Capítulo 1
Silverhill, leste de Woodrealm, continente de Windland, Decima
de Pisceum de 1057.
Era o último dia do ano. A esperança de um começo melhor,
entretanto, não residia nos corações de muitos Woodrealmers.
O céu cinzento não permitia dizer que horas eram. A chuva
fina e gelada regava Silverhill. O vento soprava o ar fresco do mar para a
cidade. Era quase uma tentativa na natureza de se livrar da fedentina que
impregnava cada canto do local.
Um homem adentrou a cidade. Sobre a armadura de aço negro,
seu manto cinzento se estendia como uma capa, além de cobrir seu cabelo
castanho e curto.
Com passos lentos, Damian vagava pelas ruas de Silverhill.
Para cada lado que o guerreiro olhava, tragédia o olhava de volta. Pessoas de
todas as idades e classes sociais estavam jogadas pelas ruas. Com os olhares
cheios de sofrimento, elas tossiam até cuspir sangue e suplicavam por ajuda com
palavras que não faziam sentido para ele.
Um clarão no céu fez com que Damian olhasse para o alto. O
trovão veio pouco depois, seguidos por mais flashes de luz no céu cinza.
Isso só vai piorar,
o guerreiro pensou.
Damian acelerou a passada. A chuva começou a cair mais
intensamente enquanto os trovões preenchiam o ar com som.
Para cada canto que o guerreiro olhava, mais pessoas sem
esperança morriam lentamente. A carne de seus corpos parecia apodrecer.
Cobertos de cicatrizes negras, pedaços de pele e músculo se soltavam de seus
ossos e caíam no chão, moles e gosmentos como larvas de insetos.
Após alguns poucos minutos, não era mais possível para
Damian andar naquelas ruas sem pisar em poças de sangue misturadas com carne
apodrecida. A água da chuva parecia não fazer nada além de espalhar mais a
mistura grotesca. Nem mesmo o cheiro pútrido parecia disposto a deixar a cidade
ou as narinas do guerreiro.
—
Não! — Um homem
gritou. — Não vou
deixar que ele toque em mim ou em minha família!
Damian olhou na direção de onde o som veio. Era uma praça
local, além do chão por uns cinco degraus, parecendo um grande palco de tijolos
cinzentos. Num dia normal, o lugar estaria repleto de pessoas. Comerciantes
estariam vendendo peças de roupa, pedaços generosos de carne, vinhos de todo
continente e jóias de beleza estonteante. Agora, porém, haviam apenas umas
poucas pessoas discutindo.
—
Só estamos tentando ajudar vocês... —
Disse uma mulher calmamente.
—
Então colabore. —
Aconselhou um outro homem. Esse, com a voz mais rouca.
Então existem pessoas
nessa cidade que não estão morrendo, pensou Damian, por ora, pelo menos.
Com passos calmos, o guerreiro subiu os poucos degraus que
levavam a praça.
Todos que estavam no lugar, ao mesmo tempo, olharam na
direção do recém chegado. Damian retribuiu o olhar.
Eram um pouco mais de quarenta pessoas. A maioria parecia
ser camponesa ou comerciante. Em comparação com os outros que o guerreiro havia
visto antes, aquele punhado de gente parecia saudável.
Entretanto, três figuras se destacavam do resto do grupo.
Claramente, não tinham relação com as outras pessoas, porém, pareciam estar
juntos entre si. Eram forasteiros como Damian, sem dúvida. Seu propósito
naquele local, porém, não era claro.
À esquerda, estava um homem esguio e mal encarado. Sua
armadura era feita de couro marrom reforçada por aço em alguns pontos. Nos
braços, apenas manoplas eram usadas. Seus bíceps e ombros estavam à mostra,
exibindo a musculatura bem definida, além da cor da sua pele morena. Era, sem
dúvida, um Sandrealmer. A feição em seus rosto, o cabelo desgrenhado castanho
escuro e seus olhos cor de avelã só deixavam isso mais claro. Em cada lado da
cintura, havia uma espada feita de aço. Suas pontas eram curvadas e, seus
cabos, banhados a ouro.
No meio, a única mulher do grupo parecia cumprimentar Damian
com um olhar triste. Sua túnica branca, com bordados dourados delicados em
certos pontos, cobria o seu corpo quase que por completo quando levantava seu
capuz. Sob as longas e frouxas mangas estavam braceletes dourados. Peças
idênticas estavam juntas ao seu tornozelo, como era comum entre sacerdotisas
Arcanas. Seus cabelos castanhos, quase loiros, escorriam pelos ombros. Sua pele
era quase tão alva quanto às próprias roupas que usava. Seus olhos azuis claros
pareciam tomados por uma preocupação pesada demais para só ela aguentar.
Finalmente, à direita, estava a figura mais curiosa. Ao que
tudo indicava, era um homem. Sua grandiosa capa negra chegava até o chão e,
enquanto em pé, cobria todo o seu corpo, incluindo seus braços. Sob ela, estava
uma armadura pesada feita de algum tipo de metal negro. Na cabeça, o capuz
cobria da sua nuca até o ponto mais alto de sua testa. Seu rosto, entretanto,
não estava descoberto. Uma máscara de corvo, com um bico longo cor de carvão e
olhos escarlates, completava o visual.
—
Ora, ora... — O
Sandrealmer esboçou um sorriso. —
Não esperava que essa cidade recebesse visitantes tão cedo.
—
O que está acontecendo aqui exatamente? —
Damian indagou ríspido.
—
Uma praga! — Um dos
camponeses gritou. —
Vamos todos morrer se continuarmos aqui...!
—
Não! — Uma mulher,
muito provavelmente a esposa daquele homem, tapou a boca dele com uma mão. — Nós não vamos...
—
É isso mesmo. — A
sacerdotisa concordou com certo entusiasmo. —
Existe salvação. Confiem em nós...
—
Não dá... — Murmurou
uma mulher. — Só o
Godhand pode nos salvar. Nós temos que arriscar sair daqui e ir até a Capital...
—
Vocês vão morrer antes de chegar lá. —
O Sandrealmer advertiu. —
A carne vai soltar de seus ossos como se fosse um pedaço de gelo derretendo
perto do fogo. —
Houve um momento de silêncio. Todos pareciam o encaram. — Não ajam como se vocês não tivessem visto
isso. Pra qualquer lado que se olhe, é isso que se vê nessa maldita cidade...
