Capítulo 9
—
Ansiosa por uma luta, hein? —
Zephyr sorriu, revelando o sorriso amarelo por entre a barba loira. Ele, então,
ergueu as mãos na direção de Elise. —
Que assim seja...
—
Não queremos fazer nada imprudente... —
Disse uma das Arcanas calmamente. Suas palavras não eram dirigidas para os
forasteiros, mas sim, para o aliado. —
Não é mesmo, senhor Descoteaux?
Zephyr abaixou suas mãos. Elise fez o mesmo. Os raios,
então, cessaram.
A sacerdotisa olhou para a mulher. Sua voz era familiar, bem
como o jeito gentil com que falava. Não era necessário ver o rosto dela. O
cabelo ruivo que escorria por cima do peito delatou sua identidade.
—
Lumia Redmane... —
Elise sorriu.
A mulher de cabelos alaranjados levou suas mãos alvas até
seu capuz e, gentilmente, o abaixou, revelando seus olhos azuis como o céu e o
sorriso sincero por ver a velha amiga. Lumia achou que nunca mais a viria.
Porém, ali estava ela.
—
Presumo que você vai querer conversar com a traidora antes de a executarmos... — Disse Zephyr levemente
irritado.
—
Nós não vamos a executar. —
Lumia respondeu solenemente.
—
Como? — O Arcano
ergueu uma sobrancelha. —
Pretende se aliar à traidora? Pois saiba que será tratada do mesmo jeito.
—
Execuções não fazem parte do que fazemos. —
Ela fuzilou Zephyr com seus olhos azuis. —
Nós levaremos a senhorita Seraph para o Ancião... — Seu olhar, agora mais gentil, voltou-se para
sua amiga. — Não é?
Elise, sem hesitar, assentiu.
—
Pouco importa. —
Zephyr riu com escárnio. —
Você está apenas postergando a sua morte. Desse jeito, você vai apenas cair nas
garras de um executor mais cruel, traidora. Tenho certeza que seu corpo e
espírito serão massacrados pela Lady Lockhart.
—
E quem é essa? —
Indagou Viktor, cruzando os braços.
— Ora...
— O Arcano bufou. — Não imaginava que teria
que explicar sobre a mais poderosa Arcana das últimas décadas, segunda em
comando do nosso templo, atrás apenas do Ancião... Mas, bem... — Ele esboçou um sorriso
para o Sandrealmer e Dreadraven. —
Se vocês insistirem em acompanhar essa escória... — Seu olhar, enjoado, dirigiu-se rapidamente
para Elise e voltou em um instante para a dupla. —
Vocês acabaram conhecendo-a, tenham certeza. Fiquem do lado desta daí e sofram
com o mesmo fim.
—
Você parece confiar demais nela. —
Afirmou Dreadraven desinteressado. —
Algo me diz que ela não é tão poderosa quanto você alega...
Zephyr grunhiu como um animal, reprimindo um xingamento.
Viktor não conteve um riso baixo, porém, satisfeito.
—
Não se deixe levar pela raiva, Descoteaux. —
Pediu Lumia.
—
Esses porcos arrogantes... —
Ele murmurou e, enfim, suspirou. —
Vocês vão ver...
—
Claro, claro... — O
Sandrealmer revirou os olhos. —
Lady Lockhart. Massacrar nossos corpos e espíritos. Vai ser incrível. — Ele bufou. — Já entendemos. Podemos
ir?
—
Mas é claro. —
Respondeu Lumia que, rapidamente, repreendeu Zephyr com seu olhar. — Não faça nada estúpido...
— Ela murmurou para
ele. — Se você
realmente quer que Elise morra como uma traidora, a melhor coisa que você pode
fazer e ficar fora do caminho...
O Arcano nada disse. Apenas mais uma troca de olhares não
muito amigáveis ocorreu entre ele e Lumia. Seus companheiros murmuravam entre
si, esperando que o trio de adversários não os entendessem.
