Teaser 2A
Era mais uma vez que Lucy se arrependia de ter saído de
casa.
Ela devia estar relaxando, não pensando nas aulas e nas
provas. Deveria estar se divertindo com seus amigos e amigas, como qualquer jovem
de dezessete anos, deixando as preocupações para depois, sendo estúpida
voluntariamente se isso significasse rir um pouco.
Porém, não conseguia. E não era por falta de tentar.
Tudo parecia tão chato. Todos pareciam tão patéticos. Ela só
queria se esquecer daquela noite, voltar para casa o mais rápido possível e se
jogar na sua cama, de volta ao seu refúgio daquele mundo.
A jovem, entretanto, sabia que aquilo não aconteceria tão
cedo.
Parada sozinha na rodoviária, apoiando seus braços sobre uma
mureta de concreto, Lucy esperava pelo próximo ônibus até a sua casa. Demoraria
pelo menos mais uma hora até o próximo chegar devido ao horário.
Três e meia da manhã. O sol demoraria pelo menos mais três
horas para nascer. E lá estava Lucy, num dos piores bairros de sua cidade,
bebendo goles incessantes de uma lata de refrigerante de limão, refletindo
sobre praticamente todas as decisões erradas de sua vida, desejando ter
dinheiro o suficiente para um táxi ou, então, disposição para uma caminhada de
mais de uma hora no meio da madrugada.
O barulho a fazia perder a linha de raciocínio. Música alta
de baixa qualidade, pessoas gritando sem saber o que saiam de suas bocas,
gritarias incessantes. Tudo acontecia a alguns metros dali, numa praça pública,
lugar que recebia um festival popular.
Ou assim chamavam aquilo.
Lá era onde Lucy estava.
A intenção era reunir jovens que se importassem com o que
estava acontecendo com o país, estudantes que pretendiam entrar em grandes
faculdades, cidadãos engajados com política e que queriam fazer a diferença.
Essa era a propaganda. A realidade era assustadoramente
diferente.
Não que Lucy acreditasse que tudo fosse ser perfeito, mas
aquilo que foi lhe foi apresentado era revoltante. Se as pessoas quisessem se
reunir em algum canto da cidade para beberem, se drogarem e agirem como
trogloditas, ela não era contra. Porém, chamar aquilo de um evento em prol do futuro da nação ou um encontro
pela democracia era uma péssima piada. Piada da qual a garota não faria
parte.
—
O festival não consegue agradar a todos. —
Uma voz grave disse, imponente.
Lucy voltou seu olhar para a sua esquerda. Lá, um homem de vinte
e poucos anos sorria discretamente para ela.
O sujeito quase parecia um viking perdido nos dias de hoje. Era
alto, com braços fortes, costas e ombros largos. O rosto tinha traços fortes. A
barba rala e o cabelo desgrenhado eram loiros. Os olhos eram de um azul celeste
penetrante. Ele estava arrumado e perfumado com uma colônia que demonstrava bom
gosto. Trajava uma camisa social azul quase impecável e calças cor de grafite.
Os sapatos pretos lustrosos brilhavam com certo charme.
Lucy pensou bem antes
de dizer algo para o sujeito. Afinal, ele mal parecia real. Não só pelo fato de
ele ser inacreditavelmente belo, mas também porque não fazia sentido aquele
homem estar ali.
Então, a curiosidade a venceu.
—
É... — Ela olhou o
sujeito no fundo dos olhos. —
Mas você não parece do tipo que vai num festival desses...
—
Deuses, não! — Ele
riu.
—
Então... — Ela se
afastou da mureta, deixando seu refrigerante de um lado por um instante, e
cruzou os braços, ficando frente a frente com seu interlocutor. — O que você faz aqui?
—
Eu estava no casamento de um amigo meu... —
O homem olhou rapidamente para o próprio corpo. —
O que deve explicar o que eu estou vestindo... Aliás, eu fui o padrinho
dele. Grande festa. Muita comida. Todos felizes e um tanto quanto bêbados... — Seu olhar foi em direção
à praça e, rapidamente, voltou para o rosto de Lucy. — O que me parece um pouco melhor do que
aquilo ali...
—
Parece que sim... — A
garota concordou, ainda um pouco séria. —
E por que veio para cá?
—
Emprestei um pouco de dinheiro para um amigo meu pegar um táxi. — Ele explicou calmo. — O sujeito saiu da festa
uma hora antes de mim. Acabou que eu não prestei atenção em quanto dinheiro eu
tinha... Nem quanto eu emprestei exatamente... O que me deixou com... — O homem levou uma mão a
um bolso na calça. De lá, tirou algumas moedas e uma nota amassada. — Um pouco mais que o
suficiente para um ônibus. —
Guardou o dinheiro preguiçosamente de volta. —
Então caminhei por uns dez minutos até aqui.