—
E vocês querem que a gente confie naquilo?
— Um camponês apontou
para o homem com máscara de corvo. —
Droga! A gente nem sabe se ele é humano! Ele pode muito bem ser um monstro...
Ele pode querer matar a gente!
—
Se vocês não aceitarem a ajuda dele, vocês podem muito bem morrer. — A sacerdotisa afirmou
solenemente.
—
E ainda vai ser bem doloroso. —
Acrescentou o Sandrealmer. —
E nojento. — Ele
olhou, de repente, para Damian. Seus olhos pareciam brilhar intimidadoramente. — Ei, você! Forasteiro! Chegue
mais perto. Junte-se a festa!
Com o convite, o guerreiro se aproximou lentamente. Ele
podia sentir todos os olhares sobre si. Alguns ali pareciam temê-lo.
— Qual
o seu nome? — O
Sandrealmer perguntou.
—
Damian. — O guerreiro
respondeu. — Damian
Eisenfaust.
—
Gostei do nome. — Ele
sorriu sem mostrar os dentes. —
Bem imponente.
—
E você? Quem seria?
—
Eu... — O Sandrealmer
fez uma reverência, o que pareceu zombaria da parte dele. — Sou Viktor Carmesi.
Prazer em conhecê-lo, Damian.
— Carmesi? —
O guerreiro ergueu uma sobrancelha. —
Do Clã Carmesi?
—
Ora, você ouviu falar da minha família? Sinto-me lisonjeado, Snowrealmer...
—
E eu achando que poderia me misturar... —
Damian abaixou o capuz. Agora, todos podiam ver o rosto de traços fortes e
olhos quase dourados do homem do norte. —
Mas acho que meu sotaque pode ter me entregado...
— Exato.
Você até consegue imitar bem o sotaque local, mas percebi algumas diferenças
nas entonações de algumas palavras. Nada demais. E, a propósito... Melhor
assim. Ninguém escondendo o rosto... —
Viktor olhou para o homem com a máscara de corvo. — Com exceção do doutor Dreadraven aqui. — Ele olhou de volta para
Damian. — Mas ele tem
bons motivos. Acho...
—
Viktor, você vai propor ao Snowrealmer que ele seja curado pelo doutor? — A sacerdotisa perguntou.
—
Exatamente, minha cara Elise! —
O Sandrealmer sorriu para Damian. —
Afinal, você sabe que no momento que você entrou nessa cidade você foi exposto
à praga, não é? Se você não fizer nada a respeito, você vai acabar que nem
quase todo mundo daqui...
—
Hm... — Damian bufou.
— Suponho que não
tenho escolha...
—
Não mesmo...
O guerreiro olhou para Dreadraven. A máscara impedia que
suas emoções aparecessem por completo. Até os olhos, cobertos por lentes
vermelhas, eram impossíveis de ler. Era, sem dúvida, o mais intrigante dentre
os três. Pelo menos, isso era a verdade para Damian que sentia uma energia
diferente vinda dele.
—
Faça o que você sabe. —
O Snowrealmer pediu quase como se ordenasse o doutor.
Dreadraven assentiu. Damian se aproximou dele.
O doutor puxou a capa para trás. As manoplas de sua armadura
mais pareciam garras, o que fez com que alguns dos camponeses murmurassem ainda
mais nervosos.
— Não
vai doer nada. —
Disse Dreadraven. A voz rouca do homem soava ainda mais grave por causa de sua
máscara. — Só não se
mexa muito.
Calmo, Damian permaneceu imóvel enquanto faíscas púrpuras
começavam a se formar entre os dedos do doutor. Murmúrios inquietos soaram mais
altos. Em uma fração de segundos , chamas irromperam das mãos de Dreadraven.
—
Eu sabia! — Um homem
do grupo exclamou. —
É magia negra!
Os ânimos se exaltaram. Mais gritos vieram em seguida. Um
pequeno tumulto estava prestes a se formar. Foi quando, de repente, um som tão
alto quanto o de um trovão soou no meio da praça.
Os olhares de todos se voltaram para Viktor, mais
especificamente, para sua mão direita. Nela, erguida para o alto, estava sua
pistola A arma, rubra como um rubi, era de disparo único, como praticamente
todas as armas de fogo já feitas. Entretanto, seu poder era devastador para o
seu tamanho. O Sandrealmer a mantinha escondida atrás da cintura, usando-a
apenas quando necessário para ter um elemento surpresa ao seu favor.
—
Agora que eu tenho a atenção de todos... —
Viktor apontou com a arma para o doutor. Um leve fio de fumaça cinza saia do
cano da arma recém disparada. —
Vejam, ó, povo ignorante!
Enquanto o Sandrealmer recarregava sua arma, a multidão
olhava para as chamas que Dreadraven controlava com maestria. Calmamente, ele
levou suas mãos até o peito de Damian. Relaxado, o guerreiro observou o fogo
púrpura tocando o peitoral de sua armadura. Apesar de perto, ele mal sentia o
calor.
Então, as chamas se soltaram das mãos de Dreadraven.
Rapidamente, o fogo penetrou o corpo de Damian, percorrendo todo o seu
interior, da ponta de seus dedos dos pés até o topo de sua cabeça, em menos de
um segundo.
Um calafrio. Nada mais que isso o guerreiro sentiu. No
instante seguinte, ele se sentia melhor do que antes, como se tivesse dormido
bem pela primeira vez em meses.
—
Reagiu melhor que qualquer um que eu já tenha visto... — Dreadraven murmurou. — Por que será...?
Era óbvio que o doutor já havia deduzido um pouco sobre
Damian. Diante da perspicácia do homem a sua frente, o Snowrealmer apenas deu
um sorriso sem mostrar os dentes.
—
Parece que a cobaia está viva... —
Disse Viktor que, então, deu um tapinha no ombro de Damian. O guerreiro se
voltou para ver um sorriso do Sandrealmer. —
Viram? Ele está bem...! Não é?
—
Sim... — O
Snowrealmer olhou de relance para cada um na multidão. Cada rosto desesperado
parecia intrigado, quase esperançoso agora. —
Não há o que temer. Confiem no doutor.
