Fada do Dente
Depois de tantos anos, cheguei a conclusão que seria
melhorar escrever isso. Talvez, assim, eu tenha um pouco de paz. Talvez, assim,
alguém, não importa quem, acredite em mim.
Vamos voltar dez anos no tempo. Eu tinha apenas oito anos
de idade. Não era alto, nem baixo. Nem gordo, nem magro. Nem burro, nem
inteligente. Mas, sinceramente, nada daquilo parecia importar muito na época.
Socializar era muito mais fácil. Você simplesmente chamava alguém pra brincar
com você durante uma tarde e, no dia seguinte, vocês já eram melhores amigos.
Isso somado ao fato que minha sala não tinha mais de vinte alunos fazia com que
todos nós, ou pelo menos a grande maioria, fossemos muito próximos. E foi
exatamente por isso que ficamos tão abalados na época.
Tudo começou um dia quando o meu melhor amigo, Andrew,
chegou à escola sem um de seus caninos. Foi o direito superior que havia
sumido, se me lembro bem. Entretanto, ele estava diferente. O garoto estava
tenso, quieto demais para a criança hiperativa que era.
A mãe dele o deixou na frente da escola e, do momento em
que ele desceu do carro, ele tornou-se mudo. Sem dar um pio, ele foi à sala de
aula, sem cumprimentar ninguém. Resolvi segui-lo.
—
Tá tudo bem? — Perguntei.
—
Não. — Ele respondeu
irritado.
—
O que aconteceu?
—
Ninguém acredita em mim.
—
Acreditar? Acreditar no que?
—
Ontem à noite... —
Ele disse baixo. Agora, outras crianças entravam na sala. Acho que ele não
queria que todo mundo ouvisse o que ele estava me contando. — Um monstro entrou no meu
quarto.
—
Sério!? — Eu me
aproximei mais para perto dele. Eu nunca tinha visto um monstro, mas sempre
quis ver. Toda a minha atenção se voltou para ele. — Como ele era!?
—
Fale mais baixo.
—
Ah... Ok, desculpe...
—
Então... — Andrew
continuou. — Eu
não... Eu não consegui ver o monstro, sabe? Eu só...
—
Então como você sabe que foi um monstro? —
Indaguei rapidamente.
—Porque
era! — Ele exclamou.
Percebendo que havia falado alto demais, Andrew começou a cochichar no meu
ouvido. Ele deve ter achado que devia ter chamado atenção, então resolveu
manter-se o mais quieto possível. —
Porque era, ok? Era... Estranho. Tava de noite. Eu já tinha ido dormir. A luz
tava apagada. De repente, eu senti frio, mesmo coberto. Aí eu percebi que eu
não conseguia mexer nem meus braços e nem minhas pernas. Então...
—
Bom dia, classe! —
Era a nossa professora que havia acabado de entrar na sala.
—
Bom dia, professora! —
Os outros alunos responderam como um coral.
—
Ah... — Andrew
parecia tonto, quase prestes a vomitar. —
Eu... Eu termino de contar depois. No recreio, ok?
—
Ta... — Respondi
desanimado.
As aulas daquele dia pareciam ter passado tão devagar.
Naquela época, a escola ainda era divertida. Agora eu sei que aquela sensação
de torpor no tempo era causada pela minha ansiedade. Eu ficava encarando os
ponteiros do relógio da sala de aula para que os segundos passassem mais
rapidamente. Em vão, é claro. Até cheguei a perguntar pra Andrew se ele poderia
me contar durante a aula, cochichando mesmo, mas ele se recusou. Ele parecia
ainda mais estranho.
Eventualmente, metade das aulas do dia havia passado. O
recreio chegou. Enquanto a maioria de meus amigos estava preocupar em pegar o
playground pra brincar de esconde-esconde ou arrumar um lugar pra lanchar, eu segui
Andrew.
