terça-feira, 24 de novembro de 2015

Conto de Terror 10

Fada do Dente


Depois de tantos anos, cheguei a conclusão que seria melhorar escrever isso. Talvez, assim, eu tenha um pouco de paz. Talvez, assim, alguém, não importa quem, acredite em mim.
Vamos voltar dez anos no tempo. Eu tinha apenas oito anos de idade. Não era alto, nem baixo. Nem gordo, nem magro. Nem burro, nem inteligente. Mas, sinceramente, nada daquilo parecia importar muito na época. Socializar era muito mais fácil. Você simplesmente chamava alguém pra brincar com você durante uma tarde e, no dia seguinte, vocês já eram melhores amigos. Isso somado ao fato que minha sala não tinha mais de vinte alunos fazia com que todos nós, ou pelo menos a grande maioria, fossemos muito próximos. E foi exatamente por isso que ficamos tão abalados na época.
Tudo começou um dia quando o meu melhor amigo, Andrew, chegou à escola sem um de seus caninos. Foi o direito superior que havia sumido, se me lembro bem. Entretanto, ele estava diferente. O garoto estava tenso, quieto demais para a criança hiperativa que era.
A mãe dele o deixou na frente da escola e, do momento em que ele desceu do carro, ele tornou-se mudo. Sem dar um pio, ele foi à sala de aula, sem cumprimentar ninguém. Resolvi segui-lo.
Tá tudo bem?   Perguntei.
Não. Ele respondeu irritado.
O que aconteceu?
Ninguém acredita em mim.
Acreditar? Acreditar no que?
Ontem à noite... Ele disse baixo. Agora, outras crianças entravam na sala. Acho que ele não queria que todo mundo ouvisse o que ele estava me contando. Um monstro entrou no meu quarto.
Sério!? Eu me aproximei mais para perto dele. Eu nunca tinha visto um monstro, mas sempre quis ver. Toda a minha atenção se voltou para ele. Como ele era!?
Fale mais baixo.
Ah... Ok, desculpe...
Então... Andrew continuou. Eu não... Eu não consegui ver o monstro, sabe? Eu só...
Então como você sabe que foi um monstro? Indaguei rapidamente.
Porque era! Ele exclamou. Percebendo que havia falado alto demais, Andrew começou a cochichar no meu ouvido. Ele deve ter achado que devia ter chamado atenção, então resolveu manter-se o mais quieto possível. Porque era, ok? Era... Estranho. Tava de noite. Eu já tinha ido dormir. A luz tava apagada. De repente, eu senti frio, mesmo coberto. Aí eu percebi que eu não conseguia mexer nem meus braços e nem minhas pernas. Então...
Bom dia, classe! Era a nossa professora que havia acabado de entrar na sala.
Bom dia, professora! Os outros alunos responderam como um coral.
Ah... Andrew parecia tonto, quase prestes a vomitar. Eu... Eu termino de contar depois. No recreio, ok?
Ta... Respondi desanimado.
As aulas daquele dia pareciam ter passado tão devagar. Naquela época, a escola ainda era divertida. Agora eu sei que aquela sensação de torpor no tempo era causada pela minha ansiedade. Eu ficava encarando os ponteiros do relógio da sala de aula para que os segundos passassem mais rapidamente. Em vão, é claro. Até cheguei a perguntar pra Andrew se ele poderia me contar durante a aula, cochichando mesmo, mas ele se recusou. Ele parecia ainda mais estranho.
Eventualmente, metade das aulas do dia havia passado. O recreio chegou. Enquanto a maioria de meus amigos estava preocupar em pegar o playground pra brincar de esconde-esconde ou arrumar um lugar pra lanchar, eu segui Andrew.
Nós dois fomos juntos até um canto afastado do resto da escola. Perto de nós estava um garoto que era da nossa sala. Entretanto, ele era um dos poucos que eram introvertidos. Ele parecia brincar com algum bicho de pelúcia. Não tenho certeza. Eu não prestei muita atenção na hora. Andrew ainda menos.
Podíamos ver os nossos colegas brincando alegremente de onde estávamos, bem como ouvir exclamações alegres e risos. Eu tive vontade de me juntar a eles. Porém, o amigo ao meu lado tinha a minha curiosidade.
Então... Andrew murmurou. Ele olhou para mim, um tanto quanto confuso. Onde eu parei mesmo?
Você tava na sua cama. Respondi. Com frio, sem conseguir se mexer...
Ah é... Ele tremeu. Não foi legal...
E o que aconteceu depois?
Eu... Senti alguma coisa na minha boca.
O que era...?
Uma mão, eu acho. Mas... Era pequena. E peluda. E tinha garras, eu acho.
Era algum animal?
Parecia. Mas já falei que era um monstro. Andrew tremeu de novo. Ele... Ele arrancou o meu dente. Doeu, mas eu não consegui gritar. De repente, já era de manhã. Eu... Eu acho que dormi, mas não tenho certeza. Acordei sem o meu dente. Contei pra minha mãe e ela não acreditou! Ele ficou irritado. Ela falou que foi só um pesadelo e que meu dente caiu durante a noite. Quando ela chegar em casa, ela vai achar o dente. Ou é o que ela acha.