—
Bem... —
Viktor sorriu. — Algo
me diz que isso vai ser divertido...
***
O vento soprava gentilmente por entre as folhas das árvores.
A brisa fresca parecia amenizar o calor daquele começo de tarde. Os animais
pareciam quietos. Felizmente, isso incluía os insetos também. O silêncio
naquele ambiente seria tranquilizador, calmante após tanto tempo na estrada.
Porém, a companhia não possibilitava tal descanso. A
qualquer momento, um dos Arcanos poderia resolver atacar. Em nove das dez vezes
seria provável que o ataque viesse de Zephyr.
Viktor andava tenso. Uma mão estava pronta para puxar sua
espada, e a outra, preparada para sacar sua arma. Dreadraven, apesar de não
aparentar estar preocupado, certamente já havia bolado quase uma dúzia de
planos de como agir dependendo de quantos atacassem. Apenas Elise e Lumia
pareciam mais tranquilas. Elas sabiam que a situação não era boa, porém, tentavam
aproveitar a calmaria antes da tempestade para conversarem com um pouco de paz.
—
Aí está algo que eu nunca vi... — Murmurou o Sandrealmer.
Havim se passado um pouco mais de dez minutos. O fim da
floresta estava bem visível agora. As árvores, altas e finas, pareciam se
dobrar, criando arcos em sequência por centenas de metros que cobriam a estrada
como um túnel. As sombras somadas ao vento fresco que vinha pelo grande
corredor natural conseguiram, enfim, quebrar o clima de tensão. O aroma das
flores que chegava até suas narinas parecia purificar os seus corpos.
— Realmente
lindo, não acha? — Perguntou
Lumia após respirar fundo, sentindo a fragrância com um sorriso no rosto.
—
Certamente não tem nada do tipo em Sandrealm... —Viktor
admitiu.
—
Mas há outras belezas, tenho certeza.
—
Praias sem igual, eventuais oásis no meio do deserto, cavernas com paredes
incrustadas com jóias, praticamente qualquer lagoa parece ter água
cristalina... Mas cenas como essas agora são diferentes para mim, sabe?
—
Nossa... — Lumia
parecia admirada. —
Parece um lugar que vale apena visitar.
— Nada
te impede de ir lá um dia... —
Ele suspirou. —
Talvez daqui a algum tempo, quando tivermos resolvido esse problema...
—
Parece ótimo.
Ela sorriu. Ele retribuiu o gesto, apesar de não ter a mesma
intensidade.
—
Se vocês já terminaram com o papo fiado... —
Zephyr os chamou. —
Podemos acelerar o passo? Pretendo chegar ao templo ainda hoje...
Viktor e Lumia assentiram. O grupo, então, seguiu pelo
corredor. O ar parecia mais fresco a cada passo. O cheiro das flores, mais
intenso a cada momento, sem nunca se tornar enjoativo.
Então, o grupo pôde ver a construção colossal à distância.
Num vale que parecia não ter fim, o campo florido enchia a
visão de todos os seus admiradores com dezenas de cores, distribuídas
perfeitamente como num quadro gigantesco. No centro da pintura, um palácio de
marfim refletia a luz do sol, parecendo brilhar como uma pedra preciosa. No
topo dele, uma torre parecia subir em direção às nuvens, cortando o céu claro.
—
O Templo Arcano de Yamlight... — Disse Dreadraven. —Realmente... É uma
obra-prima.
—
Espere... —Disse
Viktor, ainda um pouco embasbacado. —
Isso é um templo? Um templo?
—
Sim. — Respondeu
Elise, cruzando os braços. —
Um dos mais antigos do continente... Talvez do mundo...
—
Parece mais um castelo... —
Foi tudo o que o Sandrealmer conseguiu comentar.
