quarta-feira, 11 de maio de 2016

Conto 20 - Completo

Não foi Apenas um Sonho


Luz. Em um segundo, todas as sombras foram dissipadas. Cada canto daquele campo que parecia não ter fim estava agora preenchido pela claridade. Um mundo escuro estava agora pintado de branco.
No centro de tudo, algo tomava forma. Um homem aparecia e caia de joelhos.
Seus olhos se abriram. Sua respiração, pesada e ofegante, era o segundo sinal de vida dado pelo sujeito. O rosto pálido e a expressão assustada o faziam parecer com um cadáver ambulante.
Aquele homem olhava rapidamente de um lado para o outro claramente confuso. Afinal, um instante atrás, ele estava sendo afogado pelas trevas, desesperado, sem salvação aparente. Antes disso, não existiam memórias em sua mente. Não tão recentes, pelo menos.
Você. Uma voz inquietante o chamou. Vire-se.
Assustado, o homem engoliu em seco. Talvez aquela pessoa pudesse o ajudar, porém, não era o que seu bom senso dizia. Aquela voz não era natural. Definitivamente não pertencia a um ser humano.
Você não é surdo. O ser afirmou num tom neutro.  Sei que você pode me ouvir... E sei que está com medo...
Dizer que o sujeito estava petrificado seria um equívoco grosseiro. Suas pernas tremiam. Suas mãos suavam. Sua respiração estava ofegante. Seu coração palpitava com o temor. Ele podia sentir no ar que estava em perigo.
Você não vai vir até mim...? A voz indagou. Não vai se voltar para trás...?
O silêncio praticamente absoluto do mundo foi a resposta.
Não importa... O ser disse desprovido de qualquer emoção positiva ou negativa. Eu vou até você...
O homem arregalou os olhos. Sua boca se abriu, porém, nenhum som dela veio. Não havia tempo para reagir.
Um vento gélido atravessou o sujeito. Os pelos de seu corpo se arrepiaram. Seu coração pareceu parar de bater. Sua visão se tornou turva. Algo parecia agarrar sua garganta.
Porém, nada daquilo durou mais que alguns instantes.
Quando se deu por si, o sujeito foi surpreendido pelo ser a sua frente.
A forma era etérea, quase irreal. O homem mal podia distinguir as características do ser que o encarava.
Sua cor parecia variar entre uma infinidade de tons pastel, todas quase brancas, quase desaparecendo. Seus membros pareciam inconstantes, tremeluzindo como chamas sob uma ventania. De seu rosto, apenas um leve sorriso era nítido.
Fora isso, nem mesmo o gênero do ser era claro. O timbre de sua voz era ambíguo, parecendo um homem e uma mulher falando em uníssono. Seu tórax era menos efêmero que seus  membros, porém, parecia coberto por algum tipo de manto sedoso tão delicado quanto às pétalas de uma flor.
Antes de mais nada... O ser voltou a falar. Isso não é um diálogo. É um monólogo. Você vai apenas ouvir o que eu tenho a dizer, certo?
O homem permaneceu em silêncio, ainda temendo o que o desconhecido faria. Assim, ele apenas assentiu com um movimento rápido e discreto com a cabeça.
O ser, então, inclinou sua cabeça para a direita. Sua expressão se tornou um pouco mais nítida. Era possível ver que ele estava um pouco incomodado. A resposta de seu interlocutor parecia decepcioná-lo.
Ótimo... Ele bufou. Alguma pergunta...?
É claro que haviam. Muitas. O suficiente para aquele homem não saber por qual começar. Como o ser não havia tentado matá-lo ainda, julgou que não seria uma má ideia pensar a respeito.
Quem é você? O que é você? Onde estamos? Como vim parar aqui? Como eu saio daqui?
Após pensar por alguns momentos, o sujeito decidiu por qual começaria. Ele limpou a garganta e, com toda a coragem que reuniu perante a entidade, abriu a boca para fazer sua pergunta.
Porém, nenhum som saiu.
O sujeito pareceu não entender a princípio. Dentro de sua cabeça, ele ouviu sua voz. Porém, após abrir sua boca, nenhum som chegou aos seus ouvidos.
