domingo, 1 de maio de 2016

Conto 20 - Parte 1

Não foi Apenas um Sonho


Luz. Em um segundo, todas as sombras foram dissipadas. Cada canto daquele campo que parecia não ter fim estava agora preenchido pela claridade. Um mundo escuro estava agora pintado de branco.
No centro de tudo, algo tomava forma. Um homem aparecia e caia de joelhos.
Seus olhos se abriram. Sua respiração, pesada e ofegante, era o segundo sinal de vida dado pelo sujeito. O rosto pálido e a expressão assustada o faziam parecer com um cadáver ambulante.
Aquele homem olhava rapidamente de um lado para o outro claramente confuso. Afinal, um instante atrás, ele estava sendo afogado pelas trevas, desesperado, sem salvação aparente. Antes disso, não existiam memórias em sua mente. Não tão recentes, pelo menos.
Você. Uma voz inquietante o chamou. Vire-se.
Assustado, o homem engoliu em seco. Talvez aquela pessoa pudesse o ajudar, porém, não era o que seu bom senso dizia. Aquela voz não era natural. Definitivamente não pertencia a um ser humano.
Você não é surdo. O ser afirmou num tom neutro.  Sei que você pode me ouvir... E sei que está com medo...
Dizer que o sujeito estava petrificado seria um equívoco grosseiro. Suas pernas tremiam. Suas mãos suavam. Sua respiração estava ofegante. Seu coração palpitava com o temor. Ele podia sentir no ar que estava em perigo.
Você não vai vir até mim...? A voz indagou. Não vai se voltar para trás...?
O silêncio praticamente absoluto do mundo foi a resposta.
Não importa... O ser disse desprovido de qualquer emoção positiva ou negativa. Eu vou até você...
O homem arregalou os olhos. Sua boca se abriu, porém, nenhum som dela veio. Não havia tempo para reagir.
Um vento gélido atravessou o sujeito. Os pelos de seu corpo se arrepiaram. Seu coração pareceu parar de bater. Sua visão se tornou turva. Algo parecia agarrar sua garganta.
Porém, nada daquilo durou mais que alguns instantes.
Quando se deu por si, o sujeito foi surpreendido pelo ser a sua frente.
A forma era etérea, quase irreal. O homem mal podia distinguir as características do ser que o encarava.
Sua cor parecia variar entre uma infinidade de tons pastel, todas quase brancas, quase desaparecendo. Seus membros pareciam inconstantes, tremeluzindo como chamas sob uma ventania. De seu rosto, apenas um leve sorriso era nítido.
Fora isso, nem mesmo o gênero do ser era claro. O timbre de sua voz era ambíguo, parecendo um homem e uma mulher falando em uníssono. Seu tórax era menos efêmero que seus  membros, porém, parecia coberto por algum tipo de manto sedoso tão delicado quanto às pétalas de uma flor.
Antes de mais nada... O ser voltou a falar. Isso não é um diálogo. É um monólogo. Você vai apenas ouvir o que eu tenho a dizer, certo?
O homem permaneceu em silêncio, ainda temendo o que o desconhecido faria. Assim, ele apenas assentiu com um movimento rápido e discreto com a cabeça.
O ser, então, inclinou sua cabeça para a direita. Sua expressão se tornou um pouco mais nítida. Era possível ver que ele estava um pouco incomodado. A resposta de seu interlocutor parecia decepcioná-lo.
Ótimo... Ele bufou. Alguma pergunta...?
É claro que haviam. Muitas. O suficiente para aquele homem não saber por qual começar. Como o ser não havia tentado matá-lo  ainda, julgou que não seria uma má ideia pensar a respeito.
Quem é você? O que é você? Onde estamos? Como vim parar aqui? Como eu saio daqui?
Após pensar por alguns momentos, o sujeito decidiu por qual começaria. Ele limpou a garganta e, com toda a coragem que reuniu perante a entidade, abriu a boca para fazer sua pergunta.
Porém, nenhum som saiu.
O sujeito pareceu não entender a princípio. Dentro de sua cabeça, ele ouviu sua voz. Porém, após abrir sua boca, nenhum som chegou aos seus ouvidos.
