2.
Uriel Corvi Allard
Amber foi a primeira a descer a escada de metal e chegar
ao esgoto.
Depois do caos e da quase morte dela e do namorado, a
manipuladora do fogo respirou fundo. Ela estava tão contente por estar viva que
nem o cheiro do fétido do lugar a incomodou.
A jovem sabia que teria que atravessar o calabouço frio de
concreto e canos de cobre velhos, tentando não cair nos rios de água turva e
esverdeada. Mas Amber não estaria sozinha, o que a acalmava.
Dante desceu logo em seguida. Ele caiu lentamente ao lado
da namorada.
Os dois trocaram sorrisos por um instante e, rapidamente,
abraçaram um ao outro, segurando-se forte, com medo de que o parceiro pudesse
se for.
O casal cochichou na orelha um do outro coisas como
“ainda estamos vivos” e “nunca vou sair do seu lado”.
Calmamente, após alguns instantes, veio Uriel. O jovem de
dezenove anos estava se certificando que ninguém os seguiria. Pelo menos, não
tão cedo. A barreira de gelo fora reforçada pelo Corvo. Talvez ela pudesse
aguentar cinco minutos de fogo contínuo das Forças Especiais agora.
O casal se voltou para o querido amigo e sorriu.
—
Valeu. — Agradeceu
Geier. — Dessa vez,
mais do que nunca.
—
É... — Concordou Cox
alegre. — Valeu
mesmo, Corvo.
O rosto de Allard manteve-se calmo, em um misto de tédio
e sono. Ele simplesmente deu de ombros e disse:
—
Sem problemas. Eu não podia deixar vocês dois morrerem. Não depois de ter
tirado vocês dois de problemas por tanto tempo... — Corvi olhou rapidamente para Dante. — Cara...
—
O quê? — Ele perguntou.
Uriel não disse nada. Apenas fez um rápido gesto com seu
dedo mínimo esquerdo, movendo-o de cima para baixo.
Dante olhou confuso mas, mesmo assim, ele tentou repetir
o gesto. Em vão.
Quando o jovem se lembrou que havia perdido o dedo há
poucos instantes atrás, ele gritou, arregalando os olhos:
—
Merda!
Amber soltou um grito também. Enquanto Geier se agitava
vendo o sangue escorrer pela sua mão, sua namorada tentava o acalmar. A
expressão no rosto de Allard ainda era a mesma de tédio e sono.
Após alguns segundos, Cox segurou a mão esquerda do
namorado e sussurrou:
—
Tente ficar calmo...
Rapidamente, Amber criou uma pequena chama entre o
indicador e o polegar de sua mão direita. Com o máximo de cuidado que ela
dispunha, Cox tocou no ferimento de Dante.
Geier soltou um grito alto e ininteligível.
—
Desculpa, Dante... —
Amber Tentou dizer calmamente. —
Foi a melhor opção...
—
Por que não foi com você! —
Geier inspirava e exalava rapidamente. —
Droga! Ta ardendo, porra...
— Que
cena linda... — Corvi
murmurou. — Posso
sentir o amor no ar...
—
Fica quieto, Corvo! —
Dante gritou.
—
Se não fosse por mim, você estaria morto... —
Disse Allard. — Tente
não se esquecer disso...
—
Ele ta certo... —
Admitiu Amber. — A
gente ta em dívida com ele. Pra variar...
Geier bufou. Ele sabia que Cox estava certa. Mais uma vez
ele tinha feito algo perigoso e quase terminou morto. E mais uma vez, ele foi
salvo pelo Corvo. Só que, desta vez, a situação poderia ter sido pior. Afinal,
a vida de Amber poderia ter acabado junto com a dele.
—
Ok, ok... — Dante se
dirigia a Allard. —
Foi mal.
—
Não esquenta... —
Disse Corvi. —
Agora... Que tal sairmos desse esgoto? A não ser, é claro, que vocês queiram
esperar as Forças Especiais virem...
Não houve objeções. Os três começaram a andar pelo
labirinto que era o esgoto de Saint Paul.
Entretanto, o clima não era de paz. Uma pessoa não estava
sendo totalmente sincera sobre o que sentia.
Por trás de seu sorriso, Dante escondia uma raiva antiga.
O jovem ficava se remoendo sempre que Corvi estava por perto.
Geier e Allard cresceram juntos no Subsolo. Muitos
moradores da cidade viam os dois garotos como irmãos. E, quando pequenos, eles
se davam muito bem juntos.
Porém, as diferenças foram surgindo enquanto eles
cresciam.
Os poderes de Uriel despertaram bem mais rapidamente do
que os de Dante. Quando Geier começou a dar choques elétricos nas pessoas a sua
volta com os dedos, ele tinha doze anos. Quando o Corvi começou a criar e
arremessar bolas de neve em um dia quente de verão, ele tinha apenas oito anos.
Allard também se tornou um exímio lutador com o tempo.
Seu mestre, Zhao, morador antigo da cidade, o ensinou tudo o que pôde sobre
kung fu. A combinação da arte marcial com o aprimoramento de seu poder, que o
permitiu criar armas como espadas e bastões, foi fantástica.
Enquanto isso, Dante arrumava brigas pela região,
principalmente perto do Distrito Sul do Subsolo, covil de muitos criminosos.
