Segunda Chance
Acordei tonto, com o corpo dolorido e sem conseguir
pensar direito.
As memórias voltariam aos poucos, eu querendo ou não.
Em questão de segundos, já conseguia me lembrar do meu
nome, de vagar pelas ruas cinzentas de minha cidade e, também, de ter bebido.
Muito.
Mas aquilo foi preciso. Eu nunca teria tido a coragem de
fazer aquilo sóbrio.
Eu nunca teria pulado na frente daquele carro de cabeça
sem estar bêbado.
Enfim, minha vida havia chego ao fim. Eu havia escapado
de meus arrependimentos e infelicidades.
Agora, restava-me descobrir o que me aguardava no pós
vida.
Os céus vermelhos, o chão rochoso cor de asfalto, o
impiedoso ar quente e um mar de lava não muito longe de mim.
Aquilo deveria ser
o inferno. Pensei. Porém, não havia problema. Eu estava preparado para
enfrentar qualquer coisa agora. Afinal, eu não tinha mais nada a perder.
Calmamente, desci a colina em que eu estava, chegando
mais e mais perto da costa infernal.
Porém, em questão de instantes, eu percebi que eu não era
o único naquele lugar.
A cada passo que eu dava, eu via mais pessoas se
aproximando da costa.
Entretanto, elas estavam me deixando inquieto.
Eu olhava atentamente para cada um que passava do meu
lado. Homens e mulheres, de várias idades, alturas, etnias, cortes de cabelo e
vestidas de forma diferente.
Nada de anormal, certo?
Errado. Elas não tinham rostos.
Sem bocas, olhos, orelhas, narizes.
Além disso, todas aquelas pessoas eram como zumbis,
arrastando-se por aquele inferno e aguardando algo na costa de lava fervente.
—
Eles estão esperando o barqueiro. —
Disse uma voz distorcida atrás de mim.
Senti calafrios em minha espinha. Rapidamente, voltei-me
para trás para ver quem, ou o quê, era.
Deparei-me com algo que me parecia humano. Porém, eu não
tinha como ter certeza. Todo o seu corpo estava coberto por uma túnica cinzenta
e gasta, com direito a um capuz e uma máscara branca sem expressão, como a face
de um manequim com abertura para os olhos.
—
Sabe, o barqueiro? —
Ele indagou. — Como
Caronte, da mitologia grega, sabe?
—
Ah, sei... — Respondi
não muito animado. —
Então, esse é realmente o inferno...
—
Mais ou menos.
—
Como assim?
—
Bem... Você vai entender se pegar o barco.
—
Você quer dizer que há a possibilidade de eu não pegar o barco?
—
É. Mas isso vai depender de você. E de mim.
—
E... quem seria você?
—
Um amigo. Uma pessoa que se importa com você.
—
Claro! — Ri com certo
desdém.
—
Qual é a graça?
—Olha,
parceiro... Ninguém nunca se importou de verdade comigo.
—
Isso não é verdade.
—
Claro que é.
—
Não adianta negar. Eu te conheço tão bem quanto você mesmo.
—
Pare de falar besteiras.
—
Besteiras? É assim que você chama o
seu tempo com ela?
Eu não consegui responder. Não a princípio, pelo menos.
Ela?
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