Eu abri meus olhos lentamente. E logo me arrependi.
O lugar em que eu estava era diferente do de antes. A
escuridão era quase absoluta nessa nova câmara da caverna. Algumas tochas
estavam presas nas paredes, iluminando fracamente o ambiente, tingindo o que
era visível com o alaranjado das chamas bruxuleantes. O ar estava pesado,
abafado como uma sauna, empesteado pelo fedor de enxofre.
Então, eu a vi.
Julie.
Lá estava ela, a poucos metros de mim, banhada tanto pela
luz das chamas tanto pelas sombras. Ajoelhada, a garota permanecia imóvel sobre
o chão rochoso. Seu rosto estava mais pálido que o de costume. Seu olhar,
repleto de medo, parecia fixo no nada. Seus lábios, sempre rosados, pareciam
trêmulos, tentando falar algo em vão.
—
Acordou, hein? — A
maldita voz perguntou.
Obviamente, era a droga daquele psicopata asqueroso que
estava falando. Quem mais poderia ser...?
Entretanto, ele não estava visível... Não a princípio, pelo
menos.
Das sombras, uma mão surgiu. Vindo por trás de Julie, os
dedos brancos tocaram o ombro da garota, fazendo-a estremecer.
—
Nós estávamos esperando por você... —
Ele continuou, soltando seu riso grave que parecia ecoar em minha mente. — Esperando pacientemente
por você...
A mão começou a subir pelo pescoço de Julie, acariciando-a suavemente,
fazendo a garota fechar seus olhos com força, desejando que aquilo acabasse.
—
Pare! — Eu gritei,
quase rosnando em seguida.
Meu estômago estava se revirando com a cena. Os risos do
desgraçado só me deixaram mais enjoado. Eu queria fazer algo para ajudar Julie,
levantar-me e investir contra o maníaco, ser a droga de um herói... Mas sabia
que seria inútil.
Não consegui derrubar o filho da puta antes. Não conseguiria
agora também. Não sem um plano...
Eu queria apenas fechar meus olhos como Julie, esperar que
tudo aquilo acabasse, talvez me forçar a olhar para outro canto, mas não
conseguia. Não creio que fosse humanamente possível ignorar uma cena tão
revoltante quanto aquela.
—
Não vai vir salvar sua donzela em perigo...? —
O desgraçado perguntou lentamente, saboreando suas palavras, apreciando aquele
momento com calma. —
Não vai vir matar esse monstro...?
Eu não respondi.
—
Hm... — O maníaco
riu. — Entendo...
Você é mais sensato do que achei que fosse... Você sabe seus limites... Sabe o
que possível e o que é impossível... —
Ele bufou, parecendo entediado. —Nesse
caso...
Como uma assombração, um rosto mascarado surgiu,
aproximando-se abruptamente do lado direito da face de Julie, juntamente com
outra mão, segurando um revólver contra a têmpora esquerda da garota.
Então, o tempo pareceu ter congelado por um instante interminável,
forçando-me a memorizar aquela maldita cena.
—
Vamos acabar logo com tudo isso então? —
O demônio perguntou, rindo em seguida com um prazer invejável.
Eu permaneci
imóvel. Um grito ficou preso em minha garganta. Mais uma vez impotente, então, assisti
com um desespero mudo Julie se contorcendo inutilmente, presa pelas garras do
monstro.
—
Nem assim você cria coragem...? —
O maníaco soou incrédulo. —
Decepcionante...
Violentamente,
ele jogou Julie para o lado, fazendo-a soltar um gemido meio abafado. Meus
olhos iam em direção da garota, porém,
voltaram rapidamente para o maníaco que avançava em minha direção. Com passos
pesados e largos, ele caminhava, rodopiando inquietamente o revólver em um de
seus dedos pelo guarda do gatilho.
—
Sabe como eu consegui isso? —
O mascarado perguntou num tom pouco paciente, olhando-me de cima enquanto me
exibia a arma prateada.
Eu balancei minha
cabeça para os lados numa resposta negativa.
—
Olhe mais de perto... —
Ele pediu e, então, apontou o cano da arma entre os meus olhos. — Arrisque um palpite. Não tenha medo.
Eu engoli em
seco. Poderia dizer que estava paralisado se não estivesse tremendo, temendo um
simples deslizar de um dedo no gatilho.
—
Pense bem... —
O maníaco afastou a arma de mim, apontando seu cano para o chão, diminuindo a
pressão que parecia esmagar meu corpo. —
Você já a viu antes... Você a viu logo antes de entrar nessa mina...
Antes de entrar nessa mina...
De repente, a
resposta se tornou óbvia.
—
A arma do Diego...? —
Indaguei, certo da resposta.
