Capítulo 8
O vento soprava mais forte do que antes. O sol, entretanto,
parecia um pouco menos intenso. O cheiro da floresta e o canto dos pássaros
mantinham o ambiente agradável de antes. Nem parecia que o trio estava em uma
batalha alguns instantes atrás.
—
Vocês poderiam começar a falar um pouco de vocês... — Sugeriu o mago enquanto andava acompanhado
pelo trio. — Nomes
seriam bons... O que fazem... Principalmente o que fazem por essas bandas...
O trio de companheiros se entreolhou. Algo na fala do mago
não parecia normal. Era quase como se as palavras proferidas por aquele homem
fossem mágicas de alguma maneira.
Reconfortante e de certo modo sedutora, a voz daquele homem parecia
tentar enfeitiçá-los, puxando-os para algum tipo de armadilha.
—
Chamo-me Elise. —
Disse a sacerdotisa após muito hesitar. —
Elise Seraph. Sou uma Arcana... Ou melhor, costumava ser...
—
Foi expulsa da Igreja? —
Perguntou interessado.
Ela assentiu.
—
E vocês estão indo até o templo arcano agora ou...? — O mago perguntou, ainda mais interessado do
que antes.
—
Sim. — Elise bufou. — Tenho que resgatar alguém
importante para mim...
—
Algum amigo...? Não, não... —
O homem balançou a cabeça para os lados. —
Mais importante. Não chega a ser família. Não tem laços de sangue... Então...
Um amante? Ou melhor... Uma amante,
certo?
Elise se sentiu um pouco constrangida, desviando seu olhar
do mago. Seus passos se tornaram momentaneamente lentos enquanto o homem
parecia a ler como um livro aberto.
—
Desculpe-me deixá-la desconfortável, minha cara. —
Ele disse num tom amigável. —
Tudo o que eu disse foi baseado em minha intuição. Não posso ler seus
pensamentos nem nada do gênero.
—
Claro... — Elise
sorriu sem saber o porquê. —
Sem problemas.
— Ótimo...
— Agora, de volta à
estrada de terra, ele lançou um olhar inquisidor para os outros dois do grupo. — E vocês? Qual a história
de vocês, cavalheiros?
—
Viktor Carmesi é o meu nome. —
Disse o Sandrealmer um pouco ríspido. —
E estou ajudando Elise. Tenho os meus motivos.
—
E algo me diz que são a mesma pessoa... —
Seu olhar foi de Viktor para Elise. —
Não é?
—
É... — Ela suspirou
após concordar.
— Sua
irmã é a amada dela? —
O mago perguntou, erguendo uma sobrancelha para Viktor. — Estou certo?
—
Está... — O
Sandrealmer cerrou os punhos. —
Mas... Eu não posso realmente culpar Elise.
—
Não pode? — A
sacerdotisa perguntou surpresa.
— Não... — Ele bufou. — Lily fugiu de casa...
Fugiu dos nossos pais.
Elise parou de andar e olhou para o Sandrealmer. Ele parou
também, e o mago e Dreadraven os acompanharam.
—
Ela não era muito feliz, sabe? —
Viktor admitiu. —
Nossos pais queriam que ela fosse apenas um instrumento, uma esposa para algum
homem de outro clã, uma maneira de se formar uma aliança. Nada mais que isso. — Ele cruzou os braços. — Enquanto isso, eu
aprendia a liderar o clã, aprendia a lutar, a barganhar, a correr pelas ruas da
cidade sem ser pego pelas tropas de Nazir, o Justo... Eu vivia uma aventura. E
ela só queria estar ao meu lado, fazendo o que eu fazia... Mas nunca teve a
chance.
—
Eu... — A sacerdotisa
suspirou. — Eu não
sabia dessa história. Não completamente, pelo menos. Lily evitava falar da
família enquanto estávamos juntas. Ela falava que o país dela era
maravilhoso... Mas também falou que não conseguia aproveitar muito bem essas
maravilhas... Eu só não havia me tocado sobre o motivo...