Ele tentou de novo. E novamente. E mais uma vez. E limpou a garganta. Forçou-a até começar a tossir. Porém, não conseguia fazer nenhum barulho. Nenhuma palavra saia. Gritos completamente abafados vieram então. Suas mãos trêmulas foram até sua cabeça. Seus dedos se entrelaçaram por seu cabelo. Suor começou a escorrer pela sua testa Ele gritou em vão uma segunda fez. E uma terceira. E uma quarta. Seu rosto se esticava. Sua boca se abria até seu limite. Entretanto, um silêncio inquietante ainda reinava. Um vazio caótico o intoxicava. A insanidade parecia brotar e florescer a partir da paz a sua volta.
O homem caiu de joelhos. Impotente, ele queria chorar. Mas nem isso ele conseguia fazer.
Ei... O ser o chamou com certo bom humor. Não se desespere com tão pouco...
O homem olhou para a entidade. Ele queria sentir raiva. Era quase como se aquele ser havia caçoado de sua situação. Porém, suas palavras soaram um tanto quanto gentis. Por isso, resolveu não se precipitar.
Isso foi apenas um teste. O ser afirmou. Você não conseguir falar significa que está tudo indo conforme o planejado.
Observar o olhar do sujeito era o suficiente para saber que ele estava confuso. As últimas palavras de seu interlocutor pareceram ter deixado o pobre homem ainda mais confuso, tão aturdido quanto se tivesse levado um soco contra a têmpora.
Deixe-me explicar... A entidade pareceu tomar fôlego. Você está vivo. Você está deitado em sua cama, dormindo. No momento, estamos no seu subconsciente. É como se você estivesse sonhando... Mas não exatamente. Afinal, eu não faço parte de sua imaginação. Eu sou bem real, apesar de não estar vivo... Sim. Eu estou morto. Sou um espírito. Sim, espíritos conseguem se comunicar com os vivos. De várias maneiras, na verdade. A que eu estou usando é, bem... Especial. Não são todos que podem fazer o que eu estou fazendo, entende?
Suas palavras foram claras, em bom som. O ser havia falado quase pausadamente, como se falasse com uma criança. Era muita informação para ser assimilada, é claro. Porém, como o sujeito a sua frente havia assentido, presumiu que havia entendido tudo e que poderia continuar sua explicação sem problemas.
Perfeito... A entidade sorriu com certa ternura. Então, continuando... Eu sou o que alguns podem chamar de um espírito evoluído, uma alma forte ou uma alma boa. Não importa muito o nome. O que importa é que eu tenho mais valor no pós-vida do que na vida na Terra... O que é uma forma de compensação, creio eu... O ser bufou. Sabe, eu era bem fraco, apesar de ter tentado não ser. Lutei muito para conseguir pouco. Foi pisoteado por todos. Nunca realizei nenhum de meus sonhos. Morri miseravelmente... Sua voz estava se alterando de pouco em pouco, bem como o seu rosto. Ao perceber isso, respirou fundo e se acalmou. Enfim... Agora, morto, recebi uma oferta irrecusável. Algo que vale a pena sacrificar a minha alma, o que resta de mim, para que se torne realidade. Algo que nenhum mortal seria capaz de fazer. Algo digno dos deuses antigos!
Curioso, o homem observava o espírito. Sua atenção estava voltada completamente para cada pequena palavra dita por ele. Perceber aquilo fez o ser efêmero sorrir satisfeito, mesmo que quase imperceptivelmente.
Sobre o pós-vida... A entidade parecia escolher as palavras com cuidado. Eu não posso te contar muito. Peço desculpas. Se eu contar... Estarei quebrando uma clausula do meu contrato... E fazer isso seria suicídio de minha parte... Literalmente. Seu olhar parecia ter se perdido no grande vazio além de seu interlocutor. Mas... Eu posso te afirmar que nem tudo e preto no branco, bom ou mal... Existe muita coisa no meio. Existem muitas criaturas no meio. Não são anjos. Nem mesmo demônios. São... Diferentes de tudo já descrito por humanos. Não posso ficar falando muito deles... Só direi que um deles veio até mim. Ele me convenceu a não ir para o Grande Além com algumas poucas palavras... E uma promessa. Uma promessa de poder...
