6.
O rapaz estava, agora, claramente alarmado. Ele adoraria
falar que Adriana ficou para trás, mas a verdade não era essa. O estado
patético em que o jovem se encontrava prova disso.
Joshua sentiu a aliança ainda no bolso e engoliu em seco.
Ele não conseguiria se esquecer dela. Talvez, nunca chegasse a esquecer.
Tendo tudo isso em mente, o rapaz olhou para Estmund. Sem
dizer nada, ele apenas assentiu para o ceifador, sinalizando que ele ouviria o
que o senhor tinha a dizer.
—
Bom... — Estmund
limpou a garganta. —
O que eu vou dizer agora, bem... Pode ser difícil para você acreditar. Porém,
como eu não tenho motivos para mentir... Peço que você tenha a mente aberta,
certo?
Joshua, novamente, assentiu, sem dizer uma palavra.
— Excelente... — O ceifador coçou a barba vagarosamente e,
então, olhou diretamente para os olhos do jovem. — Diga-me como você sabe que está vivo neste exato momento.
— Ah... — O rapaz tentou dizer algo. Entretanto, sua
mente parecia não conseguir vir a uma resposta. Da sua boca, apenas sons
inteligíveis saiam... — Ah... Eu...
Hm...
— A resposta é
simples. — Ele sorriu. — Você não tem como saber. Simples assim.
Joshua
se manteve em silêncio, pensando.
Estmund
se manteve quieto, apenas aguardando a pergunta.
— Então... Se eu
estivesse morto, como eu poderia estar, bem, vivendo essa vida? — Indagou o rapaz. — Como eu poderia estar aqui conversando com
você? Isso é o pós vida? O quê...?
— Muitas
perguntas, muitas perguntas... — O ceifador
murmurou. — Como previsto...
Ainda bem... — Ele sorriu. — Se você não mostrasse interesse, não teria a
mesma graça.
— Certo...
Então... Você poderia me responder algo?
— Claro que
posso. — Ele olhou, um
pouco distraído, para a lâmina da foice que parecia brilhar no ambiente cinzento.
— Quanto ao pós
vida... É algo um pouco complexo. Afinal, vocês, humanos, têm três
alternativas, apesar de nem todas serem visíveis a princípio.
— Ah... Claro...
— Joshua bufou. — Por favor, explique.
— Nós,
ceifadores, levamos as almas até o Plano Espiritual. Lá, vocês recebem a opção
de seguirem um anjo ou um demônio. Entretanto, é possível recusar a ajuda de
ambos. Nesse caso, uma terceira opção é apresentada para o falecido.
— E qual é a
pegadinha? Aliás... Quais são as pegadinhas? Tenho certeza que nada é muito
claro nesse momento...
— Pelo
contrário. — Estmund soou
melancólico. — Esse é o
momento de maior clareza da vida de uma pessoa. É o momento em que tudo que ela
precisa saber é revelado.
— Como o quê?
— Como o fato de
muitas delas já estarem mortas por anos e não saberem...
Joshua
permaneceu em silêncio. Ele precisaria de detalhes para acreditar no que o
ceifador estava dizendo. Felizmente, Estmund percebeu isso rapidamente.
— Pense assim,
garoto... — Ele começou a
dizer. — A sua alma é
um corpo completo e funcional. Assim sendo, ela tem uma mente que, na verdade,
é exatamente igual a do seu corpo físico. É por isso mesmo que você não a
percebe. Ela funcionaria mais como uma reserva que você nunca precisaria usar
até seu corpo físico perecer e você for para o plano espiritual. Entendeu?
— Sim...
— Ótimo. — O ceifador respirou fundo. — Então... Já como sua alma é capaz de pensar,
ela também é capaz se sonhar... E, assim, ela é capaz de te mostrar um mundo
falso que pode parecer extremamente real...
— Ah... — O jovem engoliu em seco. Ele parecia ter
entendido o que o ceifador queria dizer. Ele também parecia preocupado com a
conclusão. — Então... A
nossa mente, a mente dos humanos, seria capaz de nos enganar para não sabermos
que estamos mortos...?
— Precisamente.
— Mas... Por
quê?
— Para evitar
finais decepcionantes.
— Como assim?
— Imagine que
sua vida é um filme e você é o protagonista. Você tem seus objetivos. Você
supera obstáculos para cumprir seus objetivos. A vida parece que tenta te
derrubar. Você cai, sofre, mas se levanta no final e segue em frente. No fim,
você é feliz. Ou não. — Ele riu baixo.