—
Entendo... — Lucy
disse não muito animada. —
E por que resolveu vir conversar comigo?
— Cheia
de perguntas, não, senhorita? —
Ele sorriu.
—
Sou curiosa... — Ela
afirmou. — E gosto de
saber com quem eu estou conversando, saber suas intenções... Afinal, você
poderia ter ido conversar com qualquer outra pessoa daqui da rodoviária...
—
É... — O sujeito
olhou ao seu redor. Haviam algumas pessoas esperando por seus ônibus também. Homens,
mulheres, idosos. Pouco mais de dez delas. Uma mais estranha que a outra. Umas
um tanto quanto suspeitas. Nenhuma parecia aberta a uma conversa para matar
tempo. — Mas você
parecia ser a mais interessante... E a mais bonita também...
—
Eu tenho dezessete anos... —
Lucy retrucou, antecipando qualquer gracinha que o sujeito tentasse. Além
disso, ela nunca achava sincero um elogio à beleza dela. Com uma camiseta preta
de banda, calças jeans surradas, tênis velhos e o mínimo de maquiagem possível,
a jovem não tentava ser bela. Claro que seus olhos verdes, lábios rosados e
cabelo castanho-avermelhado tinham certo charme, mas queria que não tivessem. — Acho que você devia
parar...
—
Foi apenas um elogio. —
O homem disse rapidamente. —
Você pode aceitá-lo e dizer um simples obrigada.
Além disso, beleza é subjetiva. Eu posso achar belo algo que você não ache. E
vice-versa.
—
Hm... — Lucy esboçou
um sorriso. — É... Obrigada...
— A garota disse um
pouco mais confortável.
Um sorriso. Mais um vindo daquele homem que Lucy
desconhecia. Porém, desta vez, ela sorriu de volta como se fosse algo natural,
o que era estranho para a garota. Um pressentimento estranho a acertou. Era
como se algo a dissesse que aquele sujeito viria a ser alguém importante para
ela, alguém próximo. Esse tipo de pressentimento já parecia algo desconhecido
da jovem.
—
Então... — O homem
voltou a falar, mantendo um tom calmo. —
Se você já está satisfeita com as respostas que dei... Acho que é a minha vez
de te fazer algumas perguntas...
—
Hm... — Lucy
suspirou. — Certo. — Ela fez uma breve pausa,
pensativa. — Pode
perguntar.
—
Como você veio parar aqui? —
Ele perguntou rapidamente.
—
Ah... — A jovem coçou
a nuca. — Eu estava
me perguntando isso mais cedo... Ai foi lembrando, passo a passo... — Ela estendeu uma mão até
a mureta, pegou o refrigerante, tomou um gole e colocou a lata de volta no
lugar. — Vim com
alguns amigos que... Bem... Nem sei direito porque ainda sou amiga deles.
Eles... Me acolheram numa época difícil pra mim, sabe...? Já saímos várias
vezes, fui me enturmando com o pessoal deles... Mas...
—
Você nunca se sentiu como um deles... —
O homem arriscou um palpite.
—
É... — Lucy respondeu
sem hesitar. — Eu não
queria dizer que eu sou boa demais pra eles ou algo do tipo, mas fica difícil
de achar outras palavras pra descrever isso. É divertido sair, quebrar a
rotina, beber de vez em quando... Fazer as coisas sem planejar... É uma
aventura, sabe? Uma parte minha adora eles... Todos os rapazes e as garotas da
turma... Mas eles não têm foco na vida. Eles não querem saber de nada, não
levam nada a sério... Mesmo quando eles falam que levam alguma coisa a sério,
eles parecem não pensar direito. —
Ela bufou. Então, seu olhar foi na direção da praça. — É que nem a droga desse evento... Todos os
que estão lá... Parece uma competição pra ver quem desperdiça mais a vida...
Pra ver quem vai ter o futuro mais medíocre. —
A garota riu com escárnio. —
E ainda dizem que querem um futuro melhor, que querem mudança... É estranho
pensar que as pessoas que mais querem mudança são as que menos querem mudar.
Elas só querem que o mundo se conforme com o jeito delas de viver, que suas
visões de certo e errado sejam o padrão. É tão... Egoísta... — Então, deu de ombros. — Mas, no final, quem não é
egoísta? Quem faz algo que não vai te beneficiar, algo que pode até te
prejudicar, por vontade própria? Só sendo louco...