—
É... — O mago coçou a
barba. — Famílias
podem ser problemáticas. Tenho uma relação boa com meu irmão, mas, pra ser
sincero, é só isso mesmo... —
Ele olhou para Dreadraven. —
E você? Fale-me sobre você.
—
Hm... — Dreadraven
parecia resistir ao encantamento do mago. —
Por que você não fala o seu primeiro? Tenho certeza que meus amigos estão
curiosos para saber também.
—
Ah... — Ele olhou
para Elise e Viktor e, então, voltou a olhar para o doutor. — Claro... — O homem fez uma
reverência, curvando-se diante de Dreadraven. —
Gustav Cross é como me chamo.
—
Cross... — Ele
repetiu, inclinando a cabeça para a esquerda, fazendo com que sua máscara se
tornasse ainda mais inquietante. —
Nome bastante comum na Capital, não?
—
Sim, minha família mora em Arc Lazarus há algumas gerações. É um bom mercado lá,
sabe? Muitas pessoas com muito dinheiro para gastar. É só aparecer com algo
diferente, ou exótico como eles
gostam de chamar, e pronto. Dinheiro fácil. —
Ele sorriu. — Vamos
voltar a andar, ok? Vocês têm um resgate para fazer afinal...
—
Claro...
O mago, na frente, parecia guiar o trio que o vinha atrás
dele. Dreadraven parecia impaciente. O jeito quase sem vida de Elise e Viktor
estava o deixando irritado. Até onde a influência daquele homem estranho
afetaria o comportamento deles?
—
Então... — O mago retomou
a falar. — Pretende
me falar o seu nome?
—
Dreadraven. — Ele
respondeu simplesmente.
—
Nome... Curioso. Não acho que eu já tenha ouvido esse nome antes. Ah! — Exclamou e, então, sorriu
para seu interlocutor. —
Talvez por que esse não seja o seu nome verdadeiro?
Nesse momento, Elise e Viktor olharam diretamente para
Dreadraven. Entretanto, como antes, nada falaram.
—
É só um apelido antigo. —
O doutor respondeu um pouco irritado. —
Um apelido que eu me acostumei.
—
Hm... — Gustav
parecia pensativo. —
Mas, mesmo sendo um apelido, não parecia sombrio demais para você? Digo,
combina com sua aparência, mas não com sua personalidade. Será que esse apelido
reflete sua antiga personalidade, seu passado sombrio... Seus arrependimentos?
Gustav, mais uma vez certo, sorria para a pessoa com quem
conversava. Porém, Dreadraven não estava sob o encantamento do mago. Sua
paciência havia se esgotado.
—
Já chega. — O doutor
disse firmemente.
—
Caso contrário...? —
Gustav riu baixo. —
Vai me atacar...?
Com essas últimas palavras, Viktor e Elise pareceram entrar
em um estado de alerta. Era como se, a qualquer instante, os dois fossem atacar
Dreadraven. Com uma simples palavra vinda da boca do mago, aquilo poderia se
tornar realidade.
Entretanto, a palavra que comandou a dupla não veio de
Gustav.
—
Basta! — Dreadraven
disse firmemente como se sua voz tivesse que ser ouvida por todo um vilarejo.
Alguns pássaros pareciam ter se assustado e voado para longe. Os olhos de sua
máscara brilhavam intensamente.
Gustav e Dreadraven trocaram olhares. O mago, agora, tinha
certeza de que não poderia manipular aquele ser diante dele. Diante de um
oponente digno, ele apenas sorriu para o mascarado.
Saídos de um transe, Elise e Viktor tinham expressões em
seus rostos que somavam confusão e um pouco de dor. O encantamento de Gustav
havia afetado suas mentes de um jeito extremamente intrusivo. Algum tipo de sequela
eles acabariam tendo, com certeza.
—
O que aconteceu...? —
Resmungou o Sandrealmer.
—
Foi algo no ar... —
Afirmou Elise. —
Eu... Eu acho, pelo menos...
—
Definitivamente. —
Gustav sorriu.
Em seguida, o mago levou uma das mãos até a mala em suas
costas. Após um instante remexendo sua mão em seu interior, ele retirou uma
bolsa de couro.