Hm... Eu ouvi tudo o que Andrew disse. Entretanto, eu mesmo não conseguia acreditar em tudo aquilo. Entendi.
Ei... Vamos... Vamos esquecer isso, ok? Ele se levantou. Vamos ver se a gente pode entrar lá pro esconde-esconde.
Ah... Eu hesitei, mas, no fim, sorri. Ok!
Levantamos e passamos o resto do intervalo brincando juntos. Foi bom. Andrew voltou a sorrir. O resto do dia passou bem rápido.
Tudo estava ótimo, de volta ao normal.
Isso é, até o dia seguinte.
Eu procurei Andrew assim que cheguei na escola. Ele, mais uma vez, estava na sala de aula. Uma garota de nossa sala, Caroline, estava com ele. Os dois pareciam abalados.
O que aconteceu? Perguntei com certa inocência.
Não pode ser um pesadelo. Disse Andrew sem emoção. Agora eu tenho certeza.
Hã...?
Aconteceu comigo também. Falou Caroline. O monstro veio até o meu quarto de noite. E então... Ela abriu a boca, mostrando o espaço onde um de seus dentes incisivos deveria estar. Isso aconteceu.
Mais uma vez, tudo aquilo pareceu muito estranho. Afinal, perder dentes de leite nessa idade era normal, certo? Desde pequeno eu já sabia disso. Não poderia tudo aquilo ser um simples pesadelo? Ou, então, alguma pegadinha? Será que Andrew estava tentando me assustar com alguma história boba sobre um monstro? Não seria a primeira vez que ele tentava fazer aquilo com alguém.
Assim, resolvi agir normalmente. Por mais estranhos que Andrew e Caroline estivessem agindo, resolvi não prestar muita atenção neles. Sem problemas. Passei o resto do dia falando com o resto dos meus amigos.
Porém, o arrependimento chegou mais tarde naquele dia.
Não sei que horas eram, mas eu já havia dormido. De repente, eu acordei com uma sensação estranha. Estava frio. Parecia que eu estava deitado sem camisa em um chão de metal e não na minha cama. Meus braços e pernas estavam pesados. Mesmo não estando presos a nada, eu não podia os mover.
De repente, eu vi algo se movendo. Uma luz fraca entrava pela fresta da porta de meu quarto. Aquela era a única iluminação com q que eu contava. Lentamente, o vulto veio em minha direção. Lentamente, uma mancha negra subiu no meu corpo e andou sobre as minhas costelas até o meu peito. Eu tentei gritar, é claro. Talvez os meus pais pudessem me ouvir. Porém, parecia que havia algo entalado em minha garganta. Som nenhum saiu de minha boca.
Eu vi a mão da criatura vindo em direção a minha boca em câmera lenta. Senti o suor escorrendo pela minha face. Os nervos de meu rosto pareciam que iam estourar enquanto eu, em vão, tentava desviar da mão do monstro.
Involuntariamente, minha boca se abriu. Tentei com toda força fechá-la, principalmente quando a mão da criatura entrou nela. Eu pensei que poderia mordê-lo, afugentá-lo. Mas não pude. Permaneci imóvel e angustiado enquanto aquelas garras geladas tocavam em um de meus pré-molares.
Então, o monstro torceu meu dente, girando-o de um lado para o outro, cada mais forte, cada vez mais rápido. Minha gengiva doía. Os músculos de meu rosto se contraíam com a dor. Eu fechei os olhos. Eu ficaria assim até aquilo acabar. Tudo podia ser apenas um pesadelo. Mas não. Mesmo pequeno, eu tinha certeza que aquilo era real. A dor era real.
De repente, tudo parou. Eu senti uma dor aguda. O meu dente foi removido brutalmente. Eu senti o gosto do meu sangue em minha boca. Também senti todo o meu corpo suando e tremendo. Eu queria chorar, mas não consegui. Gritar ainda era impossível, bem como me mover. Praticamente congelado, eu fiquei deitado em minha cama, esperando a agitação passar e a exaustão me por para dormir.
Quando acordei, entendi como Andrew deve ter se sentido. Contei sobre o monstro para o meu pai. Ele sorriu e me confortou, falando que aquilo fora apenas um pesadelo. Ele procuraria pelo meu dente mais tarde. Eu tinha certeza que ele não estaria de baixo de minha cama e, muito menos, debaixo de meu travesseiro.
Eu me sentia um idiota por não ter acreditado em Andrew e Caroline, por isso, foi até eles assim que cheguei à escola. Não falei com mais ninguém até ver os dois.
Adoraria falar que bolamos um jeito de derrotar esse monstro e que, no final, todo mundo ficou feliz e com os dentes a salvo. Porém, a realidade não é tão feliz nesse caso, afinal, éramos apenas crianças de oito anos contra alguma criatura sobrenatural. Tudo o que conseguimos fazer foi avisar sobre o ocorrido para o restante da sala. Nada mais.
Nos dias que vieram em seguida, nós sofremos em silêncio. A cada dia, um de nós aparecia sem um dente e relatando a mesma história traumatizante. Agatha, Pedro, Lucas, Adriana, Letícia, Paulo, Henrique. Nenhum deles parecia se safar. E aquilo teria continuado sem nenhum adulto dar importância.