Sem conhecimento em lutas (já que ele havia desistido rapidamente do kung fu e
não havia tentado aprender mais nada) e com seus poderes pouco desenvolvidos, Geier
normalmente acabava em apuros. Claro que se Dante não lutasse contra vários
inimigos ao mesmo tempo, ele não perderia lutas tão frequentemente e,
consequentemente, o Corvo não precisaria regatá-lo tantas vezes.
Naquela época, Geier era apenas um garoto sem rumo e
cheio de raiva. Agora, ele apenas fingia não ser um.
Então, toda vez que Uriel vinha ajudá-lo, Dante se enchia
de ódio, lembrando-se de todas as outras vezes que ele havia sido impotente. E
Geier ficava especialmente irritado quando Amber estava envolvida na situação.
Em uma realidade em que Dante e Uriel fossem irmãos, era
bem fácil saber quem era o filho prodígio e a ovelha negra da família.
—
Então... — Corvi
começou a falar. — O
que vocês pretendem fazer agora? Certamente não pretendem voltar para o Subsolo
para descansarem. Pelo menos, não carregando essas jóias e com as Forças
Especiais em alerta bem acima das nossas cabeças...
—
É, a gente já tinha pensado que isso poderia acontecer. — Respondeu Cox. — E é por isso que vamos tentar vender logo as
jóias que conseguimos, se der tudo certo, em alguma cidade não muito longe
daqui. Colina Verde, Cidade da Brisa, Horizonte Sem Fim... — Ela sorriu alegremente. — Esses lugares parecem
praticamente paraísos...
—
Duvido que as cidades sejam tão boas quanto na propaganda... — Murmurou Dante irritado
sem olhar para a namorada. —
E tenho certeza que há lugares mais próximos para nós vendermos as jóias.
—
Bem, talvez você esteja certo... —
Suspirou Amber. — Mas
ainda acho que valeria a pena irmos até alguma dessas cidades.
—
Se você diz... —
Geier começou a estralar os dedos da mão direita. — Mas ainda preferia ir para algum lugar mais
próximo. Grande Bosque...talvez Palmeira Nova. Não sei.
—
Não sei se esses lugares têm compradores, cara... — A jovem olhou para o namorado por uma fração
de segundos. — E,
sinceramente, respirar o ar de outro lugar nos faria bem. — Ela olhou para Corvi. — Faria bem para nós três.
Dante trincou os dentes enquanto Amber sorria para
Allard. O Corvo continuava com a mesma expressão desinteressada no rosto.
Porém, ele sabia bem o que Geier e Cox sentiam por ele.
Entretanto, Corvi não se importava muito. Afinal, ele
nunca se importou muito com o que as pessoas a volta dele pensavam, diziam ou
faziam. Sua mente sempre estava focada em questões mais importantes, de acordo
com ele mesmo.
Com tantos mistérios no universo, tantos lugares a serem
explorados e tantas perguntas sem respostas, Allard preferia focar sua atenção
em questões que as outras pessoas não pensavam muito a fundo.
—
Ta... — Uriel coçou a
nuca. — Talvez seja
uma boa ideia irmos até Horizonte Sem Fim. Martha e Marcos, aquele casal que
mora no extremo norte do Distrito Norte, eram de lá. Digo, um deles era de lá.
Não lembro qual. Mas, enfim... —
Ele olhou para Amber. —
Pelo o que eu ouvi deles, lá parecia um ótimo lugar. Talvez não tão belo ou
místico quanto o nome sugere mas, sem dúvida, uma cidade próspera. — Agora ele olhou para
Dante. — Pode ser divertido...
Caso não nos envolvamos em problemas.
—
É só nós não usarmos nossos poderes. —
Geier sorriu, disfarçando a raiva. Pelo menos, ele conseguiu enganar a
namorada. — Se não
fizermos isso, acho vamos ficar bem.
—
Bem... — Amber se
posicionou entre os dois garotos, à esquerda de Dante e à direita de Uriel, e
colocou seus braços sobre o ombro direito de Geier e sobre o ombro esquerdo de
Allard, puxando-os levemente para baixo. —
Está decido então! Vamos a Horizonte Sem Fim!
Cox exibia um largo sorriso. O que enfurecia Dante.
Afinal, sua namorada nunca estava tão feliz assim longe de Corvi que, naquele
exato instante, exibia um discreto sorriso.
Geier começou a pensar em motivos para que o Corvo não os
acompanhasse na viagem. Porém, apenas motivos para que Uriel estivesse com eles
vinham em mente.
O casal estava cansado, fraco. Eles precisariam de ajuda
durante a viagem, principalmente se tivessem que lutar ou dormir, afinal,
alguém precisaria vigiá-los. Adicionar uma terceira pessoa na equipe,
principalmente alguém talentoso como Allard, seria ótimo estrategicamente. E
aquilo deixava Geier transtornado por dentro.
Não demorou muito para os três saírem do esgoto.
As águas turvas desaguavam no litoral da Costa das Algas,
uma das cidades dependentes de Saint Paul para empregar sua população.
Calmamente, eles andaram até a areia cinzenta do local,
sem saber dizer qual azul era o mais sem brilho, o do mar ou o do céu.
Na verdade, não importava. Aquela era a paisagem com a
qual eles já estavam tão bem acostumados.
—
Espero que a vista seja melhor em Horizonte Sem Fim... — Murmurou Amber.
Com isso dito, o grupo voltou a andar.
Com as paradas necessárias, eles demorariam três dias
para chegarem até a cidade a pé. Por isso, eles não tinham tempo a perder.
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