O sujeito estava, agora, boquiaberto. Seus lábios se moviam lentamente apesar de não fazerem nenhum som. Ele certamente tentava encontrar palavras para dizer, tentava formular a pergunta mais importante no momento. Um ato em vão, é claro. Sua voz não havia retornado. Porém, o espírito ficou contente com o entusiasmo de seu ouvinte, com o desejo de saber pertencente àquele reles homem.
Aposto que você deseja saber que tipo de poder eu consegui... A entidade falou com uma tranquilidade invejável, quase sussurrando suas palavras. Não é mesmo?
O homem assentiu sem pensar.
Ótimo. O olhar do ser etéreo se voltou para o alto por alguns segundos e, então, voltou a encontrar o de seu ouvinte. Vou te contar... Ele fez uma breve pausa. Sua forma parecia se agitar, cada vez mais efêmera. É algo realmente simples de se explicar. Porém, as consequências de meu poder são... Absolutas. De um certo modo, ao menos... Afinal, só uma pessoa é afetada... Você.
O sujeito pareceu um tanto quanto confuso. Por alguns instantes, ele permaneceu em silêncio, pensativo, tentando prever as próximas palavras de seu interlocutor. Mas não conseguia. Então, simplesmente apontou para o próprio peito e perguntou, movendo os lábios e sem emitir um som: eu?
Sim, é claro. O ser respondeu a pergunta óbvia com boa vontade. Por isso que estou aqui falando com você... Para te avisar que posso ser o seu anjo da guarda. Ao ver o sujeito levantar uma sobrancelha, o espírito viu que deveria continuar falando. Não seja cético. Anjos da guarda realmente existem. E é assim que eles surgem. Alguém sacrifica sua alma para uma dessas criaturas... Em troca, esse benfeitor pode arrumar a vida de alguém amado... Algo muito melhor que apenas sorte, sabe? Alguém manipulando o universo para salvar alguém de acidentes de trânsito, relacionamentos amorosos sem futuro... Até mesmo um sentido para a vida, a superação de uma crise terrível... Esperança. Uma verdadeira luz no fim do túnel. Qualquer coisa pode ser arranjada. Tudo pode ser arranjado. Ele sorriu gentilmente. Suas formas pareceriam mais nítidas, mesmo que por um segundo apenas. Você ficaria surpreso em saber quantos pais se sacrificam por seus filhos, quantas avós abandonam suas almas por seus netos, quantos homens apaixonados escolhem ver suas almas gêmeas seguirem em frente... Ouvi tantos relatos disso... Quase faz a sua fé na humanidade voltar...
Nesse momento, a entidade percebeu que seu ouvinte sorria. Era um sorriso discreto, porém, genuíno, com olhos marejados e brilhantes. Sua expressão era de um contentamento indescritível.
Você não sabe quem eu sou... O espírito disse num tom solene. Mas adoraria saber. Adoraria que eu te contasse.
O sujeito assentiu. Uma lágrima escorreu de seu olho direito.
Eu... O ser pareceu escolher bem as suas próximas palavras. Eu... Sou alguém que você pisou em cima.
Mais uma vez, o sujeito estava confuso. Ele queria poder pedir para o espírito repetir o que havia acabado de dizer. Afinal, aquela última frase parecia não fazer sentido.