Um momento de
silêncio. Deve ter sido um segundo apenas. Pouco importava. Aquilo foi o
suficiente para eu começar a me preocupar com o magricela que, até o momento, eu
tolerava com tanta dificuldade, imaginado com pesar o fim que ele havia levado.
—
Diego... — O maníaco repetiu
o nome lentamente. —
É. Acho que é esse o nome do sujeito. Mas não tenho certeza... Não tive tempo
de perguntar...
—
Você o matou...!? —
Perguntei, exaltado, mais uma vez certo da resposta.
Eu só não
esperava estar errado.
—
Não... — Julie respondeu num
tom deprimido. Eu quase havia me esquecido que ela ainda estava ali. — Ele não morreu...
—
O quê? — Eu estava um tanto
quanto surpreso. —
O que aconteceu então?
—
Ele fugiu. — O mascarado respondeu
secamente. — Largou a arma e
correu para longe assim que me viu. Um pouco rude, devo dizer... Abandonou a
garota sem pensar duas vezes...
Eu olhei para
Julie. A garota estava cabisbaixa, desolada, sem saber o que dizer, sem ter
como negar a verdade.
Quanto a mim, eu
estava sem palavras, sentindo um pouco de nojo de mim mesmo por ter me
preocupado com Diego, mesmo que só por um breve instante.
—
Ah... — O maníaco soltou
um riso grave. —
Que história triste essa nossa, não...? Talvez eu devesse tentar alegrar um
pouco um clima... Com um jogo, quem sabe?
Eu olhei para o
mascarado. Calmamente, ele puxou o tambor do revólver para o lado, expondo,
para si, as balas intactas da arma.
—
Não vamos precisar de todas elas... —
O maníaco murmurou. —
Pelo menos, não por ora...
Se o que aquele
lunático pretendia não estivesse óbvio antes, agora, apenas um idiota não
entenderia o que estava prestes a acontecer.
Uma. Duas Três.
Quatro. Cinco. Cinco balas removidas. Cautelosamente, o mascarado as guardou em
uma pequena sacola de couro que carregava junto à cintura. Em seguida, ele
empurrou o tambor de volta para dentro do revólver.
—
Imagino que esta seja a primeira vez que vocês jogam isso, meus queridos... — O desgraçado rodou o cilindro da arma. — Mas não se preocupem. É um jogo cujas
regras são bem fáceis de ser entendidas, ainda mais fáceis de serem aprendidas
na prática... Mesmo com as regras da casa...
Antes que eu
pudesse ponderar sobre o que poderiam ser as
regras da casa, o filho da puta mirou a arma contra mim.
—
Vamos começar com você, amor... —
O maníaco disse casualmente. —
Tudo bem?
Eu fechei meus
olhos num reflexo, isolando-me nas trevas.
O lunático puxou
o gatilho. Julie gritou desesperada.
Então, veio o som
de um clique metálico. E mais nada. Nenhum som.
Até o riso
psicótico voltar.
Lentamente, abri
meus olhos, com medo do que eu veria, deparando-me com o maníaco rindo
histericamente. Seu corpo se chacoalhava além de seu controle, de uma maneira
quase bizarra, de tanta que ria.
—
Vocês dois são engraçados... —
Ele soou como um bêbado numa mesa de bar com os amigos após algumas garrafas
demais. — Tanto desespero...
Para nada!
Antes que eu
pudesse pensar em algum xingamento apropriado, o maníaco apontou a arma para
Julie. Foi, então, a minha vez de gritar e a dela de fechar os olhos.
E, mais uma vez,
nada aconteceu.
—
Belo grito, moleque, mas preferi o da moça... — O lunático admitiu. — Mas isso é coisa minha. Prefiro o som de
mulheres gritando mesmo... —
Ele respirou fundo. —
Enfim... O próximo a ter sua sorte testada será... — O maníaco imitou o som de um rufar de
tambores usando a boca, divertindo-se enquanto criava mais suspense. — Eu mesmo!
A ponta do
revólver foi até o pescoço do próprio mascarado.
Com os meus olhos
arregalados, eu observei o desgraçado puxar o gatilho, sem hesitar, apenas para
ter o mesmo resultado que o nosso.
—
Hm...! — Ele hesitou por um
breve instante. —
Ainda estou vivo...? —
Então, a gargalhada voltou. —
Isso é ótimo! Maravilhoso! Fantástico! —
Exclamou entre risadas. —
O show vai continuar!
Depois daquilo,
não conseguiria questionar mais a insanidade daquele diabo. Eu não queria mais
tentar prever o que estava por vir.
—
Faltam três balas ainda... —
O maníaco anunciou agora mais calmo. —
Uma pra cada um de nós...
—
Demônio... — Julie murmurou num
breve momento de silêncio do nosso captor. — Como você pode fazer isso tudo...? Como...?
— Lágrimas começaram
a verter de seus olhos. —
Como...!? Seu monstro... Nós somos só crianças...