—
Algo completamente normal para quem sabe das origens do templo. — Disse Lumia. — Nós, Arcanos, éramos
seguidos quase cegamente por muitos nobres. Acreditavam que nós éramos, sem
dúvida, enviados do próprio Yamlight. Tudo isso graças a nossa magia.
—
Além disso, muitos filhos de nobres vinham para cá, de tempos em tempos. — Acrescentou Elise. — Aliás, alguns ainda vêm.
A quantidade deles, entretanto, decaiu bastante. —
Ela fez uma breve pausa, um pouco perdida nos próprios pensamentos. — Eles eram mandados para
cá para aprenderem sobre Yamlight e, também, sobre como usar magia. É claro que
não eram todos que se saiam bem nesse segundo departamento, afinal, nem todos
nascem com o dom... Porém... Outros acabam se tornando verdadeiros Arcanos. A
linhagem dos Lockhart sempre se mostrou forte nisso...
— Lockhart? —
Viktor ergueu uma sobrancelha, olhando rapidamente para Zephyr e, então
voltando seus olhos para suas aliadas sacerdotisas. — A tal Lady Lockhart faz parte desses daí?
—
Sim. — Respondeu
Lumia. —Os Lockhart
são guerreiros fenomenais, treinados para isso desde cedo. Valentina Lockhart,
porém, mostrou-se determinada a aprender a lutar com espadas e lançar feitiços
com a mesma vontade e... Conseguiu. Ela se tornou uma exímia maga e guerreira,
como todos os Arcanos podem te dizer.
—
Então... — O
Sandrealmer exibiu um sorriso nervoso. —
Lady Lockhart... Uma mageknight. —
Então, ele olhou para Elise. —
Você realmente pretende enfrentá-la? Como...?
—
Eu tenho um plano. — Foi apenas o que Elise
disse. — Vamos. Você
vai ver...
A conversa do grupo foi reduzida a murmúrios. Sob o sol
forte, eles seguiram até o templo. Olhares de dezenas, talvez até centenas de
Arcanos pareciam os acompanhar pelos campos floridos. Todos sabiam sobre Elise.
Não havia como enfrentar todos, então, o plano da sacerdotisa tinha que dar
certo se ela quisesse sair de lá viva e, principalmente, com Lily junto de si.
O sol parecia mais fraco a cada passo. Nuvens começavam a
tapar, pouco a pouco, a luz da bola de fogo. Os ventos ficavam mais fortes a
cada segundo, levando o perfume dos campos e o pólen das flores de um canto
para o outro. Um cenário como aquele quase fazia as pessoas esquecerem o que
estava por vir.
As portas do templo, obras de arte de carvalho ornada com
padrões e símbolos feitos de prata, foram abertas por dois guardas. Eram
Arcanos também, porém, usando um armamento pesado que incluía lanças e escudos
feitos para se parecem com os trajes dos magos.
Por dentro, o lugar era ainda mais majestoso. Os corredores
brancos eram impecáveis. Haviam inúmeras praças pelo local. Algumas eram usadas
para discussões e palestras, tendo bancos, mesas e fabulosas fontes feitas de
mármore que refrescavam o ambiente. Outras tinham assentos mais confortáveis,
com as paredes recheadas de livros organizados em estantes de prata. Outras,
ainda, eram arenas sólidas de rocha branca no meio de um campo de grama baixa,
usadas para treinamento de feitiços e duelos. Além disso, jardins eram
espalhados por todos os cantos, abrigando flores variadas, algumas extremamente
raras. Estas eram belas e com um perfume ainda mais agradável do que qualquer
uma do campo de fora do templo.
Viktor andava admirado, quase tropeçando a cada cinco ou
seis passos por não olhar para frente. O lugar era realmente admirável, sem
dúvidas. Elise, por sua vez, parecia relembrar-se de algo, de uma memória boa a
uma ruim, a cada lado que olhava. A sacerdotisa, também, parecia sondar o local
com seus olhos, ignorando os Arcanos que passavam a sua volta, focando-se nos
escravos. Dos que traziam comida e bebida para seus senhores até os que
limpavam o templo, nenhum escapava de sua vista. Bem vestidos e alimentados era
difícil de acreditar que eles não eram simples funcionários. Aquilo dava um
pouco de alívio a ela, afinal, Lily poderia estar logo ali.
