sábado, 7 de maio de 2016

Conto 20 - Parte 2 (Final)

O sujeito estava, agora, boquiaberto. Seus lábios se moviam lentamente apesar de não fazerem nenhum som. Ele certamente tentava encontrar palavras para dizer, tentava formular a pergunta mais importante no momento. Um ato em vão, é claro. Sua voz não havia retornado. Porém, o espírito ficou contente com o entusiasmo de seu ouvinte, com o desejo de saber pertencente àquele reles homem.
Aposto que você deseja saber que tipo de poder eu consegui... A entidade falou com uma tranquilidade invejável, quase sussurrando suas palavras. Não é mesmo?
O homem assentiu sem pensar.
Ótimo. O olhar do ser etéreo se voltou para o alto por alguns segundos e, então, voltou a encontrar o de seu ouvinte. Vou te contar... Ele fez uma breve pausa. Sua forma parecia se agitar, cada vez mais efêmera. É algo realmente simples de se explicar. Porém, as consequências de meu poder são... Absolutas. De um certo modo, ao menos... Afinal, só uma pessoa é afetada... Você.
O sujeito pareceu um tanto quanto confuso. Por alguns instantes, ele permaneceu em silêncio, pensativo, tentando prever as próximas palavras de seu interlocutor. Mas não conseguia. Então, simplesmente apontou para o próprio peito e perguntou, movendo os lábios e sem emitir um som: eu?
Sim, é claro. O ser respondeu a pergunta óbvia com boa vontade. Por isso que estou aqui falando com você... Para te avisar que posso ser o seu anjo da guarda. Ao ver o sujeito levantar uma sobrancelha, o espírito viu que deveria continuar falando. Não seja cético. Anjos da guarda realmente existem. E é assim que eles surgem. Alguém sacrifica sua alma para uma dessas criaturas... Em troca, esse benfeitor pode arrumar a vida de alguém amado... Algo muito melhor que apenas sorte, sabe? Alguém manipulando o universo para salvar alguém de acidentes de trânsito, relacionamentos amorosos sem futuro... Até mesmo um sentido para a vida, a superação de uma crise terrível... Esperança. Uma verdadeira luz no fim do túnel. Qualquer coisa pode ser arranjada. Tudo pode ser arranjado. Ele sorriu gentilmente. Suas formas pareceriam mais nítidas, mesmo que por um segundo apenas. Você ficaria surpreso em saber quantos pais se sacrificam por seus filhos, quantas avós abandonam suas almas por seus netos, quantos homens apaixonados escolhem ver suas almas gêmeas seguirem em frente... Ouvi tantos relatos disso... Quase faz a sua fé na humanidade voltar...
Nesse momento, a entidade percebeu que seu ouvinte sorria. Era um sorriso discreto, porém, genuíno, com olhos marejados e brilhantes. Sua expressão era de um contentamento indescritível.
Você não sabe quem eu sou... O espírito disse num tom solene. Mas adoraria saber. Adoraria que eu te contasse.
O sujeito assentiu. Uma lágrima escorreu de seu olho direito.
Eu... O ser pareceu escolher bem as suas próximas palavras. Eu... Sou alguém que você pisou em cima.
Mais uma vez, o sujeito estava confuso. Ele queria poder pedir para o espírito repetir o que havia acabado de dizer. Afinal, aquela última frase parecia não fazer sentido.
Eu sou alguém que você usou. O ser disse em alto e bom som. Quando minha utilidade acabou, fui descartado... Por ninguém menos que você, é claro... Sua voz se tornava gradativamente mais alta, mais carregada de raiva. Tenho certeza de que você nem deve se lembrar de mim. Afinal, como poderia? Foram vários como eu que foram pisados por você. Porém... Eu estou aqui bem na sua frente... E eu pretendo falar mais um pouco... Ele rosnou como um animal selvagem. Eu sofri até o último instante da minha vida. Vi minha família se afastando de mim enquanto eu enlouquecia. Vi o pouco que eu havia conquistado em minha vida ser tirado de mim. Tentei recuperar a minha