— Mas o que
realmente importa é que você fez as suas escolhas e viveu como quis, entende?
— Certo...
— Então o quão
decepcionante seria esse filme se, abruptamente, o protagonista morresse num
acidente qualquer, sem conseguir realizar seus objetivos?
— Ah... Entendi.
— Joshua ficou
em silêncio por um instante. — Então...
Somente as pessoas que tiveram um final infeliz e inesperado que passam a viver
essas vidas falsas?
— Sim... Para
nós, ceifadores, é quase como se elas estivessem em um coma. As almas não se
movem nem reagem a estímulos. Mas elas ainda, bem... Vivem. E é exatamente em
suas mentes que suas vidas se passam agora. Mas isso acaba podendo gerar um
grande problema.
— Que seria?
— O momento da
revelação...
— Ah... — O jovem pensou por um instante e suspirou. — Imagino que nem todos saibam lidar com
isso...
— Exatamente.
Saber que os momentos mais felizes de sua vida foram mentiras... Pode ter
efeitos terríveis... — A expressão no
rosto de Estmund estava ainda mais séria agora. — Muitos, tomados pela raiva, escolhem seguir o demônio que promete
vingança, abandonando qualquer tipo de paz ou salvação.
— O que
exatamente acontece com as almas que seguem os demônios?
— Existem muitas
possibilidades. Mas sei que você já viu de perto uma dessas possibilidades.
Joshua
não precisava parar para pensar naquilo. A risada de seu perseguidor soou em
sua cabeça, ecoando e fazendo seu corpo tremer.
— E isso me leva
ao nosso próximo tópico... — Estmund
continuou a falar. — O outro mundo.
O lugar onde você estava...
— O que você
pode me dizer sobre ele?
— Eu não conheço
muito sobre o lugar, então... Infelizmente, não posso te ajudar tanto quanto eu
gostaria.
— Pensei que
você sabia de tudo nesse mundo...
— Nesse em que
estamos? É bem provável. Num mundo que eu nunca coloquei os meus pés e que é
tão velho quanto esse em que estamos? Não... Não conheço tanto assim dele...
— Você nunca foi
lá? — Joshua soou
ainda mais intrigado. — Por quê?
— Porque aquela
é uma terra de amaldiçoados, garoto. Amaldiçoados pela tristeza, ódio e
sofrimento. E com isso eu me refiro aos vivos e aos mortos.
— Mas algo o
proíbe de entrar lá?
— Não. Mas nada
me motiva a ir lá. Anjos abandonaram os vivos que entram lá. As assombrações
fazem todo o trabalho sujo de matar e roubar almas, então os demônios não tem
motivo de ir até lá pessoalmente. É uma terra de ninguém, entendeu?
— Ah... Então eu
fui parar naquele lugar...?
— Por causa de
como você está depois de sua amada ter te deixado. — Estmund disse rispidamente. — Somente por isso. E, assim, antes que você
perceba, você estará perdido naquele pesadelo de novo.
Joshua
se sentiu como se tivesse levado um soco no estômago. Ele inclinou o corpo para
frente, apoiando os cotovelos nos joelhos e levando as mãos ao rosto. O rapaz
respirou fundo, soltando o ar, em seguida, lentamente pela boca.
— Garoto... — O ceifador parecia preocupado. — Você...
— Se eu parar de
me sentir assim...! — Joshua começou
a dizer exasperado, porém, hesitou por um instante para respirar profundamente.
— Se eu parar de
me sentir assim... — Ele repetiu,
agora mais calmo. — Eu nunca mais
volto para aquele lugar. É isso?
— Sim... Mas
você não é capaz.
— E como você é
capaz de saber isso?
— Eu já estou
observando vocês, humanos, há um bom tempo... Sei que vocês não conseguem lutar
contra seus sentimentos... Principalmente quando o sentimento em questão é amor
ou ódio.
— O que você
quer que eu faça então!? — Ele olhou
Estmund nos olhos. — Tire a minha
própria vida!?
— É uma opção.
Porém, é uma saída fácil demais, não acha?
— O que você
sugere que eu faça então!?
— Volte a ser
feliz. Ao lado dela.
— Claro! — Ele riu com escárnio. — Fácil fazer isso...
— Você não sabe
os motivos que ela tinha para fazer o que fez.
— E você sabe?
— Sim. Tem a ver
com a terceira opção que eu falei antes.
