Teaser 1B
O vento soprava como se sussurrasse. As poucas nuvens
presentes naquele dia pareciam estáticas no alto. O céu alaranjado anunciava o
fim da tarde. O sol se punha gentilmente, porém, ninguém parecia apreciar sua
beleza. Todos estavam ocupados demais. Com uma exceção.
Um jovem olhava para lugar nenhum. Seus olhos verdes
brilhavam. Seus cabelos estavam dourados sob a luz do sol. Seu rosto jovial
expressava confusão. Dos seus lábios veio um suspiro. Em sua mente, pensamentos
rugiam, digladiando-se como animais selvagens por território. Deitado no teto
de um carro abandonado no canto de um ferro-velho, trajando suas roupas
esfarrapadas, a única coisa da qual não podia reclamar era a vista da beira do
morro.
A cidade em que morava não era nada vista de lá. Era tão
insignificante comparado ao resto.
Grandes planícies que se estendiam até o horizonte.
Montanhas ao norte que pareciam se esticar até além das nuvens. Trilhos de trem
que poderiam muito bem levar uma pessoa até o fim do mundo e trazê-la de volta.
Tudo aquilo parecia tão emocionante e cheio de vida. Tudo aquilo deixava aquele
jovem entusiasmado, pronto para partir numa jornada sem volta sem pensar duas
vezes. Tudo. Até mesma a odiada capital.
Os obeliscos de metal e vidro pareciam uma afronta contra o
próprio céu. Daquelas torres brancas como marfim, pessoas viviam ignorantes ao
mundo abaixo delas. Dinheiro nunca faltava. Muito menos comida. Por suas ruas de
pedra polidas como prata, os moradores da capital andavam despreocupados,
vivendo com soberba e futilidade na mesma proporção.
Aquilo simplesmente deixava o rapaz enjoado. Seus dentes se
trincavam toda vez que pensava naquele lugar. Seus punhos se cerravam toda vez
que se lembrava da culpa da capital. Culpa de qual, ele sabia muito, não era completamente
dela.
Dezessete anos. Com menos de duas décadas de vida, aquele
garoto já carregava um fardo desde o berço. Ele, assim como incontáveis outros,
era vítima de uma guerra da qual não participou, de um massacre do qual não era
nem vivo quando chegou a sua nefasta conclusão.
Marcado por uma maldição, o jovem não era normal. E ele sabia bem disso. Com uma
suposta bênção, seus poderes, veio uma culpa que o consumia de pouco em pouco,
cada dia mais. Sua raiva só servia para mascarar sua tristeza.
Um som quebrou o silêncio. Algo havia acabado de cair,
produzindo um som metálico que rapidamente desapareceu. O rapaz levantou o
tronco e olhou em volta por alguns instantes, sem perceber nada de anormal.
Algum pedaço de sucata havia caído em algum lugar, despencando das montanhas de
metal velho que o cercavam. Não demorou para que o jovem voltasse a se deitar e
se perdesse em seus pensamentos mais uma vez.
Segurança. Sua
busca foi tida como o maior motivador da guerra de anos atrás. Agora, a
segurança é alcançada pela segregação, protegendo os cidadãos de bem da capital dos selvagens anormais do lado de fora.
Mas é claro que não eram apenas os super humanos que foram
excluídos. O senso de comunidade de seus companheiros era muito mais forte.
Famílias permanecerem juntas. Amigos continuaram unidos. Amantes pareciam se
tornarem ainda mais fortes. É claro que existiam as maçãs podres, porém, no
geral, todos os compatriotas viviam em harmonia, mesmo que isso significasse
sustentar a capital com seu suor.
Viver na miséria. Como servos, todos viviam para os senhores
da utopia. Isso era revoltante. O rapaz sabia. Mas também sabia que ele era um
dos culpados, apenas por ter nascido daquele jeito.
O garoto não queria continuar vivendo daquele jeito. Queria
poder fugir de tudo, de todos. Mas não podia. Não conseguia fazer nada.
Sentia-se inútil. A cada dia que passava, afastava-se mais e mais daqueles que
se importavam com ele. Não sabia mais como viver. Apenas sobrevivia.
Então, algo trouxe o jovem de volta à realidade.
Uma simples lata de alumínio. O objeto descreveu uma
parábola no ar e o atingiu, acertando sua testa. Rapidamente, ele se levantou, trincando
os dentes, já sabendo quem estaria sorrindo para ele.
A não mais do que cinco metros de distância do rapaz, uma
jovem parecia esperar a reclamação do amigo.
—
Usar um alvo parado não é fácil demais, Emily? —
O rapaz questionou, erguendo uma sobrancelha, tentando não soar irritado. — Qual é o desafio
nisso...?