Lucy, então, parou de falar. Ela sentiu sede. Pensou em
tomar mais um gole de seu refrigerante, porém, percebeu que seu companheiro a
encarava. Não era de uma maneira assustadora, que a deixasse particularmente
desconfortável. O sujeito parecia sério, perdido em seus pensamentos enquanto
olhava para o rosto da jovem.
O silêncio, porém, começou a se tornar desconfortável. Lucy
estava prestes a dizer alguma coisa, qualquer coisa. Entretanto, não foi
necessário.
—
Você realmente é única. —
O homem disse com um sorriso estampado no rosto. —
Ainda melhor do que eu esperava.
—
Oi? — Lucy indagou
confusa.
—
Você é do tipo que tem algo a mais... —
Ele continuou o que mais pareciam ser uma série de elogios. — Alguém que está destinado
a coisas grandes... Algum com um potencial imensurável... Posso sentir nesse
seu jeito... Nessa sua fala...
A jovem pensou em dizer para que o homem se calasse, para
parar com aquilo. Porém, não conseguia. As palavras do sujeito eram sinceras e,
principalmente, pareciam ter um propósito maior.
—
Você aceitaria um desafio? —
Ele perguntou simplesmente.
—
Desafio...? — Ela
repetiu a palavra como se não a tivesse entendido no primeiro momento. — Do que você está
falando...? Que tipo de desafio...?
— Uma aventura. — O homem respondeu. — Algo digno de alguém como você...
— Claro... — Ela sorriu e cruzou os braços. — Pode mandar.
— É bem
simples... — Ele fez uma
breve pausa. — Ande.
— Ande...?
— É... — O sujeito sorriu. — Ande. Por esse bairro. Até sua casa, se
preferir. Você verá que esse lugar tem coisas que passam despercebidas aos
olhos de muitos... E a calma das ruas vazias a essa hora a ajudará nesse
desafio. Tente e verá que é verdade.
Lucy
não disse nada. Ela estava intrigada. O homem parecia sensato. Tampouco parecia
um piadista. Aquilo parecia sério.
Além
disso, a garota tinha um bom pressentimento sobre aquilo. Ela sentia uma
energia que há tempos não sentia. Algo a dizia que aquilo seria a coisa certa a
ser feita.
— Um pouco
arriscado... — A garota
comentou, disfarçando o que sentia. — A esse
horário, nesse bairro... Não acha?
— Um desafio tem
que ter uma parte desafiadora, não é? — O sujeito
indagou. — Caso
contrário, não seria um desafio...
— Não tenho como
argumentar contra a sua lógica... — A jovem
murmurou.
— Então... — Ele olhou a garota no fundo dos olhos. — Isso é um sim para o desafio?
— Hm... — Lucy deu de ombros. — Por que não? Acho que realmente não tenha
mais nada a perder... Já devo ter cumprido a meta de tragédias dessa noite.
— Gostei do
entusiasmo...
— Eu tento o meu
melhor... — A jovem pegou
sua lata, porém, não bebeu nada, apenas a segurou junto de si. — E você, vai esperar seu ônibus? Não vai
partir numa aventura?
— Eu estou bem
aqui... — Ele bocejou. — E estou cansado... Devo estar ficando velho...
— Você que
sabe... — Ela acenou
para o homem, despedindo-se. —
Até mais!
— Até! — Ele acenou de volta. — Vá com minha bênção, Lucy!
Confiante,
a jovem seguiu para fora da rodoviária. Ela passou por perto da praça. Pensou
em se despedir dos amigos, mas resolveu que não perderia tempo com aquilo.
Graças
àquele homem, Lucy recebeu um incentivo, por mais ilógico que fosse, de seguir em
uma aventura, algo que faria a noite valer a pena.
Caso
se encontrasse com aquele sujeito algum outro dia, o agradeceria pela ajuda.
Lucy,
então, percebeu que não havia perguntado o nome do companheiro.
Ele
não havia contado.
Do
mesmo jeito que ela não havia contado o dela.
De
repente, o ar noturno pareceu se tornar mais gélido. Numa rua completamente
deserta, Lucy podia apenas ouvir sons vindos de longe. O que eram gritos de
desespero eram apenas sussurros para ela. Passos pareciam ecoar pela cidade.
Vozes pareciam se aproximar enquanto ela andava cautelosamente, medindo cada
passada.
O
coração de Lucy batia forte em seu peito.
Porém,
algo parecia guiar a jovem.
Ela
ainda tinha um bom pressentimento sobre aquilo.
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