5.
Nina Von Brandt
Saint Peter. Mais especificamente, na prisão de segurança
máxima da cidade durante a noite. A fortaleza cinzenta, localizada no extremo
sul da metrópole (em uma região quase deserta) era conhecida como o Portão do Inferno.
Afinal, lá era o local onde criminosos atrozes aguardavam a aplicação de sua
pena de morte.
A mais nova aquisição da prisão era uma jovem. Nina era
seu nome. Poucos acreditavam que alguém como ela estaria naquele lugar. Mais
inacreditável foi o que ela havia feito para acabar ali.
A história de Nina não justificava os crimes que ela
havia cometido. Porém, seus atos explicavam muito sobre ela. E era isso o que
Ada Blanchet queria saber.
Escoltada por um guarda truculento, a jovem, filha de um
dos magnatas locais, andava pela prisão até Nina.
Ada ignorava qualquer comentário que viessem dos
prisioneiros. Nenhuma ameaça ou cantada barata surtiria efeito na jovem.
Não demorou para que Blanchet chegasse até onde ela
queria.
No fim do corredor, lá estava Nina. A prisioneira de um
metro e setenta trajava um uniforme laranja que parecia ser muito largo para o
seu corpo magro. Presa atrás das barras de ferro de sua cela ela olhava para o
nada.
—
Von Brandt! — O
guarda a chamou. —
Você tem visita. Tente não assustá-la. —
Ele se voltou para Blanchet. —
Tenha cuidado.
Após dizer isso, o guarda se afastou um pouco. Ada
respirou fundo, sorriu e andou até a cela de Nina.
Von Brandt tinha uma expressão de cansaço, ou talvez
tédio, no delicado rosto. Seus cabelos loiros e lisos escorriam até o meio de
suas costas. Seus olhos verdes pareciam perdidos até encontrarem os da
visitante.
—
O que você ta fazendo num lugar como esse? —
Von Brandt perguntou rispidamente antes que Blanchet pudesse dizer alguma
coisa.
—
Ah... — Ada
balbuciou, sentindo-se um pouco ameaçada. —
Eu vim falar com você. —
Ela sorriu novamente. —
Vou te entrevistar, por assim dizer.
Diante dos olhos de Blanchet, Von Brandt era apenas uma
atividade extracurricular chique, uma cobaia para ser analisada e, então
descartada. E a assassina sabia disso.
Calmamente, Nina olhou a visitante de cima a baixo.
Os sapatos pretos de salto alto que pareciam brilhar. As
calças jeans em perfeito estado. A
camisa branca de algodão. O colete prateado de grife. A pequena bolsa de couro
que ela levava no ombro. A corrente de ouro no pescoço. Os brincos, também de
ouro, nas orelhas. A maquiagem impecável no rosto alvo e sorridente. Os cabelos
negros e ondulados. Os olhos cor de mel.
—
Gente rica é estranha mesmo... —
Nina bufou. — Fora
que suas vidas devem realmente ser um tédio.
—
Ah... Como assim? —
Ada parecia legitimamente confusa.
—
Você tem muita cara de mimada, querida. Não tente fingir que não é.
—
Bem...
—
Aí você vem pra um lugar “perigoso” que nem esse para ter algo, digamos,
emocionante em sua vida, não? —
Ela indagou, inclinando a cabeça levemente para a esquerda. — Algo para contar para os
outros. Algo para se gabar. Algo que, claro, só foi possível graças ao dinheiro
e influência de sua família. Nada fora do comum, não é mesmo? Afinal, tudo o
que você “conseguiu” nessa vida, foi por esse motivo. Até mesmo a vaga na
faculdade de psicologia que você está cursando, não é?
Ada não conseguia falar nada. O fato da desconhecida ter
descoberto tanto sobre ela apenas a observando era, sem dúvida, inquietante.
Von Brandt começou a rir olhando para o rosto da
visitante. A expressão de medo no rosto de Blanchet era hilária. Pelo menos,
hilária para a assassina atrás das grades.