—
Ah... — O mascarado bufou.
— Só crianças... — Ele repetiu lentamente. Seus olhos
estavam fixos em Julie. —
Só... Crianças... —
Seu riso doentio voltou. —
Só crianças... Não é mesmo...? —
O maníaco, então, começou a andar na direção da garota. — Apenas crianças tolinhas e inocentes, que
não sabem o que fazem, que não podem ser culpadas pelo que fazem... — O desgraçado se agachou diante da presa. — Não é...?
Julie permaneceu
quieta, desviando seu olhar do monstro, agora, tão perto.
—
Não vai responder...? —
O maníaco indagou.
Ele não teve
resposta.
—
Hm... — O mascarado riu. — É... Você realmente é só uma criança...
Como um bote de
uma cobra, a mão do demônio foi até o pescoço de Julie, apertando-o com força,
aprisionando o grito da garota em sua garganta.
—
Julie! — Berrei
desesperado.
O maníaco pareceu
não me ouvir. Ele estava focado demais no que estava fazendo.
—
Só mais uma criança... —
O mascarado se levantou, levando Julie junto consigo. Uma vez em pé, o
desgraçado estendeu seu braço para o alto, erguendo a garota no ar, indefesa.
As pernas dela balançavam, agonizantes, a palmos do chão. — Só mais uma porra de uma criança que não
vai fazer falta nesse mundo...
Eu não pensei.
Não tive que pensar. Não tinha nem o que pensar.
Julie estava
sendo estrangulada lentamente, sem conseguir respirar, tendo seu pescoço
triturado por garras frias. Ela estava mais próxima de sua morte a cada segundo
que se passava. E nada no mundo parecia mais importante, ou divertido, para o
nosso captor, aquele mascarado filho da puta.
A guarda dele
estava baixa. Era a minha chance.
Levantei-me com
um salto. Corri o mais rápido que eu pude. Nada estava entre mim e as costas do
maníaco. Eu não precisava saber lutar. Eu só precisava me jogar contra ele o
mais forte que eu conseguisse. Derrubar o maldito apenas com minha brutalidade.
O que aconteceria depois não importava.
Eu seria a porra de um heroi.
Mas aí eu ouvi o
tiro... E, ainda pior, eu o senti.
O maníaco nem se
virou para olhar para onde atiraria. Ele apenas apontou o revólver com uma mão,
aquela que não estrangulava Julie, e atirou, acertando meu pé direito.
Eu gritei de dor.
Pisei em falso
com meu pé baleado, parando de correr no mesmo instante, cambaleando para
frente, caindo ainda a passos de distância do maníaco.
Quando olhei para
cima, vi o filho da puta golpeando o rosto de Julie com uma coronhada, arremessando-a
em seguida como um saco de lixo, deixando a garota gritar ao cair de costas no
chão duro.
—
Filho da puta... —
Grunhi.
Minha crítica foi
respondida com um chute, acertando minha mandíbula em cheio, deixando-me
aturdido com a dor instantânea e me jogando para perto de Julie.
—
Criancinha tola... —
O desgraçado murmurou, encarando-me com sua cabeça inclinada para o lado. — Realmente não sabe o que faz... Certo...?
Apesar de tonto,
eu tentei me levantar. Uma tentativa em vão. No momento em que meu peso caiu
sobre meu pé baleado, meu corpo desabou enquanto eu soltava um grito de dor.
Caí sentado, impotente, olhando para o buraco escuro em meu tênis de onde meu
sangue vertia, escorrendo pelo chão da caverna.
—
Vic... — Julie murmurou. Eu
podia ver com clareza o inchaço se formando em seu rosto, bem onde a arma havia
a acertado. —
Tá doendo muito...?
Eu hesitei um
pouco. Eu não podia responder de maneira sincera e rude. Nem sabia como.
Afinal, como ela conseguia se importar mais comigo do que com ela mesma naquele
momento era algo impressionante ao ponto de me emudecer.
Julie realmente
era única, não...?
No final,
respondi balançando minha cabeça para os lados.
Então, eu
respirei fundo, tentei pensar um pouco. Logo desisti. Foi patético. Não conseguia
imaginar como Julie e eu sairíamos de lá com vida.
—
Vocês... — O maníaco soltou
um riso baixo. —
Vou contar uma história para vocês... Uma história verídica... Um relato, se
assim preferirem chamar...
—
Me mata logo... —
Rosnei.
—
Não... — Ele bufou. — Assim não tem graça. Tenho muito a
compartilhar.
Aquele demônio se
agachou, ainda mais alto que eu e, é claro, ainda ameaçador. Lentamente, ele
colocou o revólver no chão e, então, levou seus dedos até a sua máscara.
—
Vou mostrar a vocês, meus amores, o que crianças são capazes de fazer.
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