domingo, 19 de junho de 2016

Conto de Terror 14

O Destino tem um Senso de Humor Peculiar


Sempre me considerei um sujeito bem humorado. Otimista, sempre consegui ver o lado positivo de qualquer situação, sempre fui abençoado com a capacidade de levantar o moral dos que estavam ao meu redor. As pessoas pareciam se aproximar de mim como uma mariposa atrás de uma chama e, como uma chama, eu aconchegava quem se aproximasse.
Foi assim que eu a conheci: a mulher da minha vida. Ninguém teve tanto impacto na minha vida quanto ela, disso eu tenho certeza.
Aquele anjo me presenteou de várias formas, retribuindo a minha bondade inúmeras vezes, algo que ninguém nesse mundo parecia ser capaz de fazer. Era inacreditável. Era lógico que eu acabaria de apaixonando por ela e, com o tempo, receberia o maior de todos os presentes: a minha adorável filha.
Aquela criança era simplesmente perfeita. A minha princesa. A razão do meu viver. Eu me sacrificaria pela minha filha sem pensar duas vezes.
Eu sorria quando ela gargalhava. O mundo parecia um paraíso por alguns instantes preciosos, instantes que me acalmavam mesmo nas horas mais difíceis.
Meu estômago se revirava quando ela estava infeliz. Por um segundo interminável, parecia que tudo desmoronaria a minha volta.
O tempo passava, porém, eu não mudava.
Minha esposa, entretanto, era uma história diferente.
Aquela que era o meu anjo mudou. E não foi pouco.
Ela se tornava mais distante a cada dia que se passava, mais fria a cada momento.
A vida em casa teria se tornado um inferno se não fosse pela minha filha. Enquanto ela estivesse sorrindo, enquanto eu fosse o herói dela, tudo estava certo.
Com o tempo, eu parei de me importar com minha esposa. A língua peçonhenta, as garras afiadas, a aura gélida. Nada me afetava. Eu via a frustração e o ódio em seus olhos. Aquilo de nada adiantava.
Aquela bruxa precisaria de algo muito pior para me quebrar.
Então, ela o fez.
Foi algo tão simples que eu nem previ.
O divórcio veio e, então, ela me tirou o maior dos presentes.
Eu ainda podia ver a minha princesa, porém, não era mais como antes. Nunca mais seria.
Toda vez que meus olhos se dirigiam àquela face rosada, eu via um sorriso. Meu coração se alegrava. Porém, não durava mais que um segundo, afinal, eu podia sentir o que minha filha sentia. Eu via que ela tentava me deixar feliz, mas eu também via que ela estava infeliz. Infeliz com aquela casa sem mim, infeliz com aquela bruxa que era a mãe dela, infeliz com aquela vida.
Meu coração não aguentava aquilo. As coisas precisavam mudar. De algum jeito. O mais rápido possível.
Eu estava perdendo o foco na vida. Com isso, não demorou para que eu perdesse o meu emprego. As contas em casa começaram a apertar. E é claro que aquele demônio me ligaria, cobrando a pensão para a minha filha, piorando ainda mais a situação.
A raiva começou a me consumir. Resolvi ignorar a minha ex. Parecia a melhor coisa a fazer.
Porém, com o passar dos dias, o desespero foi tomando conta de mim. Meu celular tocava incessantemente. Já eram dezenas de ligações perdidas daquela víbora, vinte e sete para ser exato. Eu não tinha como ir buscar a minha filha, pelo menos, não com ela estando sob as garras da mãe.
Então, eu fiz o que eu tinha que fazer.
Algo imperdoável, sim, mas, também, algo necessário. Eu podia viver com a culpa se minha filha estivesse bem.
Eu não havia contado o que havia acontecido com a mãe, porém, minha princesa parecia saber. E não se importava. É como se minha garotinha, apesar de tão nova, já soubesse o que era o melhor para si. Eu me orgulho tanto dela.
Fugir. Era isso o que eu tinha que fazer. Era o que eu e minha filha tínhamos que fazer. Afinal, perguntas começariam a aparecer, acusações começariam a surgir. Se achassem o corpo daquela bruxa, ela conseguiria novamente me separar da minha princesa. E eu não aguentaria aquilo de novo.
Porém, algo fez um calafrio percorrer a minha espinha.
Quando olhei meu celular, percebi que não devia ter economizado balas com aquele demônio. Ao todo, eu tinha trinta e cinco ligações perdidas do número daquela bruxa, e uma outra chamada começaria instantes depois.
Dirigi desesperado até o lago onde eu havia despejado o corpo. Parei meu carro na beira da estrada, beijei minha filha na testa e falei para ela não se preocupar. Nadei nas águas geladas, vasculhando todos os cantos submersos até achar onde o caixão havia parado. Lá, o pavor tirou a cor do meu rosto e o oxigênio de meus pulmões.
Achei que morreria afogado ali, petrificado, ao ver a tampa destroçada do caixão. Antes de nadar até a superfície do lago, juro ter visto marcas de garras na superfície de madeira. Algo saiu lá de dentro sem ajuda. Algo que não era humano já fazia tempo.
Voltei nadando até a margem, corri até meu carro. Vi que minha filha estava bem, o que fez meu coração desacelerar um pouco.
Naquele momento, não contei à minha filha o que havia acontecido exatamente. Porém, não fiz questão de esconder a verdade dela por muito tempo. Ela é inteligente, mais madura hoje do que eu já fui na minha vida, apesar de não querer admitir para ela a última parte.
Hoje, eu ainda corro. Aliás, nós ainda corremos. Minha filha e eu somos ainda nômades. Sabemos que criaturas obscuras rondam por essas terras. Parecemos as atrair de vez em quando.
Sempre rodeado, acho que ainda sou a chama das mariposas. Felizmente, aprendi a queimar os insetos que chegam perto de mais. E minha princesa parece ter herdado meu jeito.
Agradeço todos os dias por minha garotinha ainda estar perto de mim e, principalmente, por ela estar viva, principalmente depois de todos esses anos, depois de tudo que nós enfrentamos.
Entretanto, penso todos os dias no que teria acontecido caso eu tivesse aceito me separar de minha filha. Estaria eu com a minha boa e tranquila vida de anos atrás? Estaria eu vivendo em paz, sem medo? Conseguiria eu viver assim?
Realmente, o preço que eu paguei pela minha princesa foi alto demais. Mas sinto que foi o único jeito. O único jeito de viver.

É. O destino tem um senso de humor peculiar.

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