Nós dois fomos juntos até um canto afastado do resto da
escola. Perto de nós estava um garoto que era da nossa sala. Entretanto, ele
era um dos poucos que eram introvertidos. Ele parecia brincar com algum bicho
de pelúcia. Não tenho certeza. Eu não prestei muita atenção na hora. Andrew
ainda menos.
Podíamos ver os nossos colegas brincando alegremente de
onde estávamos, bem como ouvir exclamações alegres e risos. Eu tive vontade de
me juntar a eles. Porém, o amigo ao meu lado tinha a minha curiosidade.
—
Então... —Andrew
murmurou. Ele olhou para mim, um tanto quanto confuso. — Onde eu parei mesmo?
—
Você tava na sua cama. —
Respondi. — Com frio,
sem conseguir se mexer...
—
Ah é... — Ele tremeu.
— Não foi legal...
—
E o que aconteceu depois?
—
Eu... Senti alguma coisa na minha boca.
—
O que era...?
—
Uma mão, eu acho. Mas... Era pequena. E peluda. E tinha garras, eu acho.
—
Era algum animal?
—
Parecia. Mas já falei que era um monstro. —
Andrew tremeu de novo. —
Ele... Ele arrancou o meu dente. Doeu, mas eu não consegui gritar. De repente,
já era de manhã. Eu... Eu acho que dormi, mas não tenho certeza. Acordei sem o
meu dente. Contei pra minha mãe e ela não acreditou! — Ele ficou irritado. — Ela falou que foi só um pesadelo e que meu
dente caiu durante a noite. Quando ela chegar em casa, ela vai achar o dente.
Ou é o que ela acha.
—
Hm... — Eu ouvi tudo
o que Andrew disse. Entretanto, eu mesmo não conseguia acreditar em tudo
aquilo. — Entendi.
—
Ei... Vamos... Vamos esquecer isso, ok? —
Ele se levantou. —
Vamos ver se a gente pode entrar lá pro esconde-esconde.
—
Ah... — Eu hesitei,
mas, no fim, sorri. —
Ok!
Levantamos e passamos o resto do intervalo brincando
juntos. Foi bom. Andrew voltou a sorrir. O resto do dia passou bem rápido.
Tudo estava ótimo, de volta ao normal.
Isso é, até o dia seguinte.
Eu procurei Andrew assim que cheguei na escola. Ele, mais
uma vez, estava na sala de aula. Uma garota de nossa sala, Caroline, estava com
ele. Os dois pareciam abalados.
—
O que aconteceu? —
Perguntei com certa inocência.
—
Não pode ser um pesadelo. —
Disse Andrew sem emoção. —
Agora eu tenho certeza.
—
Hã...?
—
Aconteceu comigo também. —
Falou Caroline. — O
monstro veio até o meu quarto de noite. E então... — Ela abriu a boca, mostrando o espaço onde um
de seus dentes incisivos deveria estar. —
Isso aconteceu.
Mais uma vez, tudo aquilo pareceu muito estranho. Afinal,
perder dentes de leite nessa idade era normal, certo? Desde pequeno eu já sabia
disso. Não poderia tudo aquilo ser um simples pesadelo? Ou, então, alguma
pegadinha? Será que Andrew estava tentando me assustar com alguma história boba
sobre um monstro? Não seria a primeira vez que ele tentava fazer aquilo com
alguém.
Assim, resolvi agir normalmente. Por mais estranhos que
Andrew e Caroline estivessem agindo, resolvi não prestar muita atenção neles. Sem
problemas. Passei o resto do dia falando com o resto dos meus amigos.
Porém, o arrependimento chegou mais tarde naquele dia.
Não sei que horas eram, mas eu já havia dormido. De
repente, eu acordei com uma sensação estranha. Estava frio. Parecia que eu
estava deitado sem camisa em um chão de metal e não na minha cama. Meus braços
e pernas estavam pesados. Mesmo não estando presos a nada, eu não podia os
mover.