Algumas pessoas pareciam não confiar ainda em Dreadraven.
Outros, após relutarem um pouco, foram até o homem misterioso.
—
Ah! — Viktor
exclamou. — A
propósito, até onde sabemos, uma vez curados, vocês não serão mais infectados
por essa praga. Então, depois de hoje, vivam suas vidas sem problemas, ok?
Com aquelas palavras, alguns sorrisos foram surgindo nos
rostos daquelas palavras. Algumas das pessoas que haviam recusado ir até o
doutor começavam a ir até ele. Se tudo continuasse daquele jeito, todos
acabariam indo até Dreadraven para serem curados. Em questão de cinco minutos,
o dever do misterioso indivíduo estaria cumprido.
Calmamente, Damian andou até Viktor e Elise. A dupla sorria
para ele.
—
Obrigado pela ajuda, Snowrealmer. —
A sacerdotisa uniu as palmas das mãos e se curvou ligeiramente para frente, fazendo
uma reverência mais respeitosa que a de Viktor. —
Já estávamos perdendo as esperanças aqui...
—
É, o povo dessa cidade é bem cabeça dura. —
Disse o Sandrealmer. —
E covardes. E...
—
E em breve nosso trabalho estará terminado. —
Ela interrompeu o falatório de Viktor. —
Aqui, pelo menos. Depois...
— Nosso trabalho? — O Sandrealmer ergueu uma sobrancelha. — Esse não é meu trabalho.
Isso é coisa sua e do doutor. Você sabe o porquê de eu estar aqui, minha linda,
e não tem nada a ver com isso.
—
É... — Elise bufou. — Você está certo. Eu sei,
mas...
—
Eu sei que você quer ver todo mundo sendo salvo dessa praga... — Viktor interrompeu,
porém, falando num tom calmo. —
Eu sei que você quer ajudar. Mas... Aceite logo a realidade. Você não pode
fazer nada. Não no sentido de curar os necessitados. Tudo o que você pode fazer
é segurar a mão de alguém enquanto o doutor faz todo o trabalho.
O olhar melancólico de Eilse evidenciava que ela estava
infeliz. Porém, ela sabia que Viktor falava a verdade. Ele não falava aquilo
apenas por interesse próprio.
—
Então... — Damian
cruzou os braços. —
Essa praga está além dos Arcanos?
—
Infelizmente... — A
sacerdotisa bufou. —
Ninguém sabe ao certo o que é. Nem mesmo o doutor. Mas a magia dele é capaz de
curar a praga, então... A esperança não está completamente perdida.
—
E o tal de Godhand? —
O Snowrealmer indagou. —
Eu ouvi alguma das pessoas falar esse nome...
—
Eu não sei muito sobre ele. —
Ela admitiu. — E é
exatamente esse o problema. Ninguém sabe ao certo quem ele é.
—
Como assim?
—
Ele simplesmente surge do nada curando essa praga. — Disse Viktor. —
Aí ele diz ser um serve fiel do deus Yamlight...
— O Deus Yamlight. — Elise o corrigiu levemente irritada.
—
Que seja... — O
Sandrealmer deu de ombros. —
Tento não perder o meu tempo com religião... —
Ele voltou o olhar para Damian. —
O que importa é que esse homem é um tanto quanto suspeito. Ele é como o doutor,
só que por usar magia da luz, ninguém critica. E o fato de ele ter salvo a
filha do rei Wallace, o Destemido só ajudou mais a imagem dele. E o bolso
também.
—
Ele praticamente governa o país junto com o rei agora. — A sacerdotisa acrescentou. — E os benefícios dele não
acabam por aí.
—
Se você visse a igreja dele... —
Viktor riu. — Era um
velho templo abandonado na Capital. Agora é praticamente a droga dum palácio!
—
E isso tudo aconteceu em quanto tempo...? —
O Snowrealmer perguntou.
—
Dois anos. —
Respondeu Elise. —
Talvez um pouco mais que isso.
—
As notícias de fora raramente chegam até vocês, não é mesmo? — Indagou Viktor. — Aposto que a guerra civil
não ajuda também... Aliás! Icebrand ou Drake?
—
Nenhum. — Damian
respondeu secamente.
—
Não se interessa muito por política? —
O Sandrealmer parecia curioso. —
Ou acredita que mais uma família lutará pelo controle do país?
—
Não sei. E também não me importo. —
O olhar do Snowrealmer era quase mortífero para Viktor. — Eu deixei aquele lugar. Não pretendo voltar.
—
Não deixou ninguém para trás? —
Agora era Elise que parecia curiosa. —
Família? Amigos?
—
Não. — Damian respondeu
no mesmo tom áspero de antes. —Eu
fui o único sobrevivente.
Viktor e Elise trocaram olhares. Eles pareciam um pouco mal
por perguntarem. Era obviamente um assunto complicado para o guerreiro.
Entretanto, antes que os dois pudessem dizer algo como “meus
pêsames” ou um simples “desculpe por perguntar”, um novo som ecoou pela praça.
Era um grasnado agudo que parecia atravessar o ar como uma
lâmina contra outra. O ruído foi capaz de fazer praticamente todos tremerem
agoniados, gritando em protesto. Damian e Dreadraven eram os únicos que
conseguiram manter a compostura e, com isso, conseguiram olhar de onde o som
havia vindo. No topo de um dos telhados dos prédios no entorno da praça, estava
um Necrófago.
A ave, como toda fera de sua espécie, tinha o topo da cabeça
completamente branco com dois chifres: era o crânio exposta da criatura. Os
olhos eram vazios preenchidos com a magia negra que os fazia viver. Então, o
monstro, grandioso como um abutre, esticou suas longas asas e levantou vôo.
Damian e Dreadraven seguiram a criatura com os olhos. Os
dois, então, viram que o Necrófago tinha companhia. Outros três voavam agora
com ele em um círculo sobre a praça.
Não demorou para que Viktor e Elise, seguidos dos camponeses
e mercadores, vissem os monstros no céu. Também não demorou para que uivos,
passos rápidos e gritos de desespero viessem enfim. Era bem provável que quase
todos os que estavam jogados nas ruas da cidade, grunhindo de dor e esperando
por uma salvação, encontraram um fim brutal.