—
O que é isso? —
Indagou Dreadraven.
—
Descubram! — Gustav
arremessou a bolsa.
O Sandrealmer a pegou. Rapidamente, abriu a bolsa e pareceu
surpreso.
—
Comida... — Ele
murmurou. Seu estômago roncou em seguida. —
E parece boa.
De dentro da bolsa de couro, ele
começou a retirar pedaços de carne de boi, coxas de frango, pedaços de torta de
maçã, uvas, morangos e cerejas. Um atrás do outro, eles puxava as comidas e as
apoiava no chão, parecendo não haver fim. O Sandrealmer salivava.
Era como se sua fome houvesse
passado sem motivo e, agora, retornado ainda mais intensa.
—
Isso faz parte da sua magia também? —
Perguntou Viktor animado.
—
Sim. — Sorriu Gustav.
— Posso guardar
praticamente qualquer objeto dentro de um recipiente pequeno, não importando o
tamanho ou a quantidade. É bem útil e se aplica a várias situações, não acham?
—
E está simplesmente dando isso para nós? —
Perguntou Dreadraven claramente desconfiado.
—
Sim. — O mago
respondeu. —
Infelizmente, o feitiço não vai durar por muito tempo, então, vocês não vão
poder reutilizar essa bolsa. A comida também acabará eventualmente. Por ora,
aproveitem esse modesto presente.
—
Parece um pouco bom demais para ser verdade... —
Disse Elise um pouco cética.
—
E se eu disser que tem mais? —
Gustav ergueu uma sobrancelha e, então, olhou para Viktor. — Essa é em especial para
você, forasteiro.
Mais uma vez, o mago levou sua mão
à mala em suas costas. Após vasculhar um pouco, apanhou uma outra bolsa de
couro, um pouco menor que a ultima, e a arremessou para o Sandrealmer que,
prontamente, pegou-a.
—
Algo me diz que não é mais comida. —
Disse Viktor.
—
E não é. — Gustav
concordou. — Veja.
O Sandrealmer, então, abriu a
bolsa e ficou boquiaberto. Ele parecia ainda mais surpreso do que da primeira
vez.
—
O que tem aí dentro, Viktor? —
Elise perguntou curiosa.
Sem dizer uma palavra, o
Sandrealmer levou uma mão para dentro da bolsa e, de lá, retirou um punhado de
cristais. Vermelhos, azuis, verdes. Tinham pedras de todas as cores ali dentro.
Porém, diferentemente da última bolsa, aquela parecia ter um fundo.
—
Cristais do Poder... — Murmurou
Viktor. — Mais do que
eu já vi a minha vida inteira...
Aqueles cristais eram o tesouro de
Woodrealm, afinal, era o país era o único de Windland que continha as pedras em
seu subsolo. Sua origem era, porém, um mistério. Descobertas eras atrás,
aquelas joias armazenavam um poder mágico gigantesco, contendo o poder de
diversos elementos. Fogo, água, gelo, eletricidade eram alguns dos mais
famosos. Entretanto, não era só pelos seus poderes que eram comercializadas.
Sua beleza também era estonteante, tornando-se itens essenciais para nobres
Snowrealmers e, principalmente, Sandrealmers.
—
O presente é por vocês terem me salvo antes, é claro. —
Gustav sorriu. — E é
um presente para todos vocês, obviamente. Porém, sei que Viktor tirará o maior
proveito delas, não é mesmo?
Viktor olhava embasbacado para as
joias. Ele parecia tentar calcular quanto dinheiro poderia ganhar vendendo-as.
—
Vamos. — Disse o
doutor. — Já perdemos
tempo demais parados aqui.
—
Hm... — Viktor
parecia sair lentamente do novo transe. —
Claro... Vamos nos despedir de Gustav, não é...?
—
Ele já se foi. — Elise
disse secamente.
O Sandrealmer se levantou do chão
rapidamente, olhando confuso para os lados, com uma bolsa de couro em cada mão.
—
Para onde ele foi...? —
Murmurou.