—
Mas, enfim... — Nina
disse calmamente. —
Você veio entrevistar uma psicopata em ascensão, não é? — Ela sorriu. —
Pode ir perguntando.
Ada limpou a garganta e murmurou:
—
Certo... — Ela
colocou a mão dentro de sua bolsa e tirou de lá um celular. Um sorriso surgiu
em sua face. — Vamos
começar.
—
Claro. — Nina olhou
calmamente para o celular nas mãos da visitante. —
Pretende gravar o que eu vou falar? Ou apenas anotar algumas coisas?
—
Eu estava pensando em gravar. Espero que não haja problemas.
—
Mas é claro que não! Na verdade, eu até ia pedir pra você gravar. Vou querer uma
cópia disso depois.
—
Claro... — Blanchet
riu baixo. — Como se
você fosse sair daqui viva...
—
Nunca se sabe.
—
Você foi sentenciada à morte.
—
Mas nunca se sabe. —
Nina insistiu, exibindo um sorriso brincalhão. —
Eu posso estar com a chave da minha cela na minha manga direita, apenas
esperando o momento certo para usá-la.
—
Claro, claro... — Ada
bufou. — Podemos
começar?
—
Você já pagou a sua reserva. —
Ela zombou. — Pode
fazer quantas perguntas quiser. Tudo o que você te que fazer é perguntá-las.
—
Certo. — Blanchet
parecia um pouco irritada. Rapidamente, ela acionou o gravador de voz. — Vamos começar com sua
infância, certo?
—
Que original... — A
assassina bufou. —
Você poderia me perguntar como foi o meu dia, sabe? Perguntar o que eu gosto de
fazer nos fins de semana...
—
Prefiro que você me fale sobre a sua infância. —
Ela disse rispidamente.
—
Ok, ok... — Nina
olhou para o alto, pensativa. —
Por onde eu começo?
—
Se possível, em algum momento frustrante. Talvez eu possa saber o que fez com
que seu comportamento se alterasse para... —
Ela olhou a criminosa dos pés a cabeça. —
Bem, para isso o que você se tornou.
—
Ah, certo. — Von
Brandt levou o indicador ao queixo, pensativa. —
Bem... Talvez tenha algo a ver com aquele final de semana quando eu tinha onze
anos...
—
Talvez... Mas eu vou precisar de mais detalhes.
—
Sem problemas. — Ela
coçou a nuca. — Bem,
meu pai tinha morrido há algumas semanas. Um ataque cardíaco. Ele sempre teve a
saúde delicada. Pelo menos, foi o que minha mãe me dizia. E não acho que ela
mentiria sobre isso. — Nina suspirou. — Nossa... Eu me lembro de ter chorado muito
naqueles dias. E minha mãe também. Estávamos sozinhas sem ele no mundo...
Ava
se sentiu mal de repente. Claro que não era sem motivo. Von Brandt parecia
estar se controlando para não chorar enquanto dizia as últimas palavras.
— Enfim...nós
duas não poderíamos ficar daquele jeito pra sempre, não é? — Nina esboçou um sorriso. — Minha mãe teve a ideia de nos mudarmos. Ir
para um lugar calmo, afastado da caos da nossa cidade. Era isso o que eu
queria. Era isso o que ela sempre quis. — Ela conseguiu
exibir um belo sorriso. — Então...foi
isso o que fizemos.
— Certo. — Blanchet sorriu. — Pode continuar.
— Bem, aí, tudo
aconteceu muito rápido. — Von Brandt
admitiu. —Nós duas nos
mudamos para uma casa praticamente no meio do nada. Nossos vizinhos mais
próximos, que estavam a quase um quilômetro de distância, eram um homem
divorciado e sua filha que, na época, tinha a mesma idade que eu. — Ela riu baixo. — Não demorou muito para que a minha mãe e o
senhor Descateaux começassem a se apaixonar. Se tudo desse certo, a filha dele,
Wendy, minha nova melhor amiga, iria se tornar a minha irmã. Mas, aí, a minha
mãe adoeceu.