—
Eles não podem sentir o cheiro de carne podre, não é...? — Viktor soou nervoso.
—
Lobos Necrófagos... —
Dreadraven murmurou desanimado, afinal, ele estava quase terminado de curar a
praga de todos. Agora, além de tudo, aqueles salvos poderiam morrer nos
próximos instantes. —
Não conseguiremos manter todos vivos...
A afirmação do doutor fez algumas das pessoas começarem a se
agitar. Eles sabiam que morreriam. Muitos já haviam visto aquelas criaturas e
sabiam do que eram capazes.
Viktor sacou suas espadas. Seu olhar era determinado. Ele
tentava não ficar nervoso a todo custo.
Elise respirou fundo e se concentrou. Suas mãos começaram a
emitir um brilho branco. Não seria a primeira vez que a sacerdotisa enfrentaria
aqueles monstros.
Dreadraven parecia calmo. Ele estendeu um punho para o ar.
De repente, faíscas púrpuras sugiram por toda sua mão. No instante seguinte, um
sabre negro, ainda embainhado, surgiu. Na bainha, as inscrições rúnicas
prateadas brilhavam.
Todos, com exceção de Elise, Damian e o próprio Dreadraven
estavam perplexos. Eles nunca haviam visto alguém materializar uma arma a
partir de magia negra. Ninguém podia os culpar pela reação.
—
Sua vez. — O doutor
disse para Damian.
O Snowrealmer sorriu. Para Dreadraven aquilo era tão óbvio
que parecia uma piada.
— Sua vez? —
Viktor repetiu as palavras do doutor confuso. —
Como assim...? —
Então, ele percebeu. —
Damian? Onde está a sua espada...?
O guerreiro estendeu a palma de sua mão direita. Por debaixo
de suas faixas, uma marca vermelha brilhou intensamente. Faíscas vermelhas
surgiram. O vento começou a se agitar. O ar pareceu mais frio e denso.
Como uma explosão, chamas e fumaça saíram violentamente da
marca da mão de Damian para se solidificarem no instante seguinte.
Todos olhavam impressionados para o Snowrealmer. Com sua mão
direita, ele manejava uma espada claramente maior que ele mesmo. A arma negra
parecia viver. Suas marcas escarlates pareciam veias de magma que pulsavam a
cada batida do coração do guerreiro. A lâmina brilhava tanto que parecia ser
feita de diamantes.
—
Ela é imponente... —
Dreadraven admitiu. —
Agora veremos o quão afiada ela é...
Damian sorriu. Seu olhar era determinado. Com a Demonsbane
em mãos, ele tinha certeza de que não poderia ser derrotado.
Então, os uivos soaram mais altos. Como sombras, a matilha
surgiu dentre as ruas da cidade e cercaram a praça.
Capítulo 2
Seus pelos cinzas eram esverdeados. Suas garras eram negras
como carvão. Suas longas e afiadas presas eram banhadas por sua saliva ácida. O
porte não era muito maior que o de um lobo comum, mas o desespero de suas
vítimas ao serem atacadas por eles era significante maior. Como qualquer outra
criatura de sua raça, o Lobo Necrófago tinha o topo de seu crânio branco à
mostra, bem como dois chifres parecidos com o de bois. O interior de sua cabeça
e seus olhos, também, eram preenchidos apenas pelas trevas que o fazia viver.
A multidão começou a gritar ao avistarem os monstros. Sem
lugar para onde correr, eles se aproximaram. Pessoas abraçavam com a mesma
intensidade entes queridos, amigos de longa data e desconhecidos que tiveram o
mesmo destino que eles. Aqueles seriam os últimos instantes de muitos dos que
ali estavam.
As criaturas se aproximavam a passos calmos, calculando o
momento para atacarem, rondando seus oponentes enquanto exibiam suas presas que
emitiam um leve brilho esverdeado.
— O
Alfa... — O olhar de
Damian ia de uma fera a outra, rapidamente, como se analisasse cada um dos
inimigos. — Onde ele
está...?
—
O quê? — Viktor soava
tão nervoso que era bem provável que ele não houvesse nem conseguido prestar
atenção no que o Snowrealmer havia dito.
—
O Lobo Alfa. —
Explicou Dreadraven. Com a espada apontando para o chão, praticamente
balançando em sua mão, ele nem parecia pronto para lutar. — Com uma matilha desse
tamanho, há um Lobo Alfa com certeza.
—
E como saber quem é o Alfa? —
Indagou Elise. Sua voz era calma, porém, suas mãos tremiam um pouco. — No meio de tantos, não me
parece fácil saber...
—
Vocês realmente não sabem nada sobre Necrófagos. —
Damian disse quase rindo. Ainda observando os monstros que os rondavam. Suas
mãos estavam firmes no cabo da Demonsbane. —
Vocês nunca haviam visto mais do que meia dúzia deles juntos. Estou certo? — O Snowrealmer olhou para
trás por apenas um instante, o suficiente apenas para poder ver Elise e Viktor
assentindo. — Sei... — Ele bufou. — Não é culpa de vocês.
—
Massacres dessa magnitude não são muito comuns em Woodrealm. — Dreadraven disse. — Não atualmente, pelo
menos. Não havia como uma concentração desse tamanho de Necrófagos se formar
por, digamos, uma luta entre guardas e bandidos. Nem mesmo os conflitos entre
as máfias de Sandrealm e as forças de Nazir, o Justo derramam tanto sangue. — Ele olhou diretamente
para Damian. — Agora,
a guerra civil na sua terra...
—
Exato. — O
Snowrealmer parecia calmo. —
Já matei a minha cota de Necrófagos e não acho que vou parar tão cedo. — Ele soltou uma breve
risada nervosa. —
Essas coisas me seguem, sabe...
De repente, um uivo mais alto que os outros soou. Por um
instante, até os trovões e os ventos fortes pareceram se acalmar. Do topo do
prédio mais alto do entorno da praça, ele parecia rir de suas presas.
Mais rápido do que qualquer outro animal, o Lobo Alfa
avançou.