Eu sou alguém que você usou. O ser disse em alto e bom som. Quando minha utilidade acabou, fui descartado... Por ninguém menos que você, é claro... Sua voz se tornava gradativamente mais alta, mais carregada de raiva. Tenho certeza de que você nem deve se lembrar de mim. Afinal, como poderia? Foram vários como eu que foram pisados por você. Porém... Eu estou aqui bem na sua frente... E eu pretendo falar mais um pouco... Ele rosnou como um animal selvagem. Eu sofri até o último instante da minha vida. Vi minha família se afastando de mim enquanto eu enlouquecia. Vi o pouco que eu havia conquistado em minha vida ser tirado de mim. Tentei recuperar a minha felicidade de outras maneiras. Tudo em vão. No fim, morri na sarjeta com uma agulha fincada em meu braço. Tudo porque eu era bondoso demais. Bondoso demais para um mundo caótico e vil... Um momento de silêncio. Um momento para que um sorriso desumano surgisse nitidamente no rosto do espírito. Mas, agora... Eu vou poder ser feliz... Nos meus últimos momentos de vida... Eu serei feliz... Eu serei vingado... Porque a sua vida é minha para brincar... Seu destino será traçado pelas minhas mãos... O seu fim será dos mais agonizantes... Pois eu serei o seu diabo...
A expressão de felicidade no rosto do homem havia desaparecido há muito tempo. Até mesmo a confusão havia se dissipado. Tudo estava tão claro agora.
O sujeito tremia por completo. Ele se sentia envolto por um ar gélido que parecia penetrar seus ossos. Parecia que seu corpo estava prestes a se desfazer, pronto para desmoronar e ver seus cacos se estilhaçando contra o chão.
Você morrerá... O ser disse com prazer. Mas não antes de sua família perecer... Não antes do império que você construiu ruir... Não antes de você antes de você se afogar lentamente no mar do desespero e se embriagar com suas águas escuras...
Como um animal encurralado, o homem atacou.
Ele não queria mais ouvir aquilo. Não importava quanto medo sentia, aquele homem não abaixaria a cabeça e aceitaria aquilo. Não sem lutar ao menos.
Seu soco, entretanto, de nada foi útil.
Seu punho atravessou o corpo do espírito como se atravessasse uma nuvem de fumaça.
Desequilibrado, o homem caiu. Seu rosto foi de encontro com o chão. Seu corpo pesou. O tempo pareceu passar devagar enquanto ele via o ser rindo e andando calmamente para longe de sua vista.
Não desista ainda... Ele zombou. Sua voz ecoava no lugar vazio. Você ainda tem anos a sua frente... Eu tenho certeza disso...
Um ruído veio debaixo do solo: um som baixo que se propagava continuamente. A cada segundo que se passava, ele se tornava mais alto. Não demorou muito para que o piso começasse a tremer, nem para que começasse a se desfazer.
Era como se uma força puxasse um ponto do chão para baixo, criando um buraco que parecia sugar tudo a sua volta. O piso se entortava, criando uma ladeira que logo se transformaria num abismo.
O desespero começou a dominar o corpo do homem. Seu semblante aterrorizado deixava isso nítido. Se aquilo não era o suficiente para provar tal afirmação, o que faria a seguir certamente seria.
Com um salto, o sujeito se levantou. Ele avistou o espírito, afastando-se dele, caminhando calmamente para longe do epicentro do caos.
O homem respirou fundo. Seus olhos se fecharam. Sua cabeça se abaixou. Seu coração bateu mais rápido. Ele mal sentia seus pés tocarem o chão. Seus lábios se abriram. Ele sentiu algo vindo de dentro de si.
Com um grito retumbante, o homem tomado pelo desespero correu através de seu nêmeses.
Então, ele sentiu um peso caindo de seus ombros. Seu corpo, tomado pela adrenalina, parecia indestrutível. Era como se flutuasse: seus pés pareciam não tocar o chão.
E, de fato, não tocavam.
Quando se deu por si, o homem percebeu que algo o estrangulava: era uma das mãos do ser, não mais tão etéreo, erguendo-o acima de um abismo negro e sem fim.
Inutilmente, o sujeito levou as duas mãos até as garras daquele demônio. Sem conseguir respirar direito, sua visão começava a ficar turva.
Quando você acordar... O ser disse pausadamente. Tenha certeza de que isso não foi apenas um sonho...
Com essas últimas palavras, o demônio soltou sua vítima e riu com deleite enquanto ouvia o grito do homem sumindo em direção às trevas.

Aquele era apenas o começo do pesadelo que seria a vida daquele pobre homem. Ambos tinham certeza disso. 

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