Não foi Apenas um Sonho
Luz. Em um segundo, todas as sombras foram dissipadas. Cada
canto daquele campo que parecia não ter fim estava agora preenchido pela
claridade. Um mundo escuro estava agora pintado de branco.
No centro de tudo, algo tomava forma. Um homem aparecia e
caia de joelhos.
Seus olhos se abriram. Sua respiração, pesada e ofegante,
era o segundo sinal de vida dado pelo sujeito. O rosto pálido e a expressão
assustada o faziam parecer com um cadáver ambulante.
Aquele homem olhava rapidamente de um lado para o outro claramente
confuso. Afinal, um instante atrás, ele estava sendo afogado pelas trevas,
desesperado, sem salvação aparente. Antes disso, não existiam memórias em sua
mente. Não tão recentes, pelo menos.
—
Você. — Uma voz inquietante
o chamou. — Vire-se.
Assustado, o homem engoliu em seco. Talvez aquela pessoa
pudesse o ajudar, porém, não era o que seu bom senso dizia. Aquela voz não era
natural. Definitivamente não pertencia a um ser humano.
—
Você não é surdo. — O
ser afirmou num tom neutro. — Sei que você pode me
ouvir... E sei que está com medo...
Dizer que o sujeito estava petrificado seria um equívoco
grosseiro. Suas pernas tremiam. Suas mãos suavam. Sua respiração estava
ofegante. Seu coração palpitava com o temor. Ele podia sentir no ar que estava
em perigo.
—
Você não vai vir até mim...? —
A voz indagou. — Não
vai se voltar para trás...?
O silêncio praticamente absoluto do mundo foi a resposta.
—
Não importa... — O
ser disse desprovido de qualquer emoção positiva ou negativa. — Eu vou até você...
O homem arregalou os olhos. Sua boca se abriu, porém, nenhum
som dela veio. Não havia tempo para reagir.
Um vento gélido atravessou o sujeito. Os pelos de seu corpo
se arrepiaram. Seu coração pareceu parar de bater. Sua visão se tornou turva.
Algo parecia agarrar sua garganta.
Porém, nada daquilo durou mais que alguns instantes.
Quando se deu por si, o sujeito foi surpreendido pelo ser a
sua frente.
A forma era etérea, quase irreal. O homem mal podia
distinguir as características do ser que o encarava.
Sua cor parecia variar entre uma infinidade de tons pastel,
todas quase brancas, quase desaparecendo. Seus membros pareciam inconstantes,
tremeluzindo como chamas sob uma ventania. De seu rosto, apenas um leve sorriso
era nítido.
Fora isso, nem mesmo o gênero do ser era claro. O timbre de
sua voz era ambíguo, parecendo um homem e uma mulher falando em uníssono. Seu
tórax era menos efêmero que seus
membros, porém, parecia coberto por algum tipo de manto sedoso tão
delicado quanto às pétalas de uma flor.
—
Antes de mais nada... — O
ser voltou a falar. —
Isso não é um diálogo. É um monólogo. Você vai apenas ouvir o que eu tenho a
dizer, certo?
O homem permaneceu em silêncio, ainda temendo o que o
desconhecido faria. Assim, ele apenas assentiu com um movimento rápido e
discreto com a cabeça.
O ser, então, inclinou sua cabeça para a direita. Sua
expressão se tornou um pouco mais nítida. Era possível ver que ele estava um
pouco incomodado. A resposta de seu interlocutor parecia decepcioná-lo.
— Ótimo...
— Ele bufou. — Alguma pergunta...?
É claro que haviam. Muitas. O suficiente para aquele homem
não saber por qual começar. Como o ser não havia tentado matá-lo ainda, julgou que não seria uma má ideia
pensar a respeito.
Quem é você? O que é
você? Onde estamos? Como vim parar aqui? Como eu saio daqui?
Após pensar por alguns momentos, o sujeito decidiu por qual
começaria. Ele limpou a garganta e, com toda a coragem que reuniu perante a
entidade, abriu a boca para fazer sua pergunta.
Porém, nenhum som saiu.
O sujeito pareceu não entender a princípio. Dentro de sua
cabeça, ele ouviu sua voz. Porém, após abrir sua boca, nenhum som chegou aos
seus ouvidos.