Pela parede externa do prédio, ele correu para baixo, em
direção à praça. Após um pulo, a fera pareceu voar por um instante. Todos
pareciam admirar o monstro até o instante que suas patas tocaram o solo. Então,
a força de sua mandíbula destroçou a cabeça de um dos camponeses.
Gritos desesperados vieram em seguida. Então, o Lobo Alfa correu
até suas tropas. Mais uma vez, ele uivou. Agora, porém, seus soldados imitaram
o gesto, formando um coro. Como um enxame, os Necrófagos avançaram juntos.
—
Matem o Alfa! —
Damian bradou. — Sem
o líder, eles vão recuar!
A multidão se dispersava. Aterrorizados, eles corriam cada
um para um lado, sendo abatidos um a um pelas feras.
Elise tentava ignorar as mortes a sua volta. Seu coração
doía, porém, não havia nada que ela pudesse fazer para ajudar aqueles pobres
camponeses e comerciantes. Ela tinha que focar sua atenção nos Necrófagos que
vinham contra ela. Os raios que saiam de suas mãos lançavam os lobos para trás,
arremessando-os contra bestas menos atentos. Suas chamas brancas aterrorizavam
os monstros que, apesar de fugirem, acabavam morrendo por causa dos ferimentos.
Viktor parecia não conseguir pensar em mais nada. Seu foco
estava totalmente dedicado à batalha. Com movimentos ainda mais ágeis que os
dos lobos, ele parecia praticamente fazer uma dança com suas espadas. Suas
lâminas giravam pelo ar golpeando qualquer um que chegasse perto demais. Era um
ataque efetivo e uma defesa praticamente perfeita contra aqueles Necrófagos.
Dreadraven conseguia manter sua calma mesmo durante combate.
Surpreendentemente, o doutor era extremamente ágil. Ele não precisava correr,
apenas dava passos certeiros para onde precisava. Seu sabre parecia realizar
contra ataques perfeitos, matando seus inimigos em menos de três golpes cada,
eventualmente acertando um golpe preciso na garganta de alguma das bestas. Aos
monstros que estavam distante, chamas azuis se encarregavam do trabalho.
O Alfa parecia supervisionar satisfeito o ataque de suas
tropas. A fera parecia estar praticamente sorrindo. Porém, tal sorriso desapareceu ao ver o
Snowrealmer avançando.
Damian, com um olhar compenetrado, corria na direção do Lobo
Alfa. Lobos Necrófagos pulavam contra o guerreiro apenas para serem cortados em
dois. A cada movimento da Demonsbane, mais sangue negro caia no chão e sobre o
próprio guerreiro.
O Snowrealmer trocava olhares com o Alfa. Naquele momento
não havia presas: apenas predadores. Os lobos em volta, como de costume, deram
espaço para a luta que estava prestes a começar.
Não era o primeiro Lobo Necrófago Alfa que ele enfrenta.
Porém, Damian tinha que admitir que aquele era o maior que ele já tinha visto.
Aquele era maior do que um tigre-da-colina.
—
Você e eu grandão... —
O Snowrealmer sorriu para o desafio. —
Vamos!
O Alfa rosnou. Ele teria pulado contra Damian, forçado suas
patas dianteiras contra o peito do guerreiro. O Snowrealmer estaria
completamente vulnerável às presas do monstro.
Entretanto, o guerreiro não deixaria que aquilo acontecesse
tão facilmente.
Damian começou a desferir golpes implacavelmente. A
Demonsbane parecia pesar o mesmo que uma pena nas mãos dele. Os ataques
descreviam arcos no ar, sem deixar uma brecha para contra ataques, forçando o
Lobo Alfa a recuar enquanto rosnava irritado.
Entretanto, as energias do Snowrealmer não durariam para
sempre. Sua paciência, além disso, era ainda mais limitada. Seus ataques
começaram a se tornar mais pesados, sendo mais fortes, porém, mais lentos.
Eventualmente, o Alfa teria sua chance de contra atacar.
Então, a paciência de Damian se esgotou. Com um golpe, ele
atacou de cima para baixo. O líder dos Necrófagos desviou com um pulo para
trás. A Demonsbane se chocou contra o chão da praça, produzindo um estrondo que
fez com que toda a área tremesse e, por fim, fincando-se no solo.
O Snowrealmer se agachou de imediato. Um segundo mais tarde
e as presas do Alfa, que pulou sobre a espada sem esforço, teriam levado parte
de sua cabeça.
O Necrófago rosnou para Damian. Sua resposta veio após
arrancar a Demonsbane do chão como se ela estivesse apenas apoiada lá. No solo
da praça, uma fissura ficou para trás no lugar onde a espada estava. O
guerreiro apontou a arma para a fera e cerrou os dentes.
—
Vamos acabar logo com isso... —
Damian murmurou.
O Snowrealmer, então, começou a rodar a espada. Na ponta de
seus dedos, a arma girava cada vez mais rapidamente. Erguida acima da cabeça de
Damian, a Demonsbane começou a mover o ar envolta dela, jogando rajadas de
ventos contra os lobos que passavam muito perto. O Alfa, entretanto, apenas
observava.
Então, o guerreiro arremessou a espada.
A arma atravessou o ar com a velocidade de uma flecha.
Girando daquele jeito, a Demonsbane poderia ter força o suficiente para
atravessar uma armadura de ferro como se fosse feita de vidro.
Entretanto, o Alfa estava atento. Um pulo foi o suficiente
para passar por cima da arma que, implacável, seguiu em frente pelo ar, matando
três Lobos Necrófagos desatentos, atravessando a parede de um prédio e sumindo
da vista de Damian.
Nesse momento, toda a praça olhava para o Snowrealmer.
Elise, Viktor e até mesmo os outros necrófagos estavam abismados por tamanha
força e, em seguida, certos de que Damian iria morrer.
O guerreiro soltou uma risada nervosa. O Alfa avançou,
pulando contra ele.
No instante seguinte, Damian estava jogado no chão com o
líder dos Necrófagos em cima si.
Toda a praça ficou em silêncio. Os olhos de todos estavam
voltados para os dois oponentes.
Com um urro, o Snowrealmer empurrou o corpo do Lobo Alfa
para o lado. Ofegante, ele se levantou e olhou para seu adversário. A fera
tinha a Demonsbane cravada da base de seu estômago e a sua ponta atravessando o
seu peito.