De repente, eu vi algo se movendo. Uma luz fraca entrava
pela fresta da porta de meu quarto. Aquela era a única iluminação com q que eu
contava. Lentamente, o vulto veio em minha direção. Lentamente, uma mancha
negra subiu no meu corpo e andou sobre as minhas costelas até o meu peito. Eu
tentei gritar, é claro. Talvez os meus pais pudessem me ouvir. Porém, parecia
que havia algo entalado em minha garganta. Som nenhum saiu de minha boca.
Eu vi a mão da criatura vindo em direção a minha boca em
câmera lenta. Senti o suor escorrendo pela minha face. Os nervos de meu rosto
pareciam que iam estourar enquanto eu, em vão, tentava desviar da mão do
monstro.
Involuntariamente, minha boca se abriu. Tentei com toda
força fechá-la, principalmente quando a mão da criatura entrou nela. Eu pensei
que poderia mordê-lo, afugentá-lo. Mas não pude. Permaneci imóvel e angustiado enquanto
aquelas garras geladas tocavam em um de meus pré-molares.
Então, o monstro torceu meu dente, girando-o de um lado
para o outro, cada mais forte, cada vez mais rápido. Minha gengiva doía. Os
músculos de meu rosto se contraíam com a dor. Eu fechei os olhos. Eu ficaria
assim até aquilo acabar. Tudo podia ser apenas um pesadelo. Mas não. Mesmo
pequeno, eu tinha certeza que aquilo era real. A dor era real.
De repente, tudo parou. Eu senti uma dor aguda. O meu
dente foi removido brutalmente. Eu senti o gosto do meu sangue em minha boca.
Também senti todo o meu corpo suando e tremendo. Eu queria chorar, mas não
consegui. Gritar ainda era impossível, bem como me mover. Praticamente
congelado, eu fiquei deitado em minha cama, esperando a agitação passar e a
exaustão me por para dormir.
Quando acordei, entendi como Andrew deve ter se sentido.
Contei sobre o monstro para o meu pai. Ele sorriu e me confortou, falando que
aquilo fora apenas um pesadelo. Ele procuraria pelo meu dente mais tarde. Eu
tinha certeza que ele não estaria de baixo de minha cama e, muito menos,
debaixo de meu travesseiro.
Eu me sentia um idiota por não ter acreditado em Andrew e
Caroline, por isso, foi até eles assim que cheguei à escola. Não falei com mais
ninguém até ver os dois.
Adoraria falar que bolamos um jeito de derrotar esse
monstro e que, no final, todo mundo ficou feliz e com os dentes a salvo. Porém,
a realidade não é tão feliz nesse caso, afinal, éramos apenas crianças de oito
anos contra alguma criatura sobrenatural. Tudo o que conseguimos fazer foi
avisar sobre o ocorrido para o restante da sala. Nada mais.
Nos dias que vieram em seguida, nós sofremos em silêncio.
A cada dia, um de nós aparecia sem um dente e relatando a mesma história
traumatizante. Agatha, Pedro, Lucas, Adriana, Letícia, Paulo, Henrique. Nenhum
deles parecia se safar. E aquilo teria continuado sem nenhum adulto dar
importância.
Porém, as coisas começaram a ficar ainda mais bizarras, chegando
ao ponto em que os adultos não mais acreditaram que havíamos perdido os nossos
dentes a noite.
Primeiramente, todos os alunos da sala haviam perdido um
dente, um seguido do outro. Era estranho, mas possível, claro. Porém, começaram
a surgir relatos de outras crianças, muitas mais velhas que nós, perdendo os
dentes e se justificando com a mesma história.
Elas eram de outras salas, de outras escolas inclusive.
Muitas das crianças que perdiam, entretanto, dentes permanentes e saudáveis.
Aquilo começou a deixar os nossos pais alarmados. Na
época, eu não havia entendido muito bem o porquê. De repente, o monstro parecia
extremamente real e perigoso, muito além de nossa compreensão.
Agora, entretanto, eu entendo a preocupação. Poderia ter
sido alguém lunático entrando em nossos quartos à noite, realizando algum
fetiche doentio. O psicopata poderia estar nos perseguindo desde a saída da
escola, não mais discernindo quem era do colégio ou, simplesmente, das
redondezas.