— O que
aconteceu?
— Eu nem me
lembro muito bem. Tinha algo a ver com a pressão dela caindo. Acho que ela
sofria disso quando era mais jovem. Ela achou melhor voltar para a cidade, ir
para um bom hospital. Aquilo...foi meio frustrante, sabe? Eu não queria sair de
perto da Wendy, mas eu não queria sair de perto da minha mãe.
— E então?
— Minha mãe e o
senhor Descateaux conversaram. Eles chegaram a conclusão que não demoraria para
minha mãe voltar do hospital. Porém, se eu quisesse, eu poderia ficar alguns
dias com o senhor Descateaux e com a Wendy. — Ela sorriu. — Eu não
consegui dizer “não” àquela ideia.
— Ah... Então,
qual foi a sua frustração?
— O senhor
Descateaux me estuprou. Pouco depois que eu entrei na casa dele. Ele rasgou as
minhas roupas com as próprias mãos. Frustrante, não?
— Ah... — Blanchet não conseguiu dizer mais nada.
— Sabe a pior
parte? Wendy estava assistindo. Enquanto o pai dela apertava o meu pescoço
contra o chão gelado da cozinha e me estuprava, ela sorria. — Nina riu. — Não era um sorriso malicioso, como se ela zombasse a situação.
Era um sorriso terno, amoroso. E só depois eu fui entender o porquê. “É assim
que um homem demonstra seu amor por uma mulher” ela disse. “É o que ele fazia
com a minha mãe, é o que ele fez com sua mãe e é o que ele faz comigo”.
O
rosto horrorizado de Ada fez com que Nina gargalhasse.
— Sendo sincera,
já tive transas piores. — Ela continuou.
— E, além disso,
aquela deveria ser a parte menos ruim do dia. Sentir o corpo quente, suado e
pesado dele contra o meu horrível. Porém, no resto do tempo, o senhor
Descateaux me deixava presa no porão da casa. Eu tinha três baldes. Um continha
água. Outro, qualquer merda que ele achasse que seria bom para eu comer. Isso
quando ele se lembrava de colocar comida. O último era o meu banheiro.
A
expressão de terror na face de Ada parecia um pouco menos engraçada para Nina
agora. A assassina deixou escapar apenas uma breve risada antes de dizer:
— Foi nesse
momento que eu tive certeza que a Wendy era uma completa idiota. A garota via o
que estava acontecendo. Ela vinha conversar comigo de vez em quando. Mas aquela
imbecil agia como se tudo estivesse certo. — Ela bufou. — Pelo menos,
até eu a convencer do contrário... Ou mais ou menos.
— Como... Como
assim? — Ada conseguiu
indagar.
— Ora, ainda
consegue falar. — Von Brandt
riu. — Ótimo! — Ela respirou fundo. — Então... Wendy percebeu que eu estava mal,
machucada, cansada, comia mal... Sabe, essas coisas? Então ela resolveu falar
com o pai dela. — Nina fez uma
breve pausa. — Nunca mais
aquela garota veio me visitar.
— E... E
então...?
— Aquilo continuou
por mais um tempo. Não sei quantos dias foram. Mais eu não aguentava mais
aquilo. A minha vontade de viver já tinha acabado. Mas... sei lá. Aceitar a
morte...? Não me parecia a escolha certa. Eu tinha muitas coisas que eu queria
fazer, sabe? Conhecer pessoas, lugares, me apaixonar, seguir um sonho bobo de
ser uma cantora. — Ela riu. — Talvez eu não tenha seguido a vida que eu
esperava, mas, mesmo assim, eu não tenho arrependimentos. E, estranhamente,
algo melhorou o meu humor naquele lugar.
— O que era?
— A comida. — Nina gargalhou. — Eu não sabia se ele estava cozinhando ou
comprando pronta, mas aquela carne era muito boa.
— Ah...
Entendi... — Ela parecia um
pouco enjoada.
— Vegetariana,
hein?
— Sim...
