Capítulo 4
Montanha de Gellafen, sudoeste de Snowrealm, continente de
Windland, Tertia de Librum de 1042.
Para muitos, era um dia feliz. A neve parecia ter sido
deixada para trás no último dia do mês passado. O sol vinha finalmente, apesar
de tímido, para as terras gélidas. As águas de rios e lagoas estavam
agradáveis. As estradas, bem como várias cidades comerciais, percebiam
nitidamente o aumento da circulação de pessoas de todos os cantos do país.
Entretanto, num canto remoto do país, a movimentação tinha
outro motivo.
Na base de uma montanha, uma tropa de não mais do que vinte
soldados aguardava suas ordens. Todos usavam o mesmo tipo de armadura de couro bege,
resistentes ao frio, reforçada com placas de aço como brasão dos Icebrands: uma
espada azul como o céu, normalmente marcada no ombro direito.
À frente de todos estava Sebastian, seu capitão. Sua
armadura de couro era completamente reforçada por uma obra prima de aço, uma
defesa praticamente perfeita contra qualquer arma que os Drakes pudessem manejar.
Na peitoral de metal polido, o brasão dos Icebrands era ainda mais intimidador.
Com o capacete em mãos e a grande espada nas costas,
Sebastian olhava para a escuridão da caverna a sua frente. Seus olhos azuis
brilhavam determinados. Seu sorriso branco era confiante. Com essa expressão
inspiradora, ele olhou para os homens e mulheres sob seu comando.
—
Tudo pronto, capitão? —
Perguntou uma guerreira que segurava um machado com uma mão e, com a outra, um
escudo. — Algum
pressentimento?
Sebastian era famoso por isso. Nada como premonições, mas o
capitão sentia algo no ar, como se enxergasse algo que ninguém mais pudesse. De
acordo com ele, a magia podia ser sentida ao seu redor e que ela poderia ser
uma guia sem igual. Não era muito diferente de saber canalizar o poder para
conjurar uma bola de fogo ou soltar raios das mãos. Entretanto, tais talentos
eram incomuns dentre os Snowrealmers.
—
Hm... — Sebastian
respirou fundo. — Não
sei exatamente o que esperar dessa vez... Talvez não haja nada, afinal...
—
Mas se fosse algo realmente ruim... —
Um guerreiro armado com uma maça e um escudo começou a dizer. — Você poderia dizer,
certo? Nenhum tipo de fantasma nos espera lá em baixo, não é?
—
Se algo do tipo fosse aparecer, eu saberia. —
O Capitão disse com firmeza. —
Talvez algumas armadilhas nos esperem, como é de se imaginar, mas duvido que
qualquer coisa volte do Mundo dos Mortos para nos atacar... — Ele sorriu. — E se vieram... Nos
atacamos antes, como Snowrealmers, não é mesmo!?
Os soldados urraram num coro, brandindo suas armas e as
agitando no ar no mesmo ritmo.
—
É isso que eu gosto de ouvir! —
Sebastian bradou. Em seguida, ele sacou sua espada e a apontou para uma das
guerreiras no meio da tropa. —
Senhorita Silverblade! Gostaria de ter honra de nos liderar nessa expedição?
—
Sim, senhor! — Ela
respondeu firmemente.
—
Ótimo... — Ele
sorriu. Silverblade era, sem dúvidas a mais experiente dentre aqueles soldados.
Sebastian sabia que poderia contar com ela. —
Então, senhorita... Lidere-nos!
A guerreira caminhou até a entrada da caverna, alguns passos
além de seu capitão. Então, ela ergueu sua mão direita, erguendo sua espada e
exibindo o brasão dos Icebrands para todos verem.
— Em
frente! — Silverblade
bradou. — A
Demonsbane será dos Icebrands!
Com urros, os soldados correram até ela, adentrando na
caverna com passos pesados e uma determinação quase inabalável.
Sebastian sorriu ao ver seus soldados marcharem em direção
ao desconhecido. A coragem daqueles homens e mulheres bem treinados era digna
de verdadeiros guerreiros. Um capitão não poderia pedir por subordinados
melhores.
Entretanto, eles tinham que agir rápido. A tropa deveria
conseguir a espada lendária, se ela realmente estava lá, símbolo de poder nas
mãos do maior rei da última era em Windlands.
A Demonsbane seria não só um instrumento de destruição nas
mãos de Alexander, The Icebrand, seria também uma vantagem moral sobre os Drakes.
Se eles temessem o poder da lenda da arma, a guerra estaria mais próxima do seu
fim.
—
Se não fosse pelos seus discursos motivadores, tenho certeza que eles não
precisariam de você. —
Disse uma voz tão familiar para Sebastian.