O caso teve certa repercussão na mídia local. A escola
começou a ser investigada, bem como seus funcionários. Aqueles que tinham
condições de se mudar o fizeram. Alguns, até, mudaram de cidade. Muitos não
voltaram à escola, nem nos anos seguintes.
Eu cheguei, entretanto, a encontrar alguns de meus
colegas com o tempo. Normal, não é? Parece que a gente sempre se reencontra com
algumas pessoas. Entretanto, nem sempre é uma situação feliz. No meu caso,
nenhum dos reencontros foi bom.
Era como se as memórias daquela época infernal voltassem
para nos assombrar. Nem mesmo aqueles com que eu tinha mais afinidade pareciam
felizes em me ver. Eu, sinceramente, não fiquei muito magoado. Por mais que não
quisesse admitir, também sentia aversão a eles, mesmo não querendo.
Houve, entretanto, algumas poucas exceções. Nenhum
relacionamento durou muito, mas, pelo menos, não foi trágico desde o começo
como os outros.
Eu estudei com Andrew no ensino médio. Fomos amigos por
três anos, mas, a cada dia fomos nos tornando mais distantes. Não sei como ele
está agora.
Agatha, minha paixão de infância, acabou se tornando
minha namorada. Foi apenas por pouco tempo, talvez dois meses, quando tínhamos dezesseis
anos. Olhar para a cara um do outro nos trazia recordações que esperávamos,
juntos, deixar para trás. Não deu certo.
Caroline foi minha colega durante meio ano apenas no
ensino fundamental. Tínhamos treze anos, acho. A pobre garota parecia
claramente perturbada. Isso todos os dias. Eu mal falava com ela, mesmo
querendo muito. Um dia, de repente, ela se foi, sem explicações, sem dizer um
pio.
Há um caso que, mesmo não tendo durado mais do que alguns
segundos, eu creio que seja bom mencionar: William. Eu cheguei a mencioná-lo
antes. Era o garoto introvertido que brincava com seu bicho de pelúcia.
Oito anos atrás nós nos encontramos. Eu voltava de algo
simples. Talvez eu tivesse ido à padaria, não sei ao certo. Mas eu sei que ele
estava lá.
William, aquele menino magrelo com o cabelo desgrenhado
que lhe cobria os olhos, estava sentado num banco de uma praça perto da minha
casa. Eu nunca havia falado com ele. De fato, eu nunca havia ouvido sua voz.
Porém, resolvi conversar com ele mesmo assim.
Enquanto me aproximava, fiquei em dúvida se ele estava
acordado ou não. William apenas olhava para baixo, nem parecia estar respirando.
Ao seu lado percebi que havia um bicho de pelúcia. Talvez fosse o mesmo, mas
não sei dizer. Só sei dizer que sua aparência era bem surrada. Era um crocodilo,
verde, quase desbotado.
—
Ah... — Limpei a
garganta. —
William...?
O garoto levantou a cabeça levemente.
—
Ah... Há quanto tempo... —
A voz não poderia ser dele. Era arrastada e grave, quase como a de um fumante
de longa data. — Thiago,
não é mesmo...?
Eu ia responder que sim. Porém, eu não consegui dizer
nada. O ar ficou frio. Minhas pernas começaram a tremer. De repente, senti algo
praticamente puxando os meus olhos para baixo.
Assim, praticamente paralisado, eu olhei na direção do
bicho de pelúcia no colo de William. Eu ouvi uma risada profunda e, então, o pequeno
crocodilo abriu sua boca, sorrindo e revelando seus dentes. Eram todos
irregulares, alguns amarelados, de tamanhos diferentes e, principalmente, todos
humanos.
Praticamente congelado no tempo eu permaneci ali. Não sei
quanto tempo se passou. Porém, quando eu escapei daquele transe, o crocodilo
havia sumido. O corpo de William, entretanto, permaneceu lá, sem vida, sem cor.
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