Ele tentou de novo. E novamente. E mais uma vez. E limpou a garganta. Forçou-a até começar a tossir. Porém, não conseguia fazer nenhum barulho. Nenhuma palavra saia. Gritos completamente abafados vieram então. Suas mãos trêmulas foram até sua cabeça. Seus dedos se entrelaçaram por seu cabelo. Suor começou a escorrer pela sua testa Ele gritou em vão uma segunda fez. E uma terceira. E uma quarta. Seu rosto se esticava. Sua boca se abria até seu limite. Entretanto, um silêncio inquietante ainda reinava. Um vazio caótico o intoxicava. A insanidade parecia brotar e florescer a partir da paz a sua volta.
O homem caiu de joelhos. Impotente, ele queria chorar. Mas nem isso ele conseguia fazer.
Ei... O ser o chamou com certo bom humor. Não se desespere com tão pouco...
O homem olhou para a entidade. Ele queria sentir raiva. Era quase como se aquele ser havia caçoado de sua situação. Porém, suas palavras soaram um tanto quanto gentis. Por isso, resolveu não se precipitar.
Isso foi apenas um teste. O ser afirmou. Você não conseguir falar significa que está tudo indo conforme o planejado.
Observar o olhar do sujeito era o suficiente para saber que ele estava confuso. As últimas palavras de seu interlocutor pareceram ter deixado o pobre homem ainda mais confuso, tão aturdido quanto se tivesse levado um soco contra a têmpora.
Deixe-me explicar... A entidade pareceu tomar fôlego. Você está vivo. Você está deitado em sua cama, dormindo. No momento, estamos no seu subconsciente. É como se fosse estivesse sonhando... Mas não exatamente. Afinal, eu não faço parte de sua imaginação. Eu sou bem real, apesar de não estar vivo... Sim. Eu estou morto. Sou um espírito. Sim, espíritos conseguem se comunicar com os vivos. De várias maneiras, na verdade. A que eu estou usando é, bem... Especial. Não são todos que podem fazer o que eu estou fazendo, entende?
Suas palavras foram claras, em bom som. O ser havia falado quase pausadamente, como se falasse com uma criança. Era muita informação para ser assimilada, é claro. Porém, como o sujeito a sua frente havia assentido, presumiu que havia entendido tudo e que poderia continuar sua explicação sem problemas.
Perfeito... A entidade sorriu com certa ternura. Então, continuando... Eu sou o que alguns podem chamar de um espírito evoluído, uma alma forte ou uma alma boa. Não importa muito o nome. O que importa é que eu tenho mais valor no pós-vida do que na vida na Terra... O que é uma forma de compensação, creio eu... O ser bufou. Sabe, eu era bem fraco, apesar de ter tentado não ser. Lutei muito para conseguir pouco. Foi pisoteado por todos. Nunca realizei nenhum de meus sonhos. Morri miseravelmente... Sua voz estava se alterando de pouco em pouco, bem como o seu rosto. Ao perceber isso, respirou fundo e se acalmou. Enfim... Agora, morto, recebi uma oferta irrecusável. Algo que vale a pena sacrificar a minha alma, o que resta de mim, para que se torne realidade. Algo que nenhum mortal seria capaz de fazer. Algo digno dos deuses antigos!
Curioso, o homem observava o espírito. Sua atenção estava voltada completamente para cada pequena palavra dita por ele. Perceber aquilo fez o ser efêmero sorrir satisfeito, mesmo que quase imperceptivelmente.

Sobre o pós-vida... A entidade parecia escolher as palavras com cuidado. Eu não posso te contar muito. Peço desculpas. Se eu contar... Estarei quebrando uma clausula do meu contrato... E fazer isso seria suicídio de minha parte... Literalmente. Seu olhar parecia ter se perdido no grande vazio além de seu interlocutor. Mas... Eu posso te afirmar que nem tudo e preto no branco, bom ou mal... Existe muita coisa no meio. Existem muitas criaturas no meio. Não são anjos. Nem mesmo demônios. São... Diferentes de tudo já descrito por humanos. Não posso ficar falando muito deles... Só direi que um deles veio até mim. Ele me convenceu a não ir para o Grande Além com algumas poucas palavras... E uma promessa. Uma promessa de poder...

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