—
Foi uma boa luta... —
Damian murmurou.
Após as últimas palavras, o Snowrealmer arrancou sua espada
do corpo do Alfa, abrindo seu corpo no meio e fazendo seu sangue negro jorrar.
Todos os Lobos Necrófagos remanescentes ficaram parados em
silêncio.
—
Ei, ei... — Viktor olhou
os aliados ao seu lado. —
Como ele fez aquilo?
—
Ele invocou a espada de volta para ele. —
Dreadraven explicou.
—
Então, você pode fazer a mesma coisa? —
Indagou Elise.
—
Sim. — O doutor
respondeu. — Mas aí perdemos
o elemento surpresa. Damian deixou o Lobo Alfa baixar a guarda antes de atacar.
Foi inteligente.
—
Então... Nós vencemos? —
O Sandrealmer perguntou.
—
Hm... — A sacerdotisa
olhou melancólica ao seu redor, para as carcaças de lobos e Necrófagos que estavam
na praça, bem como os litros de sangue vermelho e preto que fora jorrado. — Podemos chamar isso de
vitória?
—
Não, nós não podemos. —
Dreadraven respondeu. —
Mas não por esse motivo. —
Ele fez uma breve pausa. —
Ainda não acabou.
Nesse momento, os passos de Damian soaram, voltando a
atenção dos aliados para o guerreiro.
—
Você acha que tem um outro Alfa? —
O Snowrealmer indagou. Seu rosto expressava um misto de raiva com preocupação.
—
É bem provável. — O
doutor respondeu. —
Por mais que eu nunca tenha visto isso... É a única coisa que faz sentido.
—
Ah... — Viktor limpou
a garganta. — Acho
que eu preciso de um pouco de esclarecimento...
—
Apenas olhe para os lobos. —
Damian disse rispidamente.
Sem questionar, o Sandrealmer e a sacerdotisa olharam para
as feras. Se não respirassem, poderiam se passar por estátuas. Eles não fizeram
um movimento significativo desde o instante em que Lobo Alfa foi morto.
— Eles
estão, muito provavelmente, esperando novas ordens... — Disse Dreadraven. — Novas ordens de um novo líder.
Damian sentiu um calafrio percorrendo sua espinha. Uma
sensação de mal estar o atingiu como se fosse uma ferroada.
—
Ninguém grite ou faça movimentos bruscos... —
Viktor começou a falar num tom baixo. —
Porque tem um sujeito no telhado do prédio atrás da gente.
Houve um momento de silêncio. Apreensivos, eles olharam, um
de cada vez, para o topo do prédio. Uma figura usando uma túnica negra e uma
foice os observava.
—
Quais são as chances da gente ter morrido e não percebido? — Viktor perguntou num tom
que era difícil saber se era uma brincadeira ou não.
—
Baixas. — Respondeu
Dreadraven. — Porém,
pelo número de Necrófagos aqui, além da organização deles no ataque...
—
É um Necromante? —
Indagou Elise.
Todos agora olhavam para o doutor, aguardando uma resposta.
—
Na verdade... — Uma
voz feminina começou a falar atrás deles.
Antes que eles pudessem se virar, a ponta da lâmina de uma
foice tocou a garganta de Damian. O guerreiro segurou Demonsbane com força,
irritado, sem poder fazer mais nada.
—
Eu sou uma Necromante. — A maga sorria por debaixo
da máscara. — E
suponho que eu seja a nova Alfa.
Capítulo 3
Com exceção do vento que parecia uivar, não ouve nenhum
outro som naquela praça por um instante.
—
Sabe... — A
Necromante quebrou o silêncio, ainda ameaçando a vida de Damian e curtindo a
tensão no ar como se apreciasse um bom vinho. —
Vocês podem tentar falar alguma coisa...
—
Claro... — O
Snowrealmer esboçou um sorriso. —
Mas eu me sentiria mais confortável sem essa coisa no meu pescoço.
—
E você acha que vou deixar o homem que maneja a Demonsbane à vontade? — A estranha riu por
debaixo de sua máscara de prata. —
Isso seria suicídio. —
Ela olhou na direção dos outros. —
Vocês, entretanto, também podem ser ameaças... Principalmente esse mascarado. Já
ouvi falar de você, Dreadraven... Temos um amigo em comum...
—
Duvido que amigo seja a palavra que
eu usaria para descrever aquele ser vil... —
O doutor disse sem ânimo.
—
E você tem certeza de quem eu estou falando?
—
Quem mais seria?
—
Verdade...
A Necromante olhou para o alto por um breve instante. Suas
Aves Necrófagas ainda pairavam no céu acima de praça. Então, o som de algo
pesado se chocando no chão próximo a ela, dando-a um leve susto.
Era a Demonsbane. Damian havia soltado sua espada.
—
Ficou cansado de segurá-la? —
A Necromante zombou. —
Podia ter me avisado antes...
—
Nada disso. — O
guerreiro respondeu de maneira ríspida. —
Só não tenho mais por que de ficar segurando a Demonsbane.
—
Como assim? — Ela
deixou escapar um riso baixo. —
Desistindo?
—
Você não pretende me matar. —
Ele retrucou. — Não
pretende matar nenhum de nós. Então não há por que te lutar com você... Não
agora, pelo menos.
Ouve um momento de silêncio praticamente absoluto. Então, a
Necromante, com um movimento rápido, tirou a lâmina de sua foice de perto da
garganta de Damian.
O guerreiro tentou parecer calmo, mas teve que respirar
aliviado por um instante. Ele se voltou para a Necromante e a encarou.
A estranha usava uma túnica verde escura, quase negra. Suas
botas e manoplas de couro eram reforçadas por placas de metal, feitas de aço
negro e prata, marcadas por inscrições rúnicas. Sua máscara cobria
completamente o seu rosto com a imagem de uma face sem emoções, como a de uma
estátua prateada. Sua foice, com o cabo de ébano apoiado no chão, era um pouco
maior que ela mesma. A lâmina da arma parecia uma lua crescente, cinzenta como
o céu daquela tarde, com um brilho esverdeado como as presas dos Lobos
Necrófagos.
—
Até que você não é tão burro... —
A Necromante disse para Damian.