— Nesse caso,
vou continuar falando da carne. — A assassina
riu. — Ou não. Talvez
eu devesse falar de como eu escapei daquele lugar. O que você acha?
— Conte como
você escapou. Por favor.
— Olha... É
nesse momento que a história fica mais engraçada. — Ela sorriu. — Sabe... O senhor Descateaux bebia muito. Então, teve um dia que
ele simplesmente escapou de trancar a porta.
— É isso? — Ada parecia surpresa. — Você simplesmente saiu correndo porta a
fora?
Nina
riu alto, zombando a ingenuidade de sua visitante, antes de responder:
— É claro que
não, tolinha! — Ela gargalhou.
— Não, não... Eu
estava vestindo apenas alguns trapos, não se lembra? Quando eu saí do porão, na
cozinha, fui em direção ao quarto da Wendy. Porém, eu tinha que passar pela
sala. O senhor Descateaux estava jogado na poltrona, com as luzes apagadas, vendo
televisão enquanto bebia uma garrafa de uísque no gargalo. Patético, sem
dúvida. Mas, mesmo assim, eu tinha que fazer silêncio para passar por trás
dele. — Von Brandt
começou a rir ainda mais alto do que antes. — Mas aí a minha barriga roncou de fome! O barulho foi tão alto que
quase que o senhor Descateaux me viu! Digo, ele olhou para trás por cima do
ombro, preguiçoso, sem virar muito o pescoço. Enfim... — A assassina olhou para Ada direto nos olhos.
— Eu tinha que
comer aquela bendita carne. Eu já estava salivando pensando naquilo se
desfazendo em minha boca. Então, obviamente, eu voltei pra cozinha...
Von
Brandt se manteve em silêncio por alguns instantes. Blanchet apenas olhava para
a assassina, esperando que ela continuasse seu relato. Porém, a prisioneira
parecia perdida demais em seus pensamentos.
— E então...? — Ada, por fim, perguntou. — O que aconteceu em seguida?
— Desculpa. — Pediu Nina. — Eu tava me lembrando do cheiro.
— Que cheiro?
— Aquele aroma
podre que estava no ar. Mais forte na cozinha. Mais forte ainda na geladeira.
— Alguma coisa
estava podre?
— Sim. A
carne...
— Então... Você
estava comendo carne podre?
— Sim... Mas
esse não era o maior problema.
— O que era
então?
— Wendy.
— O que tem...?
Von
Brandt começou a rir incontrolavelmente.
— A carne era
dela. — Nina respondeu
com um sorriso no rosto. — Tinha um braço
e uma perna na geladeira. Outras partes, como a cabeça, eu encontrei no lixo da
casa mais tarde. — Ela riu de
novo. — Eu tava
comendo a carne da filha daquele monstro!
Blanchet
estava paralisada de medo. Seu rosto estava contorcido de medo. Suas pernas
tremiam. No final, ela acabou vomitando no chão.
— Eu fiz a mesma
coisa, sabe? — Nina continuou
a falar num tom casual. — O pavor. O
nojo. E, é claro, o vômito. — Ela respirou
fundo. — Mas foi graças
a isso que eu mudei. — A jovem
começou a estralar o pescoço. — Sabe... Eu
precisei de tudo aquilo pra ver o quão ingênua eu era. Mas creio que aquele foi
o único jeito de eu me tornar o que eu sou hoje.
As
luzes do corredor começaram a piscar. Os guardas ficaram em alerta. Ada parecia
aturdida demais para perceber qualquer coisa. Isso é, até ela ver Nina tirando
uma chave debaixo da manga direita.
— Esse era o
sinal que eu estava esperando. — Von Brandt
gargalhou.
As luzes
se apagaram. Sons de tiros começaram a soar de todos os cantos. Gritos de dor e
desespero foram somados ao caos.
Em
meio a escuridão, Nina havia aberto sua cela e, agora, tinha suas mãos no
pescoço de Ada.
— Eu ainda tenho
que terminar de contar a minha história. — A assassina
riu. — E, depois, vou
querer ouvir essa gravação, querida.
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