Porém, as coisas começaram a ficar ainda mais bizarras, chegando ao ponto em que os adultos não mais acreditaram que havíamos perdido os nossos dentes a noite.
Primeiramente, todos os alunos da sala haviam perdido um dente, um seguido do outro. Era estranho, mas possível, claro. Porém, começaram a surgir relatos de outras crianças, muitas mais velhas que nós, perdendo os dentes e se justificando com a mesma história.
Elas eram de outras salas, de outras escolas inclusive. Muitas das crianças que perdiam, entretanto, dentes permanentes e saudáveis.
Aquilo começou a deixar os nossos pais alarmados. Na época, eu não havia entendido muito bem o porquê. De repente, o monstro parecia extremamente real e perigoso, muito além de nossa compreensão.
Agora, entretanto, eu entendo a preocupação. Poderia ter sido alguém lunático entrando em nossos quartos à noite, realizando algum fetiche doentio. O psicopata poderia estar nos perseguindo desde a saída da escola, não mais discernindo quem era do colégio ou, simplesmente, das redondezas.
O caso teve certa repercussão na mídia local. A escola começou a ser investigada, bem como seus funcionários. Aqueles que tinham condições de se mudar o fizeram. Alguns, até, mudaram de cidade. Muitos não voltaram à escola, nem nos anos seguintes.
Eu cheguei, entretanto, a encontrar alguns de meus colegas com o tempo. Normal, não é? Parece que a gente sempre se reencontra com algumas pessoas. Entretanto, nem sempre é uma situação feliz. No meu caso, nenhum dos reencontros foi bom.
Era como se as memórias daquela época infernal voltassem para nos assombrar. Nem mesmo aqueles com que eu tinha mais afinidade pareciam felizes em me ver. Eu, sinceramente, não fiquei muito magoado. Por mais que não quisesse admitir, também sentia aversão a eles, mesmo não querendo.
Houve, entretanto, algumas poucas exceções. Nenhum relacionamento durou muito, mas, pelo menos, não foi trágico desde o começo como os outros.
Eu estudei com Andrew no ensino médio. Fomos amigos por três anos, mas, a cada dia fomos nos tornando mais distantes. Não sei como ele está agora.
Agatha, minha paixão de infância, acabou se tornando minha namorada. Foi apenas por pouco tempo, talvez dois meses, quando tínhamos dezesseis anos. Olhar para a cara um do outro nos trazia recordações que esperávamos, juntos, deixar para trás. Não deu certo.
Caroline foi minha colega durante meio ano apenas no ensino fundamental. Tínhamos treze anos, acho. A pobre garota parecia claramente perturbada. Isso todos os dias. Eu mal falava com ela, mesmo querendo muito. Um dia, de repente, ela se foi, sem explicações, sem dizer um pio.
Há um caso que, mesmo não tendo durado mais do que alguns segundos, eu creio que seja bom mencionar: William. Eu cheguei a mencioná-lo antes. Era o garoto introvertido que brincava com seu bicho de pelúcia.
Oito anos atrás nós nos encontramos. Eu voltava de algo simples. Talvez eu tivesse ido à padaria, não sei ao certo. Mas eu sei que ele estava lá.
William, aquele menino magrelo com o cabelo desgrenhado que lhe cobria os olhos, estava sentado num banco de uma praça perto da minha casa. Eu nunca havia falado com ele. De fato, eu nunca havia ouvido sua voz. Porém, resolvi conversar com ele mesmo assim.
Enquanto me aproximava, fiquei em dúvida se ele estava acordado ou não. William apenas olhava para baixo, nem parecia estar respirando. Ao seu lado percebi que havia um bicho de pelúcia. Talvez fosse o mesmo, mas não sei dizer. Só sei dizer que sua aparência era bem surrada. Era um crocodilo, verde, quase desbotado.
Ah... Limpei a garganta. William...?
O garoto levantou a cabeça levemente.
Ah... Há quanto tempo... A voz não poderia ser dele. Era arrastada e grave, quase como a de um fumante de longa data. Thiago, não é mesmo...?
Eu ia responder que sim. Porém, eu não consegui dizer nada. O ar ficou frio. Minhas pernas começaram a tremer. De repente, senti algo praticamente puxando os meus olhos para baixo.
Assim, praticamente paralisado, eu olhei na direção do bicho de pelúcia no colo de William. Eu ouvi uma risada profunda e, então, o pequeno crocodilo abriu sua boca, sorrindo e revelando seus dentes. Eram todos irregulares, alguns amarelados, de tamanhos diferentes e, principalmente, todos humanos.

Praticamente congelado no tempo eu permaneci ali. Não sei quanto tempo se passou. Porém, quando eu escapei daquele transe, o crocodilo havia sumido. O corpo de William, entretanto, permaneceu lá, sem vida, sem cor.

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