Viktor guardou suas espadas. Elise baixou as mãos, que
pararam de brilhar. A espada de Dreadraven se desmaterializou, bem como a
Demonsbane.
—
Se você quisesse ter nos matado, teria o feito sem hesitar. — Disse o doutor. — Poderia ter se utilizado
dos Necrófagos ou mesmo de um ataque surpresa com a foice.
—
Então o quê? — O
Sandrealmer cruzou os braços. —
Veio conversar?
—
Um aviso? — A
sacerdotisa arriscou. —
Foi por isso que veio?
—
Eu vim limpar essa cidade. —
Afirmou a Necromante. —
Porém, o amigo de Dreadraven me avisou que vocês quatro viriam para cá. Avisou
que poderiam ser um problema...
—
Limpar a cidade? —
Indagou Elise, confusa. —
Como assim?
—
É bem simples... —
Ela começou a explicar. —
O meu contratante é o responsável pela praga que está acabando com tantas
cidades desse país...
—
Então isso é trabalho de apenas uma pessoa? —
Viktor perguntou, interrompendo-a.
—
Bem... — A Necromante
parecia legitimamente irritada. —
De onde eu vim, interromper uma pessoa enquanto ela fala é um motivo válido
para assassinato sem ninguém em volta contestar...
—
Hm... — O Sandrealmer
engoliu em seco. Todos ficaram em silêncio no instante que se seguiu. — Desculpe-me, milady... — Ele fez um gesto com uma
mão para que ela prosseguisse. —
Vá em frente.
—
Continuando... Meu contratante está usando essa praga para se livrar de quem
ele não precisa e, assim, vagando cidades para que ele e seus servos ocupem,
trazendo-as de volta à vida e... —
Ela bufou. — Enfim,
um longo falatório maluco sobre criar uma utopia. Estou usando os Necrófagos
para comer toda a carne podre que fica jogada por aqui. Nada muito glamoroso.
Mas vocês entenderam a ideia, não é?
—
Claro... — Respondeu
Damian. — Agora
responda a pergunta do Sandrealmer ali.
—
Hm? — A Necromante
olhou para Viktor. —
Ah, claro... — Ela
limpou a garganta. —
Ele tem ajuda. Mas basicamente, é só ele e um amigo que, coincidentemente...
—
É o meu amigo? — Dreadraven arriscou um
palpite, soando não muito feliz ao dizer a última palavra.
—
Bem, eu ia dizer que era um amigo do Damian, mas... — A Necromante riu baixo. — No final, dá na mesma...
Damian e Dreadraven trocaram um olhar. Mesmo com a máscara,
o doutor parecia um tanto quanto alarmado.
—
De quem você está falando...? —
O Snowrealmer perguntou. Ele, mesmo não querendo, já sabia a resposta. Enquanto
ela não dissesse, ele poderia continuar negando.
—
Do Demônio, é claro! —
Ela respondeu com entusiasmo. —
Pele negra como carvão, com chifres, asas e uma cauda, tudo coberto por chamas
verdes.
—
E eles existem? —
Viktor perguntou cético.
—
Sim... — Elise
respondeu. — Apesar
de serem poucos. Pelo menos, é o que a minha Ordem me ensinou.
—
E vocês estão certos, garota Arcana... —
Disse a Necromante. —
Se bem que eu duvido que qualquer um de vocês tenha visto, e muito menos enfrentado,
um Demônio há pelo menos alguns séculos. —
Ela respirou fundo. —
Mas, enfim... Isso não importa. O que importa é que vou deixar vocês saírem
andando daqui se vocês colaborarem.
—
Nos poupando? — O
Sandrealmer sorriu. —
Por quê? Não foi paga pra isso?
—
Esse é o motivo secundário. —
A Necromante respondeu. —
O primário é que o Demônio me pediu para não os matar. Não agora.
—
E você não pretende contrariá-lo? —
Indagou Elise, quase como se estivesse desafiando a inimiga.
—
Ei... Eu sou incrível, mas nem tanto...
—E
onde ele está? —
Damian perguntou sério.
—
Você, melhor que qualquer um, deve saber que não dá pra saber exatamente onde
ele está.
Mais uma vez, houve um momento que, se não fosse pelos
ventos uivantes, o silêncio seria absoluto. Todos encaravam o Snowrealmer
esperando que ele fosse dizer algo.
—
Certo... — Damian
murmurou enfim. —
Falarei que você fez um bom trabalho nos poupando.
—
Eu ficaria grata. — A
Necromante respondeu num tom alegre. —
E não se esqueça de mencionar meu nome, Tabitha. Tabitha Deathzauber, pra ser
mais exata. Não sei se ele tem contato com outros Necromantes, então diga o meu
nome, ok?
—
Mas é claro...
—
Então... — Viktor
começou a falar. —
Esse seu contratante foi até Necrol procurando por alguém como você? Só por
curiosidade...
—
Ah... — Tabitha riu. — Ele veio até mim, isso é
verdade. Mas eu não estava em Necrol. Afinal, não sou de lá. E também duvido
que qualquer um daqueles Necros consiga ter um exército de Necros sob o comando
deles.
—
O que você está dizendo então é que... —
Dreadraven começou a falar e, então, fez uma breve pausa. — Você é uma Darklandian?
Os olhares de Damian, Viktor e Elise foram diretamente para
a Necromante. Sob a máscara, ela ria do medo nos rostos das pessoas a sua
frente.
O trio não podia acreditar. Depois do Cataclismo de quase
1058 anos atrás, o mundo havia sido dividido por forças além dos mortais. Os
continentes se afastaram ainda mais, agora, com oceanos quase sem fim como
barreiras. A maioria dos Windlandians acreditava que lugares como As Darklands
eram ficcionais, principalmente devido ao que ouviam a respeito dos lugares em
textos milenares. Todas aquelas terras pareciam ter sido criadas com o
propósito de aterrorizar, crianças e adultos igualmente, com suas lendas sobre
criaturas brutais e regiões inóspitas.
—
Sim. — Tabitha
respondeu. — E sim, o
meu continente é tão real quanto esse, por mais que eu mesma tivesse minhas
dúvidas sobre Windlands até botar os pés aqui.