Guiados pelos Arcanos, o grupo caminhou pelo palácio que não
parecia ter fim, subindo lances e mais lances de escada, passando constantemente
por Arcanos que os encaravam e murmuravam quase com medo de serem ouvidos. No
começo, aquilo estava magoando Elise. Agora, só a irritava mais e mais,
fazendo-a bufar e estralar os dedos a cada passo.
Após quatro andares, o grupo chegou ao quinto andar. Agora,
eles estavam em um grande corredor com salas fechadas, escondendo o que quer
que estivesse acontecendo por lá, abafando
os sons inclusive. O clima era, então, diferente do resto do templo. Não mais
havia um ambiente tranquilo, arejado e convidativo.
—
Aqui ficam as salas de pesquisa. —
Disse Lumia não muito animada. —
Vamos logo... O salão do Ancião fica logo no fim do corredor.
—
O tópico parecia interessante... —
Murmurou Dreadraven.
—
Sim. — Concordou
Elise. — O povo daqui,
entretanto, não é. São metidos, para dizer o mínimo... — Ela bufou. —
Vamos.
—
Quanta hostilidade... —
Zephyr riu baixo. —
Nem eu gosto muito dos auto-intitulados gênios que aqui trabalham, mas...
Ignorando o Arcano, as duas sacerdotisas seguiram em frente,
seguidas por Viktor e Dreadraven. Os magos restantes, então, os seguiram, acompanhando
seus passos por trás, quase como se estivessem evitando que eles escapassem.
Aquilo, entretanto, não aconteceria. Fugir nunca fez parte
dos planos de Elise.
Quando as portas se abriram, a sacerdotisa olhou para o
outro lado da sala, ignorando as dezenas de Arcanos que estavam lá presentes,
fitando aquele que era seguido pelos demais. Sentado em seu trono, um velho
homem magro sorriu soberano. Sua túnica branca era majestosa, ornamentada com
fios de ouro, estendendo-se com longas mangas frouxas. No topo de sua cabeça, a
coroa dourada incrustada de jóias de diversas cores parecia cintilar, digna de
um rei. No rosto coberto de rugas e de olhos leitosos, sua barba longa e
grisalha parecia ser seu traço mais marcante.
Aquele era o Arcano mais poderoso da atualidade, Ishmael
Solace, o Ancião.
— Então...
— Sua voz grave ecoou
pela grandiosa sala. —
Você veio... Veio aceitar a sua morte... Pois bem... — Ele olhou para o lado. — Valentina, minha cara...
A mulher, então, andou do lado do trono para frente do
Ancião. Sua armadura, branca e dourada como as roupas dos demais Arcanos, era
leve, apesar de ser feita de aço, a fim de evitar o sacrifício de sua
mobilidade. Encantamentos também a protegiam contra feitiços, enfraquecendo-os
ao entrar em contato com a superfície de metal. Ela não usava um elmo. Seus
cabelos dourados arrumados em uma única longa trança era bem visível, bem como
os seus olhos azuis como safiras que, no momento, fuzilavam Elise.
Aquela era Valentina Lockhart, a segunda Arcana mais
poderosa da atualidade.
—
Acabe com a traidora, Valentina... —
Pediu o Ancião.
—
Hm... — Ela sorriu.
Seus olhos brilhavam como se chamas saíssem deles. Então, ela puxou sua espada
de trás da cintura. A arma era feita inteiramente a partir de um tipo de
cristal raro, Azzurra, conhecido por fortalecer magias e encantamentos. Agora,
sua lâmina apontava para Elise, do outro lado da sala. — Com prazer.
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