O capitão
se voltou para trás, na direção do único soldado que não correu para dentro da
caverna. Nas costas do jovem estava uma espada idêntica a dele. Feita de aço
brilhante como prata, com tiras de couro no cabo e uma lâmina quase tão afiada
quanto a de uma navalha, a arma era uma obra de arte, principalmente em
contraste com sua armadura cheia de arranhões a amassados.
— Não duvido
disso. — Sebastian
respondeu com um sorriso amigável no rosto e, então, cravou sua espada no chão
e apoiou suas mãos sobre o cabo. — Assim como eu
também não duvido que essa velharia que você usa não serve nem pra te proteger
de uma flecha.
— A Claudia
disse que a armadura parecia boa.
— Ela te mima
demais.
— Ela só tenta
compensar o marido militar estressado. Ou talvez ela só esteja compensando pela
filha que só arruma confusão...
— Sério? — Ele ergueu uma sobrancelha. — A Ivy anda se metendo em mais confusão do
que antes?
— É... — O jovem riu baixo. — Uns beberrões começaram a dar em cima dela
lá no bar do Redale.
— Ah é? — Sebastian suspirou. — Eram quantos ao todo?
— Cinco. Três no
começo, dois no final, sendo que os primeiros ela derrotou só usando as mãos...
E um dos banquinhos de madeira.
— E o problema
foi ela ter causado um tumulto no bar? Só isso?
— Bem... Todos
os cinco eram Icebrands...
—
Impressionante...
— Só que nem
todos eram soldados, sabe?
Houve
um momento de silêncio. Sebastian respirou fundo e exalou com calma.
— Não me diga
que ela bateu num nobre... — Ele murmurou.
— Timothy
Icebrand, sobrinho do grande Alexander, The Icebrand... — O jovem riu.
— Pelo amor de
Ghikast...
— O que ela
devia fazer, hein? O tal nobre apareceu no bar enquanto ela quebrava o
banquinho na cabeça do último bêbado que deu em cima dela. Ai ele chamou a Ivy
de selvagem e mandou o guarda costas dele, um grandão com um martelo de guerra,
tirar dali. Ai ela sacou o machado e derrotou o cara em não muito tempo. Mas é
claro que eles destruíram um pouco do bar no meio da confusão.
— Só isso? — O capitão perguntou após um momento de
hesitação.
— Bem... Aí ela
resolveu dar um tabefe na cara no nobre e o chamou de frangote. Mas ela não
matou ninguém, o que é bom, não é?
— É... — Sebastian bufou. — Mas ela não foi parar na cadeia?
— Sim, mas ela
saiu rápido.
— Como?
— Pagaram a
fiança dela.
— E quem tinha
dinheiro pra isso...?
— Veronica
Icebrand, irmã do nobre magricela, que também estava na cidade. Aparentemente,
ela realmente gostou de alguém dar uma lição no irmão mimado dela e, também, de
alguém bater em três soldados sem noção ao mesmo tempo.
—
Inacreditável...
— E ela ainda
pagou pelo prejuízo no bar. Só que não acho que a Ivy seja mais bem vinda no
lugar... E o mesmo vale pro resto da família dela, sabe?
— Sei... — O Capitão respirou ainda mais fundo e, após expirar,
sorriu. — Você é
realmente o menor dos meus problemas, não é, Damian?
O
rapaz, então, levantou a viseira de seu elmo e sorriu. Sua face tinha uma
expressão alegre, praticamente pueril quando comparada com a de alguns anos
mais tarde. Seus olhos dourados pareciam brilhar para aquele que o considerava
como um filho.
— Eu já tinha te
dito isso umas cem vezes... — Damian deu um
tapinha no ombro de Sebastian. — Agora vamos...
O resto da tropa está nos esperando.
***
Damian
havia perdido tudo quando pequeno.
A
cidade de Brassgrounds havia sido devastada em Quinta de Geminium do ano de
1001. O pai de Damian morreu defendendo sua terra natal do ataque dos Drakes e,
sua mãe, morreu, assassinada brutalmente, após esconder o filho no porão da
casa.
O
reforço dos Icebrands veio tarde demais. Muralhas já haviam vindo abaixo. Casas
já haviam sido saqueadas e queimadas. Guerreiros haviam caído em batalha.
Camponeses foram mortos sem piedade. Das mulheres, haviam as que foram
capturadas como animais selvagens e as que foram mortas friamente. Apenas
alguns poucos moradores de Brassgrounds haviam sobrevivido.
Damian
havia saído de seu esconderijo, assustado e com fome após horas protegido,
longe do massacre que ocorria poucos metros acima de sua cabeça.