felicidade de outras maneiras. Tudo em vão. No fim, morri na sarjeta com uma agulha fincada em meu braço. Tudo porque eu era bondoso demais. Bondoso demais para um mundo caótico e vil... Um momento de silêncio. Um momento para que um sorriso desumano surgisse nitidamente no rosto do espírito. Mas, agora... Eu vou poder ser feliz... Nos meus últimos momentos de vida... Eu serei feliz... Eu serei vingado... Porque a sua vida é minha para brincar... Seu destino será traçado pelas minhas mãos... O seu fim será dos mais agonizantes... Pois eu serei o seu diabo...
A expressão de felicidade no rosto do homem havia desaparecido há muito tempo. Até mesmo a confusão havia se dissipado. Tudo estava tão claro agora.
O sujeito tremia por completo. Ele se sentia envolto por um ar gélido que parecia penetrar seus ossos. Parecia que seu corpo estava prestes a se desfazer, pronto para desmoronar e ver seus cacos se estilhaçando contra o chão.
Você morrerá... O ser disse com prazer. Mas não antes de sua família perecer... Não antes do império que você construiu ruir... Não antes de você antes de você se afogar lentamente no mar do desespero e se embriagar com suas águas escuras...
Como um animal encurralado, o homem atacou.
Ele não queria mais ouvir aquilo. Não importava quanto medo sentia, aquele homem não abaixaria a cabeça e aceitaria aquilo. Não sem lutar ao menos.
Seu soco, entretanto, de nada foi útil.
Seu punho atravessou o corpo do espírito como se atravessasse uma nuvem de fumaça.
Desequilibrado, o homem caiu. Seu rosto foi de encontro com o chão. Seu corpo pesou. O tempo pareceu passar devagar enquanto ele via o ser rindo e andando calmamente para longe de sua vista.
Não desista ainda... Ele zombou. Sua voz ecoava no lugar vazio. Você ainda tem anos a sua frente... Eu tenho certeza disso...
Um ruído veio debaixo do solo: um som baixo que se propagava continuamente. A cada segundo que se passava, ele se tornava mais alto. Não demorou muito para que o piso começasse a tremer, nem para que começasse a se desfazer.
Era como se uma força puxasse um ponto do chão para baixo, criando um buraco que parecia sugar tudo a sua volta. O piso se entortava, criando uma ladeira que logo se transformaria num abismo.
O desespero começou a dominar o corpo do homem. Seu semblante aterrorizado deixava isso nítido. Se aquilo não era o suficiente para provar tal afirmação, o que faria a seguir certamente seria.
Com um salto, o sujeito se levantou. Ele avistou o espírito, afastando-se dele, caminhando calmamente para longe do epicentro do caos.
O homem respirou fundo. Seus olhos se fecharam. Sua cabeça se abaixou. Seu coração bateu mais rápido. Ele mal sentia seus pés tocarem o chão. Seus lábios se abriram. Ele sentiu algo vindo de dentro de si.
Com um grito retumbante, o homem tomado pelo desespero correu através de seu nêmeses.
Então, ele sentiu um peso caindo de seus ombros. Seu corpo, tomado pela adrenalina, parecia indestrutível. Era como se flutuasse: seus pés pareciam não tocar o chão.
E, de fato, não tocavam.
Quando se deu por si, o homem percebeu que algo o estrangulava: era uma das mãos do ser, não mais tão etéreo, erguendo-o acima de um abismo negro e sem fim.
Inutilmente, o sujeito levou as duas mãos até as garras daquele demônio. Sem conseguir respirar direito, sua visão começava a ficar turva.
Quando você acordar... O ser disse pausadamente. Tenha certeza de que isso não foi apenas um sonho...
Com essas últimas palavras, o demônio soltou sua vítima e riu com deleite enquanto ouvia o grito do homem sumindo em direção às trevas.

Aquele era apenas o começo do pesadelo que seria a vida daquele pobre homem. Ambos tinham certeza disso. 

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