Aqueles que morreram naquele
dia...eram entes queridos de muitos dos moradores. Os meus pais...ficaram
devastados com a perda do meu irmão. —
Ele respirou fundo. —
Infelizmente, os guardas restantes, juntamente com alguns dos moradores que
queriam vingança pelos parentes e amigos mortos, resolveram voltar ao lugar.
Dessa vez...não houve sobreviventes. Pelo menos, não creio que ninguém retornou
para cá, pelo menos. Ninguém mais ousou entrar naquele lugar.
—
E foi nessa época que as forças das Trevas vieram para tentar resolver o
problema?
—
Sim...mas foi tudo em vão. Contra essa deusa...números não têm força. Ela
consegue atacar todos os que entram em sua caverna ao mesmo tempo. — Ele trincou os dentes. — Uma única pessoa. Uma
única pessoa pode resolver esse problema, mas...ela tem que ser forte. Não só
fisicamente, mas, também, mentalmente.
—
Eu darei o meu melhor então. Eu matarei a Deusa da Tristeza. Isso é uma
promessa.
Sorrow esboçou um sorriso.
—
Eu sinceramente espero que você consiga. —
O homem estendeu a mão para Tristan.
O guerreiro das Trevas apertou
a mão de Sorrow e sorriu.
—
Obrigado. — Tristan
agradeceu. — Não só pelas
informações, mas também pela confiança.
—
Ora...alguém neste lugar tem que ter esperança em alguma coisa. — Sorrow olhou em volta com
o olhar cheio de pesar. —
Você...sabe quanto tempo se passou desde que eu entrei naquela caverna?
—
Desculpe-me, eu não sei.
—
Então...tente adivinhar. Olhe para este lugar. Olhe para as pessoas. Olhe para
mim. Pense em tudo o que eu te contei. Quanto tempo você acredita que se
passou?
—
Ah...alguns anos...talvez cinco.
Sorrow conseguiu rir. A risada,
apesar de fraca, animou um pouco o local.
“Ah...ótimo. Alguém conseguiu
mostrar um sinal de felicidade neste lugar, mas...por quê?”.
—
Você deve estar intrigado pela minha reação, não é? — Sorrow indagou.
—
Sim... — Tristan
respondeu. —
Eu...acredito que a minha resposta não estava correta.
—
Exatamente.
—
Bem...se forem mais de cinco anos, eu creio que Nidhogg ignorou este problema
por tempo demais.
—
Na verdade, ele respondeu o nosso chamado rapidamente. Ele até te enviou sem
muita delonga.
—
Ah...entendo. Então...quanto tempo se passou?
—
Um mês.
—
O quê!? — Tristan
indagou com um grito. O rosto do guerreiro das Trevas tinha uma expressão de
tanto medo tanto surpresa estampada.
—
É exatamente o que você ouviu.
—
Não...não pode ser. Como?
—
Bem...com os gritos de desespero, tragédias vieram. Foi como...se o próprio
lugar se tornasse triste...e incentivasse a tristeza.
—
Então...o próprio poder da deusa fez com que tudo ficasse desse jeito? O céu?
Os animais? As flores? O próprio ar?
—
Sim. — Sorrow
suspirou. — E, com
isso, vieram os suicídios daqueles que nem foram para a caverna. O lugar em si
se tornou uma atmosfera propícia para isso.
—
E vocês não conseguem sair daqui?
—
Não. É como se a própria energia e vontade de viver deixassem os nossos corpos.
A única vontade que nos resta é...bem, de tirar as nossas próprias vidas.
—
Entendo. Bem, nesse caso, você é bem forte por resistir a essa vontade.
—
Ah...creio que sim. Eu e os outros sobreviventes...somos bem fortes, hein? — Ele esboçou um sorriso. — Então os outros foram fracos...
—
Eles foram induzidos a se matarem. A culpa é da Deusa da Tristeza.
—
Mesmo assim...eles foram fracos. Não há como negar. Eles não conseguiram buscar
forças uns dos outros. Eles perderam a esperança. — Sorrow suspirou. — Eu sinceramente não sei como eu ainda estou
de pé. Meu irmão se matou diante de meus olhos. Meu pai morreu na segunda
expedição à caverna. Minha mãe se matou pela perda dos dois e, também, de
outros.
—
Ah...eu...
—
Não precisa dizer nada. Eu sei que você não é frio. Você se sensibilizou com
tudo o que aconteceu comigo e com este vilarejo. Eu sei disso. — Ele respirou fundo. — Você...
Antes que Sorrow pudesse
continuar a falar, um som agudo se espalhou pelo local. Gritos violentos de uma
mulher pareciam vir de todas as direções. Os moradores do vilarejo tampavam os
ouvidos com as mãos, encolhiam-se sentados e tentavam não chorar.
“Droga...então, esse é o poder
da Deusa da Tristeza...”.
Tristan agüentava os gritos
ainda de pé sem tapar os ouvidos, apesar da expressão de angústia no rosto.
—
Vá! — Sorrow gritou.
Sua voz soava fraca em meio aos gritos da deusa. —
Mate a Deusa da Tristeza! —
O homem caiu de joelhos. —
Por favor! — Ele
apontou na direção de um pequeno morro. —
Lá! A caverna fica lá!
Tristan assentiu com a cabeça.
Em um instante, ele se transformou em trevas e seguiu rapidamente até o local.
Conforme o guerreiro se aproximava do local, os gritos se tornavam mais altos e
perturbadores, beirando o insuportável.
“Maldição...!”.
Tristan aterrissou na entrada
da caverna. Os gritos pararam. Nenhum som podia ser ouvido de nenhum lugar.
Tristan olhou para a escuridão a sua frente. Ele respirou fundo e entrou no
lugar com sua espada em punho.
“Espero que este lugar não seja
muito grande...”.
O interior da caverna era
úmido. Dezenas de fungos e insetos mortos estavam pelo chão e paredes do local.
Os ecos de cada passo de Tristan ressoavam pela caverna. Após alguns segundos
dentro do lugar, alguns chiados e gemidos começaram a podiam ser ouvidos.
“Espero estar me
aproximando...”.
Tristan apertou o punho da
espada com força. Os gemidos se tornaram mais altos. Sussurros perturbadores
começaram.
—
Mais perto... — Uma
voz feminina chamou. —
Venha...mais perto...
Tristan trincou os dentes. Ele
estava imerso na escuridão da caverna, mas podia enxergar perfeitamente. De
repente, um flash de luz surgiu.
—
Droga! — O guerreiro
gritou.
De repente, uma pequena câmara
ficou iluminada a frente de Tristan. As paredes e o chão eram azulados. Bem a
frente do guerreiro, uma mulher olhava para o chão. Ela usava um vestido longo
que parecia ser feito de remendos de trapos cinzentos. O cabelo longo e liso
era tão escuro quanto o de Tristan. De repente, ela levantou a cabeça em um
movimento brusco. O rosto da mulher era azulado e cheio de cicatrizes. Os olhos
eram simplesmente buracos escuros no rosto de onde escorria sangue. O sorriso
maníaco exibia dentes tortos e amarelados.
—
Que bom que você pôde vir. —
A Deusa da Tristeza disse antes de soltar mais um grito ensurdecedor.
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