—
Não sei. — A
sacerdotisa bufou. —
Só sei que sumiu... Depois de fazer alguma coisa com a gente, isso é.
—
Por que você diz isso?
—
Ele não me parecia confiável. Ainda mais com esses presentes... Parecia falso
demais... Escondendo alguma coisa...
—
Você precisa confiar mais nas pessoas, Elise... Aceitá-las de braços abertos...
—
Olhe seus bolsos. —
Aconselhou Dreadraven.
—
Sério...? — Viktor
parecia querer rir. A expressão séria nos rostos do doutor e da sacerdotisa o
fez seguir o conselho dado. —
Ok...
Então, em um instante, o rosto de
Viktor se transformou, indo da calma para a fúria ao perceber que não havia nem
uma moeda consigo.
—
Desgraçado... — O
Sandrealmer trincou os dentes. —
Ladrão filho da...
—
Talvez você precise aprender a não ser tão ingênuo. — O doutor disse calmamente. — Agora... Vamos. Vou
contar o que aconteceu exatamente.
***
Já era quase meio dia. O sol
parecia ainda mais forte do que antes. As sombras das árvores não eram mais o
suficiente para refrescar o trio que suava agora, transpirando a cada passo, a
cada inspiração. Até mesmo os animais da região pareciam mais calmos, ou
cansados, com aquele tempo. A única exceção era, obviamente, os insetos, mais
inquietos do nunca, voando, zumbindo e circulando todos os outros seres vivos.
Se não fosse pela pausa de horas
atrás com seus cantis da água e a comida dada por Gustav, todos estariam com um
humor ainda pior.
—
Se eu não gastar muitos cristais, talvez eu consiga vendê-los em Sandrealm e,
quem sabe, recuperar o meu dinheiro. —
Disse Viktor, falando sozinho em voz alta para os outros ouvirem.
—
Só agradeça por estar vivo... E de barriga cheia... — Advertiu Elise. — Podíamos ter morrido... Ou podíamos ter
virado marionetes daquele mago... Se não estivéssemos com Dreadraven, não
poderíamos estar indo resgatar Lily agora...
—
Verdade... — O
Sandrealmer bufou. Então, ele olhou para Dreadraven. — Doutor... Você não ouviu nada estranho, não
é? Nem de mim, nem de Elise...?
—
Nada vergonhoso. —
Ele respondeu solenemente.
—
Ótimo... — Viktor
esboçou um sorriso. —
Aquele rato não deve ter entrado tão fundo assim nas nossas mentes... Ou você
não os deixou. De qualquer maneira...
Então, ele parou de falar.
O trio voltou sua atenção para os
passos. Eles pareciam cada vez mais perto, vindos por entre os arbustos à
esquerda de onde os companheiros estavam.
—
Quatro... — Viktor
balançou a cabeça para os lados. —
Não... Cinco pessoas. Andando com calma. Passos leves... Ninguém deve estar
usando armadura.
—
Vão ser um problema mesmo assim... —
Murmurou Dreadraven.
—
Pressentimento?
—
Consigo sentir o poder mágico deles... —
O doutor se voltou para Elise. —
Quais as chances de você ter algum aliado entre eles...?
—
Pequenas... — Ela
respondeu desanimada.
Então, eles apareceram.
Suas roupas eram túnicas brancas.
Os bordados dourados eram os mesmos da de Elise. Todos os seus acessórios, como
braceletes e brincos, eram da cor do ouro.
De mãos vazias, os sacerdotes e
sacerdotisas pareciam cumprimentar os desconhecidos, isso é, até perceberam a
presença da mulher no grupo.
—
Elise... — Um homem com
uma longa loira murmurou surpreso e, então, sorriu. — Que surpresa vê-la aqui
—
Eu disse que voltaria. —
Ela retrucou.
—
É verdade... — Ele
alisou a barba. — E o
Ancião disse que você morreria se fizesse isso...
—
Ah... — A sacerdotisa
sorriu. — E você acha
que eu vou ficar parada, esperando ser executada? — Das suas mãos, correntes elétricas de luz
branca começaram a surgir, causando estalos pelo ar. — Pense de novo.
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