—
Nenhum. — Ela admitiu
alegremente. Calmamente, ela andava na direção do rapaz, quase saltitando. — Só achei mais fácil
chamar a sua atenção assim. Mais fácil do que gastar minhas cordas vocais,
gritando pra te tirar do seu transe...
—
Fora que assim você pode me irritar... —
O rapaz saltou de cima do carro. —
Não é?
—
Mas é claro, caro Eric...
Os dois continuaram andando. Em um instante, eles já se
encaravam, estando a um passo de distância um do outro.
Eric olhou para a
amiga de longa data. Seus olhos azuis eram penetrantes. Seus cabelos castanhos
avermelhados escorriam pelos seus ombros. Sua pele era alva como a neve. Em
seus lábios rosados, um sorriso perolado sempre caloroso residia. Mesmo com as
roupas esfarrapadas e algumas marcas de sujeira pretas no rosto, Emily
continuava inegavelmente bela.
Todo o jeito delicado da moça se foi, entretanto, quando
acertou um tapa sonoro no rosto do amigo.
Eric fez uma careta de dor e levou rapidamente uma mão na
direção da bochecha golpeada.
—
Eu sei o que você fez nas minas hoje, moleque. —
Emily disse num tom sério, antes mesmo que o jovem pudesse reclamar. — Por que mais você estaria
aqui, fazendo absolutamente nada, a uma hora dessas?
Parando para pensar por um segundo, Eric percebeu que Emily
só realmente viria até lá para fazer aquele sermão. Era óbvio. Porém, o rapaz
não havia parado para pensar naquilo. Afinal, já estava feliz só de ver o rosto
da amiga. Ele sabia que ela o tiraria daquela tempestade interna, mesmo que
isso significasse entrar em uma discussão tola.
—
Hm... — Eric bufou. — Eu já não tava mais aguentando
aquilo... Você sabe que eu não consigo trabalhar com gente gritando no meu
ouvido...
—
Mas você não ficou uma semana... —
Emily disse ainda incrédula, balançando a cabeça para os lados. — Nem uma semana, e você se
meteu numa briga...
—
Uma briga que eu ganhei. —
Ele interrompeu pomposamente. Então, cruzou os braços. — Sem levar um arranhão, diga-se de
passagem...
—
Que bom... — A garota
retrucou num tom irônico. —
Você deveria arrumar um trabalho onde você pudesse ganhar para bater nas
pessoas! Seria maravilhoso! Um lutador profissional! Um campeão! Homens iriam
querer ser você! Mulheres iriam querer dar pra você! Uhul! Aí a gente poderia
ver quanto tempo demoraria pra descobrirem que você tem poderes! Quanto tempo
até começarem a te caçar, hein!? Uns dois dias depois que descobrirem!?
—
Não enche... — Eric
disse irritado, desviando o olhar da amiga.
—
O que você acha que vai acontecer contigo? —
Emily continuou o sermão. —
O que vai ser de você? Como você pretende viver...!?
—
A gente não vive, ok!? —
O rapaz elevou o tom de voz. —
Isso não é jeito de se viver... E você sabe muito bem...
—
Eu tento fazer o melhor que eu posso! —
A garota disse exasperada. —
Eu faço o que eu não gosto pra não ter que lidar com o pior depois! Você sabe
bem disso! — Ela socou
com força o peito de Eric. —
Eu faço o melhor pra mim... E o melhor pra você também, seu ingrato! Eu...
Eu...
Emily parou. Com o olhar para baixo, respirava fundo,
tentando se acalmar.
Embora fosse apenas um ano mais velha, a jovem agia como a
responsável pelos dois. Já que os pais de ambos haviam morrido quando os dois
eram pequenos, tiveram que confiar em pessoas que acabaram por decepcioná-los
ou, até, traí-los. No fim das contas, a dupla teve que viver junta, confiando
um no outro e, é claro, em seus poderes. Porém, as chamadas bênçãos pareciam
atrair problemas para onde quer que fossem. Então, como nômades, iam de cidade
em cidade, procurando o melhor lugar que poderiam conseguir. E Emily sabia que
os conflitos causados por Eric apenas complicavam ainda mais a situação, por
mais que não quisesse ficar pensando no assunto.
Porém, o rapaz também sabia que era muitas vezes um estorvo
para a amiga.
— Eu vou me desculpar mais
tarde... — Murmurou
Eric, claramente não muito animado. —
Amanhã, talvez... Talvez eu consiga o trampo de novo... Quem sabe...? Ou talvez
eu vá trabalhar em algum outro canto da cidade... Pegar algum bico...
Nesse momento, os dois se olharam bem nos olhos. Mais
palavras não precisaram ser ditas. Ambos queriam que aquilo se tornasse
verdade, sendo que Eric apenas queria despreocupar a amiga.
—
Bem, talvez aí possamos conseguir algo decente pra comer... — Emily suspirou e, então,
levou uma mão à barriga. —
Cansei de tomar sopa e comer carne dura... Mais uns dias assim e aí a gente entra
pra vida do crime...