Ele tentou de novo. E novamente. E mais uma vez. E limpou a
garganta. Forçou-a até começar a tossir. Porém, não conseguia fazer nenhum
barulho. Nenhuma palavra saia. Gritos completamente abafados vieram então. Suas
mãos trêmulas foram até sua cabeça. Seus dedos se entrelaçaram por seu cabelo.
Suor começou a escorrer pela sua testa Ele gritou em vão uma segunda fez. E uma
terceira. E uma quarta. Seu rosto se esticava. Sua boca se abria até seu
limite. Entretanto, um silêncio inquietante ainda reinava. Um vazio caótico o
intoxicava. A insanidade parecia brotar e florescer a partir da paz a sua
volta.
O homem caiu de joelhos. Impotente, ele queria chorar. Mas
nem isso ele conseguia fazer.
—
Ei... — O ser o
chamou com certo bom humor. —
Não se desespere com tão pouco...
O homem olhou para a entidade. Ele queria sentir raiva. Era
quase como se aquele ser havia caçoado de sua situação. Porém, suas palavras
soaram um tanto quanto gentis. Por isso, resolveu não se precipitar.
—
Isso foi apenas um teste. —
O ser afirmou. — Você
não conseguir falar significa que está tudo indo conforme o planejado.
Observar o olhar do sujeito era o suficiente para saber que
ele estava confuso. As últimas palavras de seu interlocutor pareceram ter
deixado o pobre homem ainda mais confuso, tão aturdido quanto se tivesse levado
um soco contra a têmpora.
—
Deixe-me explicar... —
A entidade pareceu tomar fôlego. —
Você está vivo. Você está deitado em sua cama, dormindo. No momento, estamos no
seu subconsciente. É como se fosse estivesse sonhando... Mas não exatamente.
Afinal, eu não faço parte de sua imaginação. Eu sou bem real, apesar de não
estar vivo... Sim. Eu estou morto. Sou um espírito. Sim, espíritos conseguem se
comunicar com os vivos. De várias maneiras, na verdade. A que eu estou usando
é, bem... Especial. Não são todos que
podem fazer o que eu estou fazendo, entende?
Suas palavras foram claras, em bom som. O ser havia falado
quase pausadamente, como se falasse com uma criança. Era muita informação para
ser assimilada, é claro. Porém, como o sujeito a sua frente havia assentido,
presumiu que havia entendido tudo e que poderia continuar sua explicação sem
problemas.
—
Perfeito... — A
entidade sorriu com certa ternura. —
Então, continuando... Eu sou o que alguns podem chamar de um espírito evoluído, uma alma forte ou uma alma boa. Não importa muito o nome. O que importa é que eu tenho
mais valor no pós-vida do que na vida na Terra... O que é uma forma de
compensação, creio eu... —
O ser bufou. — Sabe,
eu era bem fraco, apesar de ter tentado não ser. Lutei muito para conseguir
pouco. Foi pisoteado por todos. Nunca realizei nenhum de meus sonhos. Morri
miseravelmente... —
Sua voz estava se alterando de pouco em pouco, bem como o seu rosto. Ao
perceber isso, respirou fundo e se acalmou. —
Enfim... Agora, morto, recebi uma oferta irrecusável. Algo que vale a pena
sacrificar a minha alma, o que resta de mim, para que se torne realidade. Algo
que nenhum mortal seria capaz de fazer. Algo digno dos deuses antigos!
Curioso, o homem observava o espírito. Sua atenção estava
voltada completamente para cada pequena palavra dita por ele. Perceber aquilo
fez o ser efêmero sorrir satisfeito, mesmo que quase imperceptivelmente.
—
Sobre o pós-vida... —
A entidade parecia escolher as palavras com cuidado. — Eu não posso te contar muito. Peço
desculpas. Se eu contar... Estarei quebrando uma clausula do meu contrato... E
fazer isso seria suicídio de minha parte... Literalmente.
— Seu olhar parecia
ter se perdido no grande vazio além de seu interlocutor. — Mas... Eu posso te
afirmar que nem tudo e preto no branco, bom ou mal... Existe muita coisa no
meio. Existem muitas criaturas no
meio. Não são anjos. Nem mesmo demônios. São... Diferentes de tudo já descrito
por humanos. Não posso ficar falando muito deles... Só direi que um deles veio
até mim. Ele me convenceu a não ir para o Grande Além com algumas poucas
palavras... E uma promessa. Uma promessa de poder...
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