Joshua
se manteve quieto, pensando no que o ceifador havia dito antes. Seguir o anjo
ou o demônio eram apenas duas alternativas. A terceira opção viria caso as
outras fossem negadas.
— Qual seria a
terceira alternativa? — O rapaz
perguntou.
— Fugir do anjo
e do demônio até você achar um ser que não é nem bom, nem mau... Que não seja
preto, nem branco... Que não seja da luz, nem das trevas.
— Que seria o
que exatamente?
— Bem... Há
vários nomes. O meu favorito é Djinn.
— Djinn? — O jovem indagou. — Como gênios?
Que realizam desejos?
— Sim. Porém,
eles apenas realizam um desejo.
— Que seria...?
— Viver mais uma
vez. Conseguir atingir um novo objetivo. Não ser enganado pela própria alma
dessa vez.
— E o que o
Djinn ganha com isso?
— A alma da
pessoa que ele está ajudando.
— Então... O que
aconteceria com essa pessoa no pós vida?
— Nada.
— Como assim nada?
— Absolutamente
nada. É o fim da existência do indivíduo. A alma dela foi devorada pelo Djinn.
Ela simplesmente deixa de existir depois que seu corpo físico perece...
— Então... — O rapaz engoliu em seco. — Adriana vendeu a alma dela para o Djinn?
— Sim...
— E... O desejo
dela? O que foi?
— Apaixonar-se.
Casar-se. Ser feliz como ela não pôde da primeira vez...
— Ah...
Joshua
voltou seu olhar para o chão, melancólico.
— Eu não fui bom
o suficiente para realizar o último desejo dela... — O jovem falou com a voz chorosa. — É isso?
— Na verdade, é
exatamente o contrário. — O ceifador
disse com simplicidade.
Joshua
levantou a cabeça e olhou para Estmund.
Os
olhos do rapaz estavam avermelhados. Uma lágrima escorria de seu rosto.
Estmund
tinha a expressão serena, despreocupado. Ele estava dizendo a verdade com
certeza.
— Como assim? — Indagou Joshua.
— O desejo
concedido pelo Djinn tem um detalhe importante que eu não havia lhe contado. — O ceifador começou a explicar. — Depois que o desejo é realizado, a pessoa
morre.
Joshua
manteve-se em silêncio.
— Ao meu ver,
não é um acordo ruim. — Estmund
continuou falando. — Morrer com um
sorriso no rosto não é algo que todos conseguem. Entretanto... Tem aqueles que
temem a morte acima de tudo. — Ele olhou
diretamente nos olhos do jovem. — Sua amada
sabia que, caso continuasse com você, ela seria feliz, mas, com o tempo, ela
morreria por causa desse amor. Assim, ela decidiu que seria melhor viver na tristeza
do que morrer feliz. Péssima escolha, na minha opinião.
Joshua
permaneceu em silêncio, tentando assimilar tudo o que havia ouvido.
O
ceifador foi paciente. Ele esperou o tempo necessário para que o rapaz voltasse
a fazer contato visual com ele.
— Então... — Estmund falou calmamente. — O que você fará?
— Eu... — Joshua respirou fundo. — Eu não quero desrespeitar as decisões
dela... Mas... Eu não posso viver feliz... Não sabendo que ela está infeliz...
— E você vai
deixar que ela morra? Mesmo contra a vontade dela?
— Eu... Vou
fazer com que ela enxergue a situação por completo... Vou fazer com que ela
veja que não faz sentido viver na tristeza... Vou fazer com que ela seja feliz
até o fim da vida dela.
— Belas
palavras. — O ceifador
sorriu.
— Ah...
Obrigado. — Joshua sorriu
de volta, genuinamente feliz.
— Entretanto...
Ainda há um problema.
— O que seria?
— Encontrar
Adriana.
— Não creio que
isso seja um problema. Eu só preciso tomar um banho, me arrumar e passar na
casa dela. Talvez eu compre flores no caminho...
— Não é sobre
isso que eu estou falando, Romeu. — Ele zombou. — Há algo sério que pode acontecer com ela, se
é que já não aconteceu...
— Do que você
está falando?
— Do jeito que
ela está vivendo agora. Imersa na tristeza, sofrendo com a própria escolha...
Não vai demorar muito para que ela termine...
Estmund
não precisou terminar aquela frase.
Joshua,
o mais rápido que pôde, levantou-se e saiu porta afora, rumo à casa de sua
amada.
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