—
Aí o meu talento de bater nas pessoas seria útil... — Eric abriu um ligeiro sorriso.
—
Aí, talvez, você levasse um tiro na bunda. —
Emily retribuiu o sorriso. —
Aí, talvez, você não poderia falar mais sem
levar um arranhão.
—
É... Talvez.
Então, com mais um sorriso e um abraço, tudo estava de volta
ao normal. Afinal, as discussões e entendimentos dos dois pareciam sempre
seguir um padrão. De fato, era como de a dupla fosse irmão e irmã.
—
Bem... Vamos voltar para a cidade... —
Disse Emily calmamente. —
Já está quase de noite... E não temos certeza de onde vamos dormir ainda.
—
É...
Foi tudo que Eric disse. A garota olhou para o amigo e
percebeu que ele estava, novamente, perdido num mar de ponderações.
A jovem não pensou duas vezes. Ela ergueu um indicador. A
mesma lata de antes se levantou no chão, ganhando altitude de pouco em pouco.
Então, seguindo o movimento do dedo de Emily, o objeto voou na direção da nuca
de Eric.
—
Ei! — Ele reclamou
após levar uma mão à nuca. —
Você não cansa de fazer isso, não?
—
Você não cansa de ficar olhando pro nada, mexendo a boca sem falar nada que nem
um peixe? — A garota
retrucou.
—
É que... — O rapaz
suspirou. — Nada.
—
Pode ir falando. —
Emily insistiu, um tanto quanto curiosa, cruzando os braços. — Não se acanhe, moleque.
—
Hm... — Calmamente, o
garoto procurava as palavras certas. —
É só que eu... — Ele
olhou no fundo dos olhos de Emily. —
Eu sinto que algo está vindo. Algo grande...
— Algo grande... — A jovem repetiu as palavras, tentando entender
o amigo.
—
É só um pressentimento... —
O rapaz deu de ombros. —
Pode não ser nada.
—
Bem... — Emily levou
um dedo ao queixo, pensativa. — Talvez você esteja prestes a arrumar um
emprego que dure mais de duas semanas. —
Ela sorriu. — Isso
sim seria algo grande!
—
Não enche...
Enquanto Emily, distraída, ria, Eric apontou para a porta do
carro onde estava deitado. Com um movimento rápido de sua mão, o jovem arrancou
o pedaço do resto de veículo, mandando-o contra as costas da garota.
Um ato em vão.
Mesmo de costas, Emily precisou apenas apontar para a porta
para que ela parasse no ar.
Com um sorriso, ela fechou sua mão. A porta, então, foi
esmagada, amassada como uma bola de papel. Inerte, o pedaço de sucata caiu no
chão rochoso e seco.
—
Pobre e ingênuo Eric... —
Emily zombou alegremente. —
Você nunca vai me superar nesse jogo.
—
Eu sei. — O rapaz
sorriu.
O sorriso desapareceu do rosto de Emily quando ela viu que o
garoto apontava para debaixo dela. Em um segundo, a rocha onde pisava se ergueu
do chão e, como um tiro de canhão, foi lançada para longe. Literalmente sem
chão, a jovem caiu sentada num buraco.
—
Pobre e ingênua Emily... —
Agora foi a vez de Eric zombar. —
Você subestima seu oponente e deixa sua guarda aberta... Decepcionante.
—
Moleque... — Ela
trincou os dentes.
Mas já era tarde demais. Eric havia corrido até a beira do
precipício.
—
Ei... — Ele se voltou
para a amiga. — Que
tal uma corrida até a cidade?
Antes que Emily pudesse responder, o rapaz saltou.
Um. Dois. Três. Os segundos passavam rapidamente. Com o
vento correndo por entre seus cabelos, Eric sorriu confiante enquanto se
aproximava do chão. Ele estendeu o braço na direção do solo.
Então, um escudo surgiu.
Uma metade de uma esfera prateada, praticamente invisível,
formou-se abaixo do rapaz. O escudo absorveu todo o impacto da queda e, então,
desfez-se, permitindo uma aterrissagem suave para Eric.
O rapaz gritou o nome da amiga, apressou-a e, sem hesitar,
correu.
Uma hora ele acabaria cansando. O mesmo podia ser dito sobre
Emily. Quando seus pulmões não aguentavam mais, juntarem-se e resolveram andar
pelo resto do percurso.
Sob o céu noturno, cravejado de estrelas, a dupla seguiu
entre risadas e discussões.
Eric conseguia escapar da tempestade interna. Essa era a
intenção desde o começo. Porém, o que ele não percebia, é que aquilo também
fazia bem para Emily. Ver o amigo sorrindo era importante para ela, é claro.
Entretanto, o rapaz não era o único com um conflito dentro de si.
E, então, algo grande chegaria.
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