—
Aposto que é um lugar lindo. —
O Sandrealmer zombou.
—
Você não faz ideia. —
A Darklandian disse sarcasticamente. —
Clima lindo. Fauna e flora fenomenais. Você deveria ir visitar lá algum dia.
Um raio iluminou o céu. O trovão veio em seguida e, com ele,
a chuva se fortaleceu.
Os pingos grossos de água começaram a cair, vindo cada vez
mais deles, cada vez mais rapidamente.
—
Melhor vocês irem agora... —
Aconselhou Tabitha. —
A chuva deixa os meus lobos de mau humor... E eu também não fico muito sociável
com esse tempo.
Sem dizer mais uma palavra, o quarteto trocaram olhares
entre si e, sem hesitar, deixaram a praça e seguiram para fora de Silverhill,
indo por uma estrada que se dividia em duas.
***
—
Então vamos todos juntos? —
Viktor indagou.
O Sandrealmer quebrou o silêncio. Ninguém havia dito mais
nada desde o diálogo com a Necromante, além da óbvia derrota para ela. Todos
pareciam irritados e impotentes após o acontecido. Porém, Damian era, de longe,
o mais afetado com o ocorrido.
Agora parados fora da cidade, enfrente a uma colina, sob a
chuva, os quatro se entreolhavam.
—
Bem, eu sei que eu vou com você. —
Afirmou Elise. Ela levou a mão em direção ao coração. — Afinal, é minha culpa que Lily...
—
Eu sei. — O
Sandrealmer disse rispidamente. —
Mas já vamos resolver isso, certo?
A sacerdotisa assentiu.
—
Qual é exatamente o problema? —
Damian perguntou.
—
Quer que eu resuma uma longa história? —
A mulher perguntou.
—
Fale antes que a chuva piore.
—
Certo... — Ela
suspirou. — Uma
Sandrealmer veio até esse país. Eu a conheci numa pequena cidade na costa. Eu estava
lá para pregar a palavra de Yamlight e, com sorte, recrutar alguns possíveis
Arcanos. Acabei conhecendo a garota. Lily era o nome dela. Ela queria viver,
algo que os pais, conservadores, nunca a permitiram. — Elise sorriu. —
Tudo o que eu contava sobre o nosso país, da comida que comíamos ao deus que
seguíamos, era algo maravilhoso para aquele Sandrealmer. As magias que eu usava
diante dos olhos dela a deixava deslumbrada. Nós começamos a passar mais e mais
tempo juntas... Aí... O inevitável aconteceu...
—
Se apaixonaram? — O
Snowrealmer arriscou o palpite óbvio.
—
Sim. — Viktor
respondeu por ela. —
Porém, os Arcanos não permitem relacionamentos. Entre pessoas do mesmo sexo,
então, eles abominam. Quando descobriram, expulsaram Elise da Ordem e Lily é
escrava deles em algum maldito templo, não muito longe da Capital.
A sacerdotisa não disse nada. Ela estava cabisbaixa,
evitando olhar nos olhos dos companheiros.
A chuva ficava cada vez mais forte. Os ventos pareciam
chicotear o quarteto com gotas de água de tempos em tempos.
—
Vou presumir que você conhece Lily. —
Damian disse para o Sandrealmer.
—
Sim... — Ele afirmou.
— Lily Carmesi. Minha
irmã. — Viktor
suspirou. — Vim para
este país para procurá-la. Sabia que aquela idiota ia se meter em encrenca,
mas...
O Sandrealmer não terminou a frase. E nem precisava. A dor e
preocupação em sua voz eram nítidas. Porém, ele não havia perdido as
esperanças. Ele traria Lily de volta para casa nem que perdesse um braço e uma
perna no meio do caminho.
—
E suponho que vocês vão precisar de ajuda. —
Disse Dreadraven calmamente.
—
Andar com mercenários esse caminho todo sairia caro. — Explicou Viktor. — E também me atrasariam. Além disso, vim para
cá com alguns guerreiros do clã... Infelizmente, acabamos entrando em conflitos
com os locais algumas vezes...
—
E você é o único sobrevivente. —
Adivinhou Damian.
O Sandrealmer assentiu.
—
Mesmo assim você não desistiu... —
O Snowrealmer esboçou um sorriso.
—
Eu não poderia simplesmente abandonar a minha irmã, poderia? — Ele tentou sorrir. — Ainda mais depois de tudo
o que já passei aqui...
—
Uma causa nobre... —
O olhar de Dreadraven foi de Viktor a Elise. —
E uma chance de consertar os erros do passado... —
Ele fez uma breve pausa. —
Eu irei ajudar.
—
Obrigada. — Elise
sorriu.
—
Meu objetivo no momento é tentar controlar essa praga. — Dreadraven explicou. — Eu não tenho um caminho certo para ir. Se
houveram enfermos para serem curados, eu ajudarei.
—
Você é um homem bom, doutor. —
O Sandrealmer disse alegre. —
E como merecedor, terá sua recompensa no final. —
Ele voltou o olhar para Damian. —
E você, Snowrealmer...? Irá se juntar a nós?
O guerreiro olhou para o horizonte. Ele apertava os olhos
para enxergar através da chuva densa. Havia algo lá que apenas Damian poderia
enxergar.
—
Não... — O Snowrealmer
respondeu sem ânimo. —
Eu tenho um único propósito nessas terras... E não é te ajudar. — Ele olhou por cima do
ombro. — Não é nada
pessoal... Adeus.
Com essa despedida sem emoção, Damian seguiu pela estrada da
esquerda, descendo a colina, enquanto aqueles que ele mal podia considerar
companheiros estavam parados, no pé da estrada que subia pela direita.
Sob a chuva torrencial, o guerreiro sumiu da vista do trio
em poucos instantes.
—
Ele carrega um fardo grande demais... —
Afirmou Elise.
—
Sim. — Dreadraven
concordou. — Mas é
melhor que não interfiramos no caminho dele. Não agora. Não intencionalmente.
—
Hm... — Viktor
suspirou. — Quer
dizer que vamos encontrar esse sujeito de novo...?
—
É bem provável... — O
doutor murmurou. —
Por ora, temos o nosso caminho para seguir...
Após essas palavras, o trio seguiu seu rumo.
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