No
meio das ruínas queimadas de sua casa, o garoto caiu de joelhos, confuso, sem entender
o que havia acontecido, olhando para o céu coberto de fumaça negra, respirando
o ar preenchido pelo aroma fétido das vítimas da invasão.
Porém,
uma mão veio para ajudar Damian a se levantar.
Desde
aquele dia, anos atrás, Sebastian estava ao lado do rapaz. Ele o criou como um filho
e como um guerreiro. Para vingar seus pais e sua terra natal, Damian atingiria
as expectativas de seu capitão e daria seu sangue para levar os Drakes ao seu
fim.
***
O
caminho era praticamente uma reta. A caverna de paredes avermelhadas não se
parecia com um labirinto e, muito menos, pareciam ter armadilhas preparadas
pelos cantos. O lugar, com exceção das pegadas dos soldados que haviam passado
há pouco, parecia completamente intocado seres humanos desde a último era. O ar
úmido cheirava a mofo. Os únicos seres vivos do lugar pareciam ser alguns
musgos, cogumelos e pequenos insetos. Os únicos sons pareciam ser os de algumas
goteiras vindas de pontos aleatórios pelo teto.
— Você está
sentindo alguma coisa? — Indagou
Damian, ainda avançando pela caverna.
— Sim... — Sebastian respondeu, andando no mesmo ritmo
do jovem. — Mas não sei
dizer exatamente o que é... Porém...
— Porém o quê?
— Porém... Eu
não consigo sentir a presença dos outros.
— Como assim?
Eles não estão mais aqui?
— É como se
fosse isso...
— Então tem
alguma coisa aqui, não é? Alguma coisa te confundindo...?
— Talvez...
— Continue em frente. — Uma voz sussurrou. — Eles
estão aqui... Ache-os...
Damian
parou. Sebastian também. Um olhou pro outro, inquietos.
— Ouviu isso
também, garoto? — O capitão
perguntou.
O
rapaz assentiu.
— Ótimo. —Sebastian esboçou um sorriso. — Não estou ficando louco... Ou, pelo menos,
não estou ficando louco sozinho.
— É. — Damian riu contidamente, ficando sério
rapidamente. — Mas, então...
O que exatamente foi isso? Essa voz...
— Não pare. — Outra voz sussurrou. — Siga o seu destino.
— Não fuja. — Disse outra, no mesmo tom. — Não tema.
— Não há o que temer. Não há o que temer se
você for forte.
— Siga. Lute. Viva. Conquiste.
Todas
as vozes começaram a falar, sobrepondo-se no lugar das outras. A cada segundo,
uma nova parecia surgir. O caos apenas piorava.
Damian
levou as mãos à cabeça que parecia que estava prestes a explodir. Sua
respiração estava acelerada, pesada. Seu corpo tremia, fraco, suando frio, parecendo
capaz de ceder a qualquer momento.
O
rapaz trombou para o lado, apoiando-se contra uma parede enquanto usava toda a
sua disposição para recuperar o ar e o equilíbrio.
— Droga... — Damian murmurou irritado, ainda respirando pesadamente.
— Sebastian que
droga...
O
rapaz olhou para frente. Seu capitão não estava mais lá.
Olhando
a sua volta, Damian percebeu algo além da ausência de Sebastian: ele não estava
mais no mesmo lugar.
As
paredes de rocha vermelha foram substituídas por tijolos cinzentos. A atmosfera
úmida se transformou em uma névoa dourada que brilhava com luzes vermelhas,
verdes e azuis como pó de pedras preciosas.
As
vozes, ao menos, haviam cessado. Por alguns instantes, o silêncio foi absoluto.
Então,
do corredor a frente de Damian, vieram passos e, então, um grunhido agudo.
O
rapaz sacou a espada quase instintivamente. O tempo pareceu desacelerar
enquanto os passos soavam cada vez mais próximos. Com a espada apontada para
frente, suas mãos tremiam um pouco. Porém, ele não ia correr o risco de ser uma
presa naquele lugar bizarro.
Então,
a criatura apareceu.
Seu
corpo era humanoide, um pouco mais baixo que Damian. Seu corpo era coberto por
chamas vermelhas. Seus chifres pontudos eram tão ameaçadores quanto suas presas
afiadas. Em sua mão direita, havia uma espada, e na esquerda, um escudo. Ambos os
equipamentos ardiam com as mesmas chamas demoníacas.
Com
um grunhido, o monstro apontou sua espada.
— Não se esqueça...
— Uma voz disse
para Damian, clara como se ela viesse de dentro de sua própria cabeça. — Não há nada a temer. — A voz parecia mais alta e grave a cada
palavra proferida pausadamente. — Lute para
viver, guerreiro. Lute e